It’s not only business

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Fachada da Casa Branca, nos EUA, sob escuridão

As comportas da barragem abrem-se todas. A pressão contra as paredes de retenção aumenta. As águas tranquilas se veem empurradas contra o cimento. Formam-se correntes, contracorrentes, jatos. A pressão aumenta com a chegada de novos volumes de água vindos de toda parte, como uma invasão. A pressão se torna insuportável. As águas parecem desesperadas com a perda de equilíbrio. A gravidade oferece uma solução, a única possível. A rebentação contra pedras milenares é necessária, antes de encaminhá-las ao rio que, surpreendido em sua calma, revolta-se e segue o seu curso. 

As três últimas semanas têm sido um pouco assim. A enxurrada de notícias vindas da Casa Branca é extraordinária. Não há tempo de processá-las com ordem e estruturação lógica. As comportas todas foram abertas, só que desta feita não são as águas que se perturbam e exercem pressão. Aqui, a impressão que se tem é que os demônios todos foram soltos por ordens executivas.

Algumas ordens executivas são pesadelos para funcionários da Administração, despedidos sem cerimônia. Outras criam incerteza com cortes nos programas de bem-estar social no plano doméstico, de que são exemplo o Medicaid, o Food Stamp (vale-refeição) e o Cash Assistance (bolsa família), entre outros. O anúncio de congelamento por noventa dias do fluxo de recursos para assistência humanitária global é quase uma sentença de morte para milhões de pessoas em países em desenvolvimento.

No plano externo o que sobressai são ameaças de impor tarifas sobre bens e produtos importados pelos EUA, de todo e qualquer país, sem exceção. Países amigos, parceiros e aliados sofrerão as mesmas restrições econômicas e comerciais. É como se as palavras de Michael Corleone, o personagem de O poderoso chefão, voltassem com força à memória:  It’s not personal, it’s only business. Quem, entre os que defendem a sabedoria do mercado, poderia opor-se a algo tão sensato? O presidente americano quer devolver aos EUA a grandeza que já teve. Make America great again é o que quer a ampla maioria que elegeu Donald Trump para a Presidência. É preciso sacrificar outros na empreitada? It’s only business.

No plano externo há mais que assuntos de comércio. É o caso da guerra da Otan contra a Rússia na Ucrânia. Trump disse que quer terminar a guerra. Para isso, inicia conversa telefônica com Putin, sem antes entrar em conversas com os seus aliados, que se sentem profundamente ofendidos. Diz que Zelensky terá que devolver o dinheiro emprestado para fazer sua guerra e que os países da Otan terão que aumentar os respectivos gastos com defesa. A impressão dos aliados é que Trump quer acabar com eles.

O argumento norte-americano repousa na percepção da importância relativa da Ucrânia entre os eleitores de Trump. É quase um truísmo dizer que o conflito na Ucrânia não está a merecer elevado grau de atenção ou de preocupação junto ao segmento da população que elegeu o presidente norte-americano. Para os aliados, por outro lado, a questão parece ter alcançado conotações que beiram a histeria.

Para eles, Putin é o próprio diabo que quer dar vazão a ambições imperialistas. Todos parecem repetir por alguma cartilha que existe ameaça real de a Rússia invadir os países que faziam parte do espaço de segurança soviético para depois avançar sobre os países da Europa Ocidental. O medo pode ser algo inexplicável, mas esse é insustentável. Esquecem, ou desconsideram que a Rússia não tem qualquer tipo de excedente que poderia ser usado para uma expansão. Em termos demográficos, a população jovem não é majoritária. As possibilidades da economia encontram-se esticadas e não parece razoável imaginar que poderiam ser alongadas ainda mais. Politicamente, não parece que uma tal empreitada teria apoio incondicional da sociedade. O medo da ameaça russa, ademais, é interessante, pois coincide com a mesma preocupação que tinham os russos com a expansão da Otan em ondas sucessivas após o fim da Guerra Fria, o desmembramento da União Soviética e o desmantelamento do Pacto de Varsóvia. O fato que parece passar cinicamente despercebido é que a Rússia não tem, nem pode ter, ambições imperialistas. A guerra na Ucrânia é para assegurar o seu espaço de segurança que, recorde-se, é o de uma potência nuclear. Os EUA fizeram o mesmo quando da crise dos mísseis em Cuba.

A Conferência de Munique sobre Segurança (MSC, na sigla em inglês)[1], que se realizou de 14 a 16 de fevereiro, acolheu o presidente Zelensky com longo e sustentado aplauso, como em resposta às declarações do governo norte-americano[2]. Os aliados europeus se sentiram insultados com as palavras que lhes terão parecido não deixar dúvida de que os EUA retiram apoio à guerra na Ucrânia. Nesse contexto, pareceria que o problema ucraniano passa a ser exclusivamente dos europeus. Em mesas-redondas promovidas pela Conferência muitos ventilaram que iriam aumentar os seus gastos com defesa em até 5% de seus respectivos PIBs. Zelensky chegou até a dizer que a formação de um exército europeu seria a resposta que teria que ser dada ao desplante dos americanos. Observador irônico da cena poderia dizer que teriam que cuidar para que o comando de um tal exército não sofresse das mesmas dificuldades burocráticas que permeia toda decisão em Bruxelas.

Aumentar gastos com defesa, como querem os aliados europeus, pode ademais ser contraproducente.

Em 1983, o então presidente Ronald Reagan anunciou o lançamento da Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI, na sigla em inglês), também conhecido como Programa Guerra nas Estrelas. A ideia era desenvolver armas de enorme complexidade tecnológica, que tornariam os sistemas convencionais de defesa completamente obsoletos. A iniciativa partia de premissas irrealistas e expectativas exageradas. Os cientistas demonstravam a ilusão da iniciativa. Os custos seriam astronômicos e dificilmente poderiam ser aprovados. Nada disso, contudo, tinha importância. O importante era a mensagem. Uma nova corrida armamentista para fazer frente à iniciativa poderia colapsar as economias do Leste. Carl Sagan, o grande astrônomo norte-americano, que mantinha contato com os seus colegas soviéticos, comentava o que estes lhe diziam a respeito da iniciativa. Esta, diziam, seria como começar uma guerra econômica que aleijaria ainda mais a economia soviética com aumento exorbitante do gasto militar. Todos pensavam da mesma maneira. A economia soviética colapsou e a SDI foi arquivada.

É curioso como a defesa de valores e princípios parece aplicar-se de maneira seletiva. É preciso derrotar o inimigo no campo de batalha. Ensinar-lhe uma lição. Não há outra possibilidade ante alguém que comete crimes de guerra, não atenta para os direitos humanos e em particular para os direitos da população civil em situação de guerra, como reza a 4ª Convenção de Genebra

O aumento de gasto com defesa dos aliados europeus, não alijaria ainda mais as suas combalidas economias? As sociedades apoiariam esses aumentos, que naturalmente implicariam em cortes nos orçamentos de programas sociais? Com que finalidade? Aplacar o medo? É extraordinário que o medo de Putin possa ser mais terrível que o medo que deveria advir da delicada situação que se vive por conta da conjuração de todas as crises imagináveis que pesam sobre o mundo. Deve haver algo de verdade nisso, uma vez que os assuntos de segurança, da Europa, parecem dominar a atenção, com prejuízo para as questões de fome, pobreza, inequidades, dívida, mudança climática, aquecimento global, perda da biodiversidade, entre outros. Chega a ser insultante que líderes presentes à Conferência de Munique prontifiquem-se a investir somas exorbitantes no setor de defesa que poderiam ser destinadas a cobrir as necessidades de investimentos para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e para a mitigação e adaptação das causas e efeitos do aquecimento global. Pesa mais na balança o medo de um bicho papão, que tem um pequeno grupo de países, que o medo de estarmos frente à Policrise, deusa da mitologia moderna, prestes a nos levar, por hubris, à maior tragédia humana de que se tem notícia. Os diplomatas que frequentam as reuniões da Otan não são os mesmos que frequentam as reuniões do EcoSoc, ou da Comissão para o Desenvolvimento Social.   

Em 11 de fevereiro de 2025, quando o vulcão de notícias estava em plena ebulição, reuniu-se em Nova York a Comissão para Desenvolvimento Social[3], o principal órgão assessor das Nações Unidas para assuntos de desenvolvimento social. Integrada por ministros dos Estados-membros, a Comissão enfatizou que a solidariedade e a inclusão são crucias num mundo acometido por crises e emergências. Notou com preocupação a erosão da confiança nos governos e nas instituições. A presidente da Comissão foi mais longe e disse o que todos suspeitamos: o progresso para erradicar a pobreza estagnou[4]

A reunião da Comissão de Desenvolvimento Social passou despercebida, ao contrário da Conferência de Munique sobre Segurança. Ninguém prestou atenção à estagnação do progresso e muitos, talvez, perguntem: o progresso não esteve sempre estagnado? O que há de novo? E assim, quase por acaso, as memórias vão se apagando e a lembrança do que eram a Agenda 2030, os ODS e o Acordo de Paris vão se tronando confusas e incertas. O que eram mesmo essas coisas? Que importância podem ter essas velharias. A ameaça agora é o Putin, que quer nos invadir e punir.

Inventaram o conceito de comunidade de democracias, para forçar uma união do bem contra o mal, como os antigos maniqueístas. Os que martelaram a invenção até conseguir encaixá-la em uma forma, ainda que deficiente e um pouco sofrida, passaram por alto as diferenças entre as democracias do Norte, mais nobres e tradicionais, segundo eles próprios, que as democracias do Sul, sempre a merecer críticas por parte dos primeiros. O importante era conseguir a união, necessária para isolar o novo monstro do Doutor Frankenstein, imparável na fabricação de horrores. Alçaram um homenzinho verde à condição de herói, que conduziria a batalha para salvar o ocidente. Para os do Sul, aquela figura parecia mais a de um duendezinho, irritadiço e inconveniente, sempre a pedir armas, bombas e aviõezinhos para fazer das suas. O mundo está doente de desumanização e precisa de cuidados urgentes. A crise reclama decisão.

É curioso como a defesa de valores e princípios parece aplicar-se de maneira seletiva. É preciso derrotar o inimigo no campo de batalha. Ensinar-lhe uma lição. Não há outra possibilidade ante alguém que comete crimes de guerra, não atenta para os direitos humanos e em particular para os direitos da população civil em situação de guerra, como reza a 4ª Convenção de Genebra. Com apoio de todas as consciências honestas solicitaram e conseguiram que o diabo fosse condenado, com ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional. Motivo? Bom, aqui a coisa não saiu muito bem. Tiveram várias ideias, mas nenhuma delas seria convincente, pois todos têm culpa no cartório e qualquer sentença nesse sentido poderia reverter contras as suas cabeças, como um bumerangue. Até que ocorreu a alguém que a retirada de crianças próximas do front de batalha poderia ser qualificada de sequestro de crianças, proibido por todas as convenções internacionais. Foi o que fizeram e o diabo corre risco de ser preso se puser os pés em qualquer lugar onde seja aplicável a jurisdição do Tribunal. Não há notícia de que as crianças tenham sido maltratadas pelo diabo. Ao contrário, o que se sabe é que estão vivas e passando bem. É preciso ensinar uma lição ao diabo, insistem, como se o diabo precisasse lições. Deve ficar claro para todos que o crime não compensa. 

E então aconteceu Gaza. Crimes de guerra, sucessivos bombardeios contra a Faixa, atingindo prédios residenciais, hospitais, colégios. Assassinato de inocentes, de mulheres e crianças, de jornalistas. Bloqueio da ajuda humanitária, de comida, água, medicamentos. Mais de 50 mil mortos registrados. Número ainda incerto, que pode aumentar. Mais de 110 mil feridos. Deslocamento forçado do total da população. Limpeza étnica. Genocídio. Que dizem os que aplaudem o homenzinho verde e condenam o diabo? Dois pesos, duas medidas. Algumas vidas são valem mais que outras. Isso incomoda. Carcome valores e princípios ardentemente defendidos e ensinados, sobretudo aos do Sul, que fazem tudo pela metade.

O editorial do Courrier International desta semana traz o título De Munich à Munich, l’enterrement de l’Occident et des droits de l’homme[5]. O editorial sublinha que Trump visa a  uma nova ordem mundial, em que a perseverança (da Rússia) em cometer crimes de guerra e a ocupar territórios pela força é recompensada, esquecendo que a mesma perseverança pode ser observada com respeito a Israel nos territórios palestinos ocupados. Dois pesos, duas medidas. É sempre assim. It’s only business.

Sempre foi assim. A ideia de não deixar ninguém para trás da Agenda 2030 peca por ter suas raízes no cristianismo. E os que não são cristãos? O que devem fazer?

A reunião da Comissão sobre Desenvolvimento Sustentável fez referência à II Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável[6], que deverá realizar-se em Doha, em novembro do corrente ano. A Cúpula pretende avançar na luta contra as inequidades, ponto central dos princípios da Carta, repetidos na I Cúpula sobre Desenvolvimento Social, em Copenhague, em 1995, recordados uma e outra vez ao longo de quase 80 anos[7] de história das Nações Unidas.

Trump 2.0 e a sua relação com o multilateralismo e, sobretudo, com as Nações Unidas é uma incógnita. Imediatamente, o que mais deve preocupar é a possibilidade de cortar, ou suspender, o financiamento dos órgãos e das agências especializadas do sistema Nações Unidas. Essa decisão poderia ter consequências devastadoras para a própria ideia de multilateralismo.

O que nos resta fazer é resistir da melhor maneira possível. It’s not only business.

*Santiago Alcázar é pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz). Artigo a ser publicado na próxima edição dos Cadernos Cris, em 20/2/2025.

 

[1] https://securityconference.org/en/

[2] https://www.theguardian.com/world/2025/feb/15/jd-vance-munich-speech-laid-bare-collapse-transatlantic-alliance-us-europe

[3] https://social.desa.un.org/csocd

[4] https://press.un.org/en/2025/soc4920.doc.htm

[5] https://www.courrierinternational.com/article/editorial-de-munich-a-munich-l-enterrement-de-l-occident-et-des-droits-de-l-homme_227749

[6] https://www.un.org/en/desa/un-hold-second-world-summit-social-development-2025

[7] Ver o artigo as Nações Unidas que precisamos em https://portal.fiocruz.br/documento/2025/02/cadernos-cris-fiocruz-informe-01-2025