Retórica da ‘guerra à Covid’ é equivocada – por Luiz Antonio Santini
A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 vem levando a mudanças comportamentais e das organizações sem precedentes na história da humanidade.
Tanto em nível individual como na coletividade, o que parecia uma ameaça –minimizada por alguns dirigentes – tornou-se realidade avassaladora, levando a milhares de mortes e a uma desorganização no atendimento médico e hospitalar em todo o mundo.
Embora outras doenças, entre elas as crônicas como câncer, tenham expressão epidemiológica muito maior em incidência e mortalidade, o curso de uma pandemia provoca sobrecarga insuportável nos serviços de saúde, pela rapidez com que se desenvolve. Com isso, também expõe de forma aguda situações frequentes no dia a dia desses serviços, que nem sempre são percebidas. Um exemplo é o acesso desigual aos serviços de saúde, em que pacientes não são admitidos de acordo com a gravidade da doença. Condições socioeconômicas do paciente, ou escassez e má distribuição da oferta de serviços são os fatores que determinam a prioridade em receber o melhor tratamento, em vez de isso se dar no melhor momento da evolução de sua doença.
A pandemia é uma oportunidade de se perceberem desigualdades também no alcance das medidas propostas para prevenir, proteger e tratar das pessoas. As medidas de contenção, com recomendação de permanência em casa, bem como a garantia de medidas de higiene básicas e de afastamento sanitário são incompatíveis com a situação de moradia e saneamento de uma imensa parte da população do Brasil e de várias partes do mundo.
Os lideres mundiais vieram percebendo a importância sanitária, social e econômica da pandemia, avançando nas iniciativas de contenção e isolamento sanitário, também induzidos pela pressão da Organização Mundial da Saúde (OMS) e por outras instâncias de saúde pública regionais e locais, bem como da comunidade acadêmica.
Esse cenário complexo, difícil de manejar e gerador de perplexidade desencadeou uma retórica de guerra contra a Covid-19, que, a meu ver, embora mobilizadora, não é apropriada.
Interesses econômicos, sempre presentes e ativos até mesmo nas crises humanitárias, bem como uma cultura já incorporada na própria sociedade, imersa no paradigma da busca de uma bala mágica para eliminar o inimigo, dão suporte a essa visão belicosa.
A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país.
Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitada, é seguramente insuficiente. Uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere
Essa visão, no caso de uma pandemia, além de limitada, é seguramente insuficiente.
Uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.
É claro que uma vez desencadeada uma epidemia ou pandemia, a ciência deve ser capaz de responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias. Isso não significa, no entanto, entrar em guerra.
Nos próximos meses, haverá uma enorme alocação de recursos em todo o mundo na busca da contenção dessa pandemia, como talvez nunca tenha acontecido – apesar de termos que continuar contabilizando um grande número de casos, mortes e consequências ainda desconhecidas. Nada disso evita o risco de uma próxima pandemia, que será fruto desse mesmo desequilíbrio, se nada for feito. Se quisermos de fato aprender alguma coisa com o momento que estamos vivendo, precisamos modificar o atual modelo de desenvolvimento e progresso. Modelo gerador de desigualdades intoleráveis, que nos deixam mais vulneráveis diante de uma situação desconhecida.
Yuval Harari, em artigo no Financial Times, em 21/03/2020, entende que essa tempestade irá passar e que as escolhas que fizermos agora poderão mudar nossas vidas pelos próximos anos. Ele conclui que a humanidade terá que fazer uma escolha para um futuro: ou iremos pela via da desunião, ou adotaremos o caminho da solidariedade. Ou seja, preservamos a civilização ou escolhemos a barbárie.
Creio que é disso que se trata.
* Médico, ex-diretor do Inca. Pesquisador associado do CEE-Fiocruz.
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