Impacto da pandemia sobre o SUS: aprendizado e oportunidades
O aprendizado alcançado pela área de saúde com a pandemia de covid-19, trazendo à tona “questões absolutamente novas”, foi tema da exposição do médico Luiz Antonio Santini, pesquisador associado do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz) e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca), em videoconferência organizada pelo Fórum de Inovação e Saúde, no dia 7 de agosto de 2020. O evento contou ainda com a participação da ex-diretora da Agência Nacional de Saúde, Maria Stella Gregori; do presidente da Confederação Nacional de Saúde, Breno Monteiro; do diretor do Hospital Sírio-Libanês, Paulo Chapchap, e do médico e deputado federal Luiz Antônio Teixeira Jr., como palestrantes, e de outros profissionais de saúde que puderam enviar questões para o debate.
“Da minha geração para baixo nenhum de nós viveu um impacto tão grande e, na verdade, nós continuamos aprendendo”, observou Santini, destacando também as mudanças ocorridas para além da saúde pública, como isolamento social, mudanças na educação e na forma como as pessoas passaram a se relacionar.
Aprendemos que o Sistema Único de Saúde brasileiro é resiliente. Apesar de todas as dificuldades (...), é um sistema que tem dado respostas.
Ao abordar as evidências trazidas pela pandemia para a área da saúde, o pesquisador começou por destacar a importância do SUS. “Aprendemos que o Sistema Único de Saúde brasileiro é resiliente. Apesar de todas as dificuldades (...), é um sistema que tem dado respostas. Respostas talvez aquém do que seria possível se tivesse uma melhor estrutura, se tivesse um financiamento mais adequado, uma cooperação maior entre os diversos entes governamentais e a própria sociedade, mas é necessário reconhecer essa capacidade, essa resiliência que o SUS tem.”
Apesar da magnitude desse impacto, que repercutiu de forma global pelos países, o pesquisador explicou que discordava da ideia de que a pandemia deveria ser enfrentada como uma guerra. “Não gosto desse conceito por uma razão simples: o vírus não tem um propósito. Para que haja uma guerra é preciso que haja um propósito, alguém confrontando o outro”. Conforme explicou, numa guerra, “admite-se desde o início a existência de efeitos colaterais”; no caso da pandemia, os profissionais de saúde são seguramente as maiores vítimas dos efeitos colaterais.
Santini destacou que considerava os conceitos de saúde pública e saúde privada muito restritivos. Em sua opinião, o que existem são prestadores públicos e prestadores privados, e a saúde envolve diversas áreas da sociedade, não apenas a organização das ações no nível das organizações sanitárias. “Nessa pandemia, isso é demonstrado com máxima clareza. Estamos diante de uma situação de muita complexidade”, disse.
O SUS é bastante novo e está sendo reconhecido pela primeira vez pela sociedade como um todo. Está sendo abraçado pela sociedade brasileira
A pandemia representa, na opinião do pesquisador,uma grande oportunidade para o SUS. “O SUS é bastante novo e está sendo reconhecido pela primeira vez pela sociedade como um todo. Está sendo abraçado pela sociedade brasileira”.No entanto, ele sublinha,é preciso trazer o que está sendo aprendido e o que foi criado para dentro do sistema.
Alguns pontos mereceram destaque na avaliação feita por Santini das lições trazidas pela pandemia. “Em relação à gestão e política de saúde, a pandemia tornou visível a importância de três componentes fundamentais para qualquer construção de ações de saúde: conhecimento, liderança e confiança. Nesse sentido, para o diálogo entre prestadores públicos e privados numa forma sistêmica, o primeiro elemento é a confiança”.
O papel dos meios de comunicação e das revistas científicas na discussão dos limites e possibilidades da ciência também foi ressaltado pelo pesquisador. “Muitas vezes somos arrogantes na afirmação de determinados princípios e conceitos, quando justamente a ciência só é chamada de ciência porque é capaz de modificar um conceito até então estabelecido”, explicou, destacando a Comunicação como elemento desafiador nesse processo durante a pandemia.
A competência técnica existente no país foi outro ponto sublinhado em sua exposição. “Ela precisa avançar muito mais, mas mostramos que somos capazes de atuar com um grau de competência bastante importante. Temos capacidades que precisam ser desenvolvidas e estimuladas”, afirmou.
Temos capacidades que precisam ser desenvolvidas e estimuladas
Os desafios propostos durante a pandemia, segundo Santini, têm resultado na produção de novos conhecimentos que estão sendo apropriados e disseminados. “As pessoas estão sendo capacitadas e treinadas. Então, existe uma capacidade útil do sistema de saúde brasileiro, de uma maneira em geral, que precisa ser valorizada e incorporada como um bem”.
A capacidade tecnológica brasileira na área da saúde foi responsável, em sua opinião, pelo país ter conseguido responder com certo grau de eficiência a desafios extremamente complexos durante a pandemia. Santini enalteceu a reputação de instituições como o Instituto Butantã e a Fiocruz na produção de vacinas e medicamentos. No entanto, lembrou que o complexo industrial da saúde, apesar de representar 9% do PIB brasileiro, não tem sido valorizado e luta hoje com dificuldade.
O complexo industrial da saúde, apesar de representar 9% do PIB brasileiro, não tem sido valorizado e luta hoje com dificuldade
A partir dessa avaliação, o pesquisador sugeriu a elaboração de uma agenda de planejamento para o SUS. “Às vezes, essa situação toda que estamos vivendo nos faz oscilar entre uma posição muito otimista e outra muito pessimista, mas, na verdade, se olharmos com cuidado tudo que está acontecendo, esse impacto da covid- 19 no SUS traz oportunidades, e uma dessas oportunidades é termos um processo de planejamento de médio e longo prazo”.
Santini lembrou que, ao longo dos últimos trinta anos, a organização política, social e sanitária do Brasil modificou-se muito. “A realidade epidemiológica e demográfica mudou. O país envelheceu e se urbanizou. Essa urbanização trouxe, por exemplo, uma diferença muito grande no modelo de municipalização, que, hoje, já pensando para as regiões metropolitanas, é anacrônico. Ele não resolve mais as grandes necessidades de organização e gestão do sistema de saúde”. Por isso, a seu ver, o processo de planejamento com uma visão de médio e longo prazo torna-se tão necessário.
Ele defende que esse planejamento deve aproveitar a experiência com a covid-19 e fortalecer o modelo de incorporação tecnológica, criando formas modernas e eficientes, capazes de costurar a relação público-privado com o sistema de informação e implementando novas tecnologias de gestão e comunicação. Além disso, o pesquisador sugere que seja aproveitado o parque (industrial tecnológico), e, sobretudo a capacidade de formação de recursos humanos. “Nós dispomos hoje de uma base instalada de formação de pessoal extremamente importante e isso precisa ser considerado nesse processo de planejamento que considero como um dos grandes desafios do sistema único de saúde”, explicou.
Santini sublinhou, ainda, a necessidade de se superar aquilo que foi mais marcante na avaliação dessa epidemia no Brasil: a desigualdade social. “O Brasil é um país tragicamente desigual e esse é o substrato de onde devemos partir para discutir o futuro da organização dos serviços de saúde. Se não partirmos da desigualdade, não conseguiremos efetivar o objetivo do Sistema Único de Saúde e também dos prestadores privados no país”, disse, observando que estamos no caminho certo, de aprofundar, valorizara experiência adquirida. “Não podemos ter uma experiência tão trágica, tão dramática na saúde pública global e não sermos capazes de tirar proveito e conhecimento para melhorar o processo de saúde no país”.
Não podemos ter uma experiência tão trágica, tão dramática na saúde pública global e não sermos capazes de tirar proveito e conhecimento para melhorar o processo de saúde no país
Ao responder ao professor e pesquisador da Fiocruz Daniel Soranz, se existe algum país no mundo que pudesse servir de referência para melhorar o nosso sistema, considerando nossas assimetrias e desigualdades, Santini fez uma reflexão sobre o futuro. “O modelo que me inspiraria seria o modelo do NHS, sistema de saúde inglês, que está nesse momento fazendo exatamente aquilo que sugeri aqui, um processo de planejamento de médio e longo prazo, entendendo inclusive que o impacto da pandemia trouxe a necessidade de reflexão sobre alguns de seus pontos”.
O pesquisador lembrou que o modelo inglês foi um dos que serviram de inspiração na construção do Sistema Único de Saúde do Brasil e é o que mais se aproxima da estrutura atual do modelo brasileiro. “No final da década de 1970, início dos anos 80, tínhamos alguns modelos. Os principais eram os dos países socialistas, mas nenhum deles se mostrou, ao longo do tempo, muito apropriado, a não ser o modelo cubano, de cobertura absolutamente integral, mas que tem um grave problema de acesso à tecnologia e à inovação. Embora os cubanos tenham grande capacidade tecnológica e de inovação, eles não têm recursos”.
Outros modelos como o alemão, que é baseado no financiamento do tipo previdência, ou o francês representam, em sua opinião, uma rediscussão de aspectos já superados no Brasil. “Devemos insistir na configuração do sistema de forma semelhante à do NHS, embora o Reino Unido tenha sofrido um impacto tremendo da covid tanto como os EUA, que não têm nem sistema de saúde”.
Acesse a íntegra da videoconferência abaixo: