Workshop internacional aponta para uma compreensão mais ampla e holística sobre resiliência
Experiências, indagações e olhares diversos relacionados ao conceito de resiliência perpassaram as exposições dos participantes do Workshop Internacional Resiliência em Saúde Pública: desafios e perspectivas, realizado em 9 de dezembro de 2024, pelo projeto Tecnologia, Informação e Resiliência em Saúde Pública (Lab ResiliSUS) do CEE-Fiocruz, de forma presencial e on-line. O evento reuniu três palestrantes internacionais – a cientista social Anne-Sophie Jung, da School of Politics and International Studies da Universidade de Leeds, no Reino Unido; a pesquisadora Victoria Haldane, do Instituto de Gestão e Avaliação de Políticas de Saúde da Universidade de Toronto e do Departamento de Ciências da Saúde Comunitária da Universidade de Calgary, Canadá; e a epidemiologista e médica de família Connie Junhghans-Minton, do Imperial College London, também do Reino Unido –, ao lado do pesquisador Gustavo Matta, do Núcleo Interdisciplinar em Emergências em Saúde Pública (Niesp/CEE). A mediação foi do pesquisador Alessandro Jatobá, coordenador do ResiliSUS, que fez abriu o evento apresentando o tema.
Jatobá observou que as crescentes pressões sobre os sistemas de saúde, resultantes de crises como alterações climáticas, catástrofes naturais, conflitos e pandemias, geram enorme pressão sobre os sistemas de saúde, especialmente os universais, como os do Brasil, do Canadá e do Reino Unido. “Embora já existam muitos métodos para estudar a resposta a desastres, precisamos de uma compreensão mais ampla e holística da resiliência”, avaliou, sublinhando que conceito de resiliência dos sistemas de saúde vai além da resposta tradicional a catástrofes.
“Em vez de nos concentrarmos apenas na forma como os sistemas de saúde reagem às crises, a resiliência deve ser compreendia como atributo contínuo desses sistemas, ajudando a antecipar, absorver, adaptar-se e transformar-se, em resposta aos vários desafios. Isso inclui tanto respostas imediatas a acontecimentos inesperados, como estratégias de longo prazo para reforçar os sistemas de saúde”.
Conforme explicou o pesquisador, a definição de resiliência que seu grupo de pesquisa defende inclui a capacidade adaptativa dos sistemas de saúde para responder às crescentes exigências durante as crises, mantendo as funções essenciais de saúde. Essa abordagem abrangente, disse, enfatiza a necessidade de capacidades preventivas e transformadoras para gerir desafios, tanto os previsíveis como os inesperados. A perspectiva é apoiada por estudos diversos, como os que exploram o papel dos profissionais de saúde comunitários na melhoria da resiliência, analisam experiências como a dos barcos-ambulância na região Amazônica e os que se voltam à importância de manter as funções essenciais de saúde durante as crises.
O palestrante também apresentou a estrutura CoRes (Coeficiente de Resiliência), no qual o projeto ResiliSUS vem trabalhando, que utiliza aprendizado de máquina para analisar o desempenho de funções essenciais de saúde e prever até que ponto os sistemas de saúde podem responder a diversas pressões. E mencionou também “uma das conquistas do grupo de pesquisa” – a inclusão do termo resiliência voltado à área da saúde, no vocabulário do catálogo de descritores DeCS/MeSH. “Essa definição foi importante para termos uma conceitualização mais ampla, para impulsionar as mudanças no sistema de saúde. Essa é também a ideia desse workshop”, disse Jatobá, incentivando “a colaboração para fortalecer a capacidade dos sistemas de saúde de se adaptarem e melhorarem através de pesquisa, teoria e ferramentas práticas”.
Por uma abordagem holística do conceito de ‘resiliência’
Anne-Sophie, que desenvolve trabalho em parceria com Victoria Haldane, enfatizou sua vinculação às Ciências Sociais para abordar a área da Saúde “de uma perspectiva crítica”. Integrante do Painel Independente de Preparação e Respostas à Pandemia, da Organização Mundial da Saúde (OMS), criado no final de 2020, durante a pandemia de Covid-19 – ocasião em que conheceu Victoria –, ela trabalhou no monitoramento de respostas de 28 países no primeiro ano da pandemia. No estudo, explicou, buscaram compreender que ações levaram ou não a bons resultados e o quanto isso interferia no entendimento sobre resiliência dos sistemas de saúde.
Ao expor o que seriam as dimensões de um sistema de saúde resiliente – envolvimento da comunidade, colaboração entre os diferentes setores da sociedade, equidade na saúde e orientação pela ideia de saúde única –, ela observou que considera essa estrutura “inteiramente apolítica” e apresentou uma nova proposta, construída a partir dos estudos com Victoria, realçando a importância do contexto, interno e externo.
A abordagem leva em conta aspectos como história, cultura, fatores econômicos, meio ambiente e governança, ao lado de características da doença e variantes de preocupação dos vírus (no caso da Covid-19, mas podendo estender-se a outros micro-organismos e doenças), as iniquidades exacerbadas entre países, o discurso da mídia, a governança, as estratégias de controle e as intervenções em saúde pública. “Estamos muito interessadas em como os aspectos locais e globais se relacionam”, observou.
Tomando como base as Ciências Políticas, Anne-Sophie chamou atenção para como determinada ideia de resiliência leva a uma associação entre o conceito de resiliência e o de eugenia. Ela trouxe como exemplo o caso de soldados diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático (Tept) e as companhias de seguros e os médicos considerando que qualquer pessoa normal deveria ser capaz de se recuperar dessa experiência. “Nesse caso, esses soldados seriam anormais”, deveriam ser resilientes, mas não são”, analisou. “Essa ideia de ter um normal é um pensamento capacitista, certo?”, alertou Anne-Sophie, destacando a importância de se observar o que os enquadramentos através de lentes resilientes “realmente fazem, o que permitem e em que atrapalham”.
A pesquisadora indagou, ainda: “Quando o governo dos EUA diz que quer criar uma sociedade resiliente, o que isso realmente significa em termos das suas políticas?”. Ela reiterou a necessidade de se adotar uma abordagem “mais holística” para o conceito, o que é “muito, muito difícil, especialmente se você quiser conversar com formuladores de políticas”.
Anne-Sophie passou a palavra à parceira Victoria Haldane, que abriu sua exposição relatando seu estranhamento ao ter participado, certa vez, de um evento no qual se “espalhava a palavra resiliência”, sem que, no entanto, ficasse claro o que se queria dizer com isso. E indagou: “Quais são as funções da resiliência? O que precisamos para ser resilientes?”.
Flexibilidade para acomodar o futuro
Levando em conta, conforme se entende hoje, que os sistemas de saúde do século XXI enfrentarão desafios simultâneos, e que esse é “um século de policrise”, Victoria defendeu que precisamos de um conceito de resiliência suficientemente dinâmico para refletir a complexidade e a mudança inerentes aos sistemas de saúde. “A resiliência, por natureza, precisa de flexibilidade para acomodar o futuro, as novas capacidades, as inovações, a natureza viva de um sistema de saúde”, considerou. “Um sistema de saúde não é uma estrutura fixa. É complexo, vivo e fluido”.
Victoria observou que é preciso ser resiliente aos fatores de estresse que os sistemas de saúde enfrentam regularmente. Ela citou que, no Canadá, durante a temporada de gripe, a capacidade do sistema é ultrapassada em cem por cento. “Temos estressores rotineiros aos quais sabemos que precisamos nos acomodar, mas que se tornarão mais complexos”, observou, acrescentando que não se trata apenas de resiliência aos choques do presente. É necessário ser resiliente a choques futuros. “Existem diferentes desafios que os nossos sistemas de saúde enfrentarão e em que precisamos pensar em abordar com mais flexibilidade”.
Pensar o futuro dos sistemas de saúde, as intervenções feitas para construir resiliência e identificar o que funciona ou não, para quem e por que são pontos que norteiam os estudos que realiza, indicou Victoria. “Também me envolvo com previsão estratégica, criar um espaço para imaginar, pensar o impensável sobre o que o futuro poderá reservar”, acrescentou.
Victoria apresentou um dos trabalhos que leva à frente, voltado à construção de resiliência em situações geradoras de estresse contínuo nos sistemas de saúde, na Região Autônoma do Tibete, na China. Trata-se de área rural e remota, com elevada prevalência de tuberculose, o dobro da média nacional, explicou. “Às vezes, quando pensamos em resiliência, ficamos muito presos a uma mentalidade hospitalar, de infraestrutura, do quantificável, no coração da cidade, mas a resiliência tem de existir mesmo no Tibete, perto do Monte Everest. Nossos sistemas de saúde se estendem a esses lugares muito remotos, o que, tenho certeza, ressoa aqui no Brasil, onde temos comunidades remotas que também precisam de acesso a cuidados”, comparou.
O estudo voltou-se à adesão da população daquela área à saúde digital, tendo em vista sua capacidade limitada de seguir a terapia indicada no tratamento da tuberculose. “Portanto, o sistema de saúde não é suficientemente resiliente às necessidades das pessoas com tuberculose”, entende Victoria, explicando que, em sua pesquisa, foi criado um sistema de intervenção para fortalecer o círculo de cuidados, interligando pacientes, suas famílias e profissionais de saúde.
“Se sabemos alguma coisa sobre a tuberculose, é que existe forte componente social na abordagem da doença. A pessoa precisa de muito apoio durante o tratamento para acessar os medicamentos, para lidar com os efeitos colaterais”.
Foram observados no estudo componentes dos sistemas de saúde resilientes relacionados à força de trabalho, que assume características comunitárias, os médicos de aldeia, como são chamados na China; a tecnologias integradas, com uso de um E-monitor – recipiente para guardar comprimidos, com um alarme para lembrar ao paciente de tomá-los –; e a um sistema semelhante ao Whatsapp, o WeChat. “A adesão à medicação não tem a ver com a caixa em que se coloca o medicamento e sim ao que está ao redor da caixa. As pessoas lá vivem em áreas muito remotas com famílias numerosas. Assim, ao trazer as famílias para o plano de cuidados e atendendo às características culturais da região, aumentava-se a sensibilização para a tuberculose”.
Victoria ressaltou a importância das adaptações dos processos a diferentes especificidades, relatando que os monitores eletrônicos não haviam sido bem aceitos por alguns grupos, como alunos nas escolas, que não queriam que o alarme do recipiente denunciasse que estavam recebendo medicação para tuberculose. Nesse caso, passaram a receber lembretes pelo WeChat. “A resiliência vive naqueles pequenos espaços flexíveis que podemos criar para fazer algo útil numa comunidade”.
Saúde da Família no Reino Unido e no Brasil
Connie Junghans, da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres, destacou a importância dos estudos do médico inglês Matthew Harris, que, nos anos 90, trabalhou no Brasil, constatando a importância em se ter uma equipe de saúde da família no território. Conforme narrou Connie, o trabalho desenvolvido por Harris foi fundamental, ao observar, em seus estudos como os trabalhadores da saúde no Brasil conseguiram, a partir do Estratégia Saúde da Família (ESF), aumentar a equidade e melhorar alguns resultados para níveis de doenças crônicas a partir da escuta do território. “Ficamos interessados e pensamos em traduzir e aplicar o modelo no Reino Unido, sob o olhar e perspectiva brasileiros”, relatou.
Segundo a pesquisadora, embora sejamos povos e sistemas de saúde diferentes, existem possibilidades de aprendizagem mútua. “Levar o debate para o aspecto prático da resiliência é a chave para entendermos de qual força de trabalho necessitamos e onde alocar e flexibilizar recursos, e possibilidades de conexões nas interfaces de trabalho”.
Connie trouxe o exemplo do programa piloto Agentes comunitários de saúde e bem-estar (CHWWs, na sigla em inglês), desenvolvido no Reino Unido como apoio ao Serviço Nacional de Saúde (NHS). De acordo com a médica, trata-se de um projeto desenvolvido pela Associação Nacional de Cuidados Primários – National Association of Primary Care (NAPC), que recruta e insere pessoas das próprias comunidades em equipes de atenção primária e no setor comunitário, para ajudar proativamente a fornecer serviços de saúde e bem-estar.
“O modelo de prestação de cuidados primários, com mais de 70% da população tendo um ACS, foi inspirado no Brasil há trinta anos”, disse Connie. “Em Westminster, onde o modelo foi implementado, os moradores experimentaram aumento de 90% no bem-estar; as famílias tinham 47% mais probabilidade de receber as imunizações para as quais eram elegíveis e 82% mais probabilidade de fazer exames de câncer e exames de saúde do NHS”, destacou.
Connie trouxe o exemplo da Cornuália, área não metropolitana, de baixa renda, da Inglaterra, que criou por iniciativa própria o projeto de agentes comunitários, com 47 profissionais, verificando que, no primeiro ano, houve 90% de melhora no escore do bem-estar.
“As pessoas não querem falar de saúde, quando os agentes batem na porta, querem falar de trabalho, residência, crimes, coisas que afetam sua vida cotidiana, e os agentes comunitários têm que falar sobre isso também primeiro, antes de falar de saúde”, observou Connie, destacando que, ao se expandir o NAPC, há possibilidade de cobrir pelo menos mais 20% das áreas mais carentes da Cornuália, até 2027. “Buscaremos retribuir um pouco do aprendizado que estamos vivenciando agora no Brasil, e gostaríamos de fazer um estudo sobre resiliência comparando áreas que têm agentes comunitários de saúde e áreas que não têm; encontrar maneiras de compartilhar e traduzir nosso aprendizado, também um pouco sobre o aspecto cultural de como aprendemos juntos”.
Resiliência em uma perpectiva decolonial
Gustavo Matta abordou questões relacionadas à saúde coletiva no Brasil, com foco nas “desigualdades estruturais, os desafios enfrentados em emergências de saúde e a necessidade de uma abordagem mais crítica e decolonial para lidar com esses problemas”.
Ao mencionar a estrutura social profundamente desigual do país, o pesquisador trouxe o exemplo da Bahia, onde mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza, ressaltando que a violência e as desigualdades sistêmicas se entrelaçam. Esses problemas, de acordo com o pesquisador, se intensificam nas emergências de saúde, como as epidemias de Zika e Covid-19, em que os grupos sociais mais vulneráveis — especialmente mulheres, crianças e comunidades negras — enfrentam riscos de saúde e sociais multiplicados.
Gustavo chamou atenção para a invisibilidade desses grupos e para a falta de apoio do Estado. A resiliência, nesse contexto, disse, é vista como a luta das famílias e das comunidades para garantir seus direitos, em vez de uma recuperação do estado normal, que já era desigual.
O papel crucial da saúde coletiva foi destacado pelo pesquisador, como um movimento político e epistemológico fundamental no Brasil. Ele enfatizou, ainda, a importância da abordagem crítica dessa área na luta pela equidade social, especialmente no contexto do Sistema Único de Saúde, assim como da relação entre saúde coletiva e políticas públicas, em referência, por exemplo, ao controle de arbovírus e à relação entre pobreza, violência e doenças como a tuberculose.
Gustavo pontuou que é preciso repensar as políticas intersetoriais para melhorar o saneamento, o transporte e outras condições de vida e chamou atenção para a lógica de interesses econômicos e geopolíticos que molda a distribuição de recursos, mencionando a situação da vacina contra a Zika e o abandono de pesquisas quando não há interesse comercial.
O pesquisador fez uma crítica à estrutura global de preparação para epidemias, mencionando a falha na definição de acordos internacionais, como o Acordo sobre Pandemias da OMS. Diante disso, ele propõe a “perspectiva decolonial e de participação social genuína” para essa preparação, considerando as disparidades entre países ricos e pobres.
Gustavo abordou, também, o impacto de programas como as transferências de renda no Brasil, que, em sua avaliação, apesar de promoverem a redução da mortalidade, também têm efeitos negativos, como a obesidade infantil devido ao consumo de alimentos ultraprocessados.
Por fim, o pesquisador propôs uma reflexão sobre como lidar com as emergências de saúde de forma mais equitativa e como repensar as políticas públicas em saúde para que possam atender de maneira mais justa as populações mais vulneráveis.
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