Durante aula aberta do Programa Multiprofissional em Saúde Coletiva e Atenção Primária à Saúde proferida na USP, o pesquisador Rômulo Paes, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), apresentou uma análise contundente sobre o novo programa federal Agora tem Especialistas, voltado à ampliação e reorganização do acesso aos serviços de saúde no país, garantindo mais agilidade, eficiência e equidade no âmbito da saúde especializada. Sua fala destacou o potencial transformador da iniciativa, mas também os muitos desafios que acompanham sua implementação.
Segundo Rômulo Paes, após dois anos e meio de governo marcados por debates predominantemente econômicos e negociações de governabilidade, abre-se agora espaço para que a agenda social ganhe maior proeminência. E é exatamente nesse cenário que o novo programa de saúde assume uma importância singular.
Para o pesquisador, trata-se de uma iniciativa capaz de se tornar o grande diferencial do governo na melhoria concreta da qualidade de vida da população — especialmente dos grupos mais vulneráveis, historicamente afetados por limitações de acesso e cobertura no sistema de saúde.
Uma escolha corajosa com potência transformadora
Paes enfatizou que a atual proposta não se limita a restaurar políticas públicas. Ela representa uma mudança substantiva, com foco em ampliar o acesso e reorganizar a oferta de serviços em regiões marcadas por vazios assistenciais.
Entre os elementos de maior ousadia está a decisão de “enfrentar o hibridismo” entre o público e o privado na prestação de serviços. “Navegar nesse arranjo — diverso, desigual e frequentemente sobreposto — é, segundo o pesquisador, uma escolha “corajosa” e tecnicamente complexa”.
O pesquisador, que participou do desenho, da montagem e da implementação do programa Bolsa Família, sublinhou que “prover serviços é sempre muito mais complicado do que prover rendas, do que prover bens”. Afinal, considerou, se prover renda é um desafio de gestão, prover serviços com qualidade homogênea em um país com dimensões continentais representa desafio para implementação ainda maior.
A enorme heterogeneidade entre municípios — em capacidades instaladas, recursos humanos e organização dos serviços —, foi outra questão apontada por Paes. Como explicou, ela pode gerar competição virtuosa ou deletéria entre as esferas federal, estadual e municipal, implicando em “sobreposição e desperdício de recursos”.
Como ferramenta fundamental para que usuários e gestores entendam e possam distinguir o que pertence ou não à nova iniciativa, Paes ressaltou a importância de mecanismos de comunicação clara e identificação precisa das ações.
A agilidade na incorporação de tecnologias na atenção à saúde — um dos legados positivos da pandemia — é vista como um ponto forte do programa. No entanto, esse avanço também adiciona mais complexidade ao modelo de atenção. De acordo com Paes, “o programa enfrenta e foca em déficits históricos que nós temos da atenção e é consistente com a contemporaneidade”, ou seja, “os padrões já estabelecidos de maior mortalidade no Brasil”.
Outro ponto essencial do programa é o senso de urgência. A iniciativa, explica Paes, rompe com a lógica acumulativa e incremental que caracteriza grande parte da construção histórica do SUS, ao escalar iniciativas “potentes” produzidas “em escala”. O programa busca, também, fazer um esforço de governança, avalia o pesquisador, que identifica já ter havido um avanço muito grande nesse sentido.
integração das informações entre os subsistemas público e privado
Programas que combinam modelos diferenciados de implementação, afirmou Paes, sempre pagam um pedágio inicial: “insegurança na gestão, insegurança nos que estão na ponta realizando os serviços e insegurança por parte do usuário”.
Superada essa fase, no entanto, ele explica, abre-se a possibilidade de transformações substantivas — inclusive com impactos econômicos positivos, como a redução do turnouver laboral, que é a taxa de rotatividade de funcionários numa organização.
Paes destacou que o programa representa uma oportunidade inédita de contribuir para a integração das informações entre os subsistemas público e privado, historicamente desencontradas. Durante a pandemia, essa fragilidade foi explicitada, dificultando “o acesso às informações de modo que nós pudéssemos ter um domínio mais adequado no que envolve a prestação de serviços bem azeitada”.
Outro ponto ressaltado é a possibilidade de “entender, na verdade, quais são as necessidades, inclusive reprimidas, que estavam postas, que é dada parcialmente pela fila, mas não só pela fila, para que a gente possa compreender a capacidade de resolução que o programa traz”.
Isonomia, qualidade e transparência: princípios inegociáveis
Ao tratar do envolvimento do setor privado, Paes expressou preocupação com possíveis diferenciações na atenção prestada a usuários do SUS em relação a outros públicos atendidos pelos mesmos prestadores. Por isso, para o êxito da política, é sublinha que será essencial garantir isonomia, qualidade equivalente e transparência, especialmente em regiões com pouca capacidade local de auditoria.
Para concluir, o pesquisador afirmou que o Governo Federal — e especialmente os ministros que conduziram o desenho original do programa — fez a escolha mais difícil, porém a mais transformadora. Em suas palavras,
“muitas gestões fazem as escolhas muito pragmáticas e nesse sentido pouco transformadoras. O que seria um desperdício para o Governo com as características que esse Governo tem. Então acho que fizeram a escolha mais ousada que poderiam ter feito.”
— Rômulo Paes Sousa