Uma oportunidade para o diálogo em saúde global

Uma oportunidade para o diálogo em saúde global

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Este artiigo de Luiz Augusto Galvão e Paulo Buss é dedicado ao UHC Day (Dia Internacional da Cobertura Universal de Saúde), celebrado em 12/12/2021. Leia também os artigos de  Carlos Gadelha e Ligia Giovanella.

Cartaz de fundo azul claro com a imagem de um guarda-chuva na lateral, com dizeres em inglês Universal Health Coverage Day e o título da campanha do lado direito Sem deixar ninguém para trás

Segundo a OMS[i], metade da população mundial não tem cobertura e acesso aos serviços considerados essenciais à saúde, incluindo os mais de 100 milhões que vivem em situação de pobreza extrema (menos de 1,90 dólar por dia) porque tem que pagar pelos serviços de saúde. Ainda segundo a OMS, 800 milhões de pessoas (12% da população mundial) gastam pelo menos 10% dos orçamentos domésticos em cuidados com a saúde.

Para tentar superar essa realidade, os Estados-membros das Nações Unidas incluíram na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável uma meta específica que aspira à cobertura universal de saúde (UHC/CUS) até 2030. Assim, Cobertura Universal em Saúde é uma palavra de ordem global por sistemas universais, equitativos e baseados na atenção primária em saúde, com diversas interpretações e definições nacionais e locais. No Brasil, onde o direito a saúde é constitucional, essa palavra de ordem inclui o acesso universal por sistemas públicos baseados na atenção primária.

O segmento Saúde para Todos da Rede da ONU de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (UNSDSN)[ii] afirma que “a saúde é crucial para o desenvolvimento humano sustentável, seja como um direito humano inalienável, seja como um contribuinte essencial para o crescimento econômico da sociedade. A saúde contribui para o desenvolvimento nacional por meio do emprego produtivo, redução dos gastos com auxílio-doença e maior coesão social”.

É importante deixar claro que, apesar de o Brasil somar esforços a esse movimento mundial, para o país, a iniciativa não é suficiente ao cumprimento dos deveres constitucionais de Estado

Para a OMS, a UHC significa “que todos os indivíduos e comunidades recebem os serviços de saúde de que necessitam, sem ficar expostos a dificuldades financeiras. Isso inclui toda a gama de serviços de saúde essenciais e de qualidade, da promoção da saúde à prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos”. Segundo aquela agência, isso permitiria que “todas as pessoas teriam acesso aos serviços que tratam das causas de doença e morte mais significativas, garantindo que a qualidade desses serviços é suficientemente boa para melhorar a saúde das pessoas que os recebem”. Como esse conceito implica algum nível seletivo nos cuidados a serem recebidos, poderia ser considerado um fator sistemático gerador de inequidades, caso dos portadores de doenças raras ou até mesmo condições básicas, que poderiam ser aleatoriamente excluídas por governos. Assim, é importante deixar claro que, apesar de o Brasil somar esforços a esse movimento mundial, para o país, a iniciativa não é suficiente ao cumprimento dos deveres constitucionais de Estado.

No entanto, cabe registrar que, de acordo com  a OMS, esse conceito inclui a proteção do cidadão em relação a situações financeiras catastróficas relacionadas ao pagamento de serviços de saúde.

É importante deixar claro que, apesar de o Brasil somar esforços a esse movimento mundial, para o país, ele não é suficiente para cumprir os deveres constitucionais do Estado e dos governos brasileiros

Como temos observado durante a pandemia, esse é um fato relevante, e que atingiu boa parcela da população, levada à situação de pobreza e de endividamento com consequências negativas para o futuro de suas famílias. Esse segundo grande capítulo da UHC sem dúvida cabe nas ambições do texto constitucional do Brasil e, certamente, merece ser também considerado como um fator de preocupação sistemática.

Para a OMS, a UHC “não significa cobertura gratuita de todas as possíveis intervenções clínicas, independentemente dos custos, uma vez que nenhum país conseguiria fornecer todos os serviços gratuitamente numa base sustentável”. Como os cidadãos pagam impostos, serviços básicos oferecidos pelo Estado não poderiam ser considerados gratuitos, e sim pagos de forma pública. O Estado tem por obrigação proporcionar – e os governos têm por obrigação executar de forma eficiente – programas inerentes aos direitos humanos, dos quais são parte o direito à saúde, educação, emprego, locomoção e moradia. Portanto, tal noção tem sido debatida em muitos países e constitui objeto de leis e de movimentos sociais que visam garantir os direitos cidadãos.

Também são os impostos que financiam outros serviços determinantes da saúde e fundamentais para a equidade social, como serviços comunitários de água, saneamento, coleta de resíduos, alimentação saudável e outros relacionados ao desenvolvimento baseado na inclusão e coesão social.

Nas Américas, encontram-se antecedentes importantes. Com a denominação mais ampla de saúde universal, os ministros da Saúde da região adotaram, desde 2014, a orientação da cobertura universal[iii]. Até mesmo a Assembleia Geral das Nações Unidas, que reúne os chefes de Estado e de Governo de todos os países do mundo, realizou reunião de alto nível sobre a cobertura universal em saúde, em 23 de setembro de 2019, nela estabelecendo importante declaração política[iv], na qual se comprometem em acelerar o progresso em direção à cobertura universal de saúde (UHC), incluindo proteção contra riscos financeiros, acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e acesso a serviços de saúde, medicamentos e vacinas essenciais eficazes, de qualidade e acessíveis para todos.

Em 2022, haverá uma grande oportunidade de se avançar na governança global em saúde e, certamente, na garantia do direito à saúde já que a Sessão Especial da Assembleia Mundial da Saúde[v] aprovou em decisão consensual “iniciar um processo global para elaborar e negociar uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional, nos termos da Constituição da Organização Mundial da Saúde, que visará fortalecer a prevenção, preparação e resposta pandêmicas.” Essa decisão estabelece um órgão de negociação intergovernamental (INB) para esse fim, com base no artigo 19 da Constituição da OMS que “atribui autoridade à Assembleia Mundial da Saúde a para adotar convenções ou acordos sobre qualquer assunto de competência”. Esse mesmo artigo foi o instrumento para estabelecer a Convenção-Quadro da OMS sobre o Controle do Tabaco, a qual já salvou milhares de vidas e tem defendido a saúde pública mundial contra interesses contrários à saúde e ao bem-estar.

É preciso que a comemoração do dia coincida com a materialização das propostas emanadas desses fóruns de alto nível e de compromissos externados pelos governos nacionais, para que os benefícios da cobertura universal em saúde cheguem na forma de saúde universal para todos os habitantes do planeta

Assim, comemorar esse dia, estabelecido pela Assembleia Geral da ONU e que ampara o papel da OMS e dos Estados-membros é também comemorar as célebres e sábias palavras da Constituição da OMS[vi] (1948), que “declara a saúde como um direito humano fundamental e se compromete a assegurar o nível mais elevado possível de saúde para todas as pessoas”.

No Brasil, toda uma geração de sanitaristas e de outros profissionais da saúde e do desenvolvimento social tem pautado suas atividades nessa definição, sempre ponderando a conjuntura, os compromissos e as oportunidades de avançar na luta pelo pleno direito à saúde. Essa data, estabelecida pelos altos representantes de todos os Estados-membro da ONU, é outra oportunidade de renovar o debate, reforçar os pontos de vista coincidentes, enfatizar as diferenças, buscando soluções vantajosas no combate ao racismo sistemático e à discriminação que geram grandes desigualdades à saúde.

Contudo, como sempre se alerta, é preciso que a comemoração do dia coincida com a materialização das propostas emanadas desses fóruns de alto nível e de compromissos externados pelos governos nacionais, para que os benefícios da cobertura universal em saúde cheguem na forma de saúde universal para todos os habitantes do planeta.

* Luiz Augusto Galvão, pesquisador sênior do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/ Fiocruz); Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz.

 

Sites de interesse

Reunião de Alto Nível da ONU sobre Cobertura Universal de Saúde: https://www.un.org/pga/73/event/universal-health-coverage/

Health for All da UN Sustainable Development Solutions Network (SDSN) https://www.unsdsn.org/health-for-all

UHC2030 https://www.uhc2030.org/

P4H Rede de Proteção Social e Saúde https://p4h.world/index.php/en/content/why-p4h

Parceria Cobertura Universal de Saúde https://www.uhcpartnership.net/

Iniciativa sobre o  Desempenho da Atenção Primária à Saúde PHCPI https://improvingphc.org/

Aliança para Pesquisa em Políticas e Sistemas de Saúde (The Aliance) https://ahpsr.who.int/ )

Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde Astana 2018 https://www.who.int/teams/primary-health-care/conference

 

 

 

[i] WHO. Cobertura Universal da Saúde https://www.who.int/world-health-day/world-health-day-2019/fact-sheets/details/universal-health-coverage-(uhc) acessado em 7/12/2021

[ii] UN Sustainable Development Solutions Network (SDSN) https://www.unsdsn.org/health-for-all

[iii] OPAS. Resolução CD53.R14. https://www.paho.org/hq/dmdocuments/2014/CD53-R14-p.pdf

[iv] https://undocs.org/en/A/RES/74/2

[v] WHO Special session of World Health Assembly 29 November 2021 - 1 December 2021 https://www.who.int/news-room/events/detail/2021/11/29/default-calendar/second-special-session-of-the-world-health-assembly ) acessado em 7/12/21

[vi] WHO Constitution https://www.who.int/about/governance/constitution acessado em 7/12/21