‘Dicionário de Favelas Marielle Franco’: 5 anos divulgando a produção e a cultura das favelas e periferias

‘Dicionário de Favelas Marielle Franco’: 5 anos divulgando a produção e a cultura das favelas e periferias

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Logomarca do Dicionário de Favelas Marielle Franco, com texto nas cores laranja e roxa, acompanhados do desenho de uma pipa nas mesmas cores

O Dicionário de Favelas Marielle Franco está completando cinco anos, em 2024, celebrando o sucesso em seus objetivos de fomentar o intercâmbio, a produção e a divulgação dos conhecimentos sobre as favelas, “de forma coletiva, horizontal e decolonial”, e traçando planos para ampliar seu alcance. Lançado em 2019, no Instituto de Comunicação e Informação Científica em Saúde (Icict-Fiocruz), o Dicionário começou a ser formulado em 2016, por meio de uma rede formada por lideranças comunitárias, instituições acadêmicas e coletivos, que hoje compõem o conselho editorial. Instalado na plataforma virtual wiki (a wikiFavelas), aberta, gratuita e livre , é colaborativo e organizado em formato de verbetes que podem ser produzidos e enviados por qualquer pessoa inscrita como colaboradora.

O projeto foi concebido a partir de uma percepção da pesquisadora Sonia Fleury, do CEE-Fiocruz, coordenadora do Dicionário, ao iniciar um trabalho de pesquisa em favelas, no início da década de 2010. Enquanto a saúde coletiva havia alcançado alto grau de institucionalização, possuindo uma rede de produção e divulgação científica composta por inúmeras instituições, observou Sonia, o conhecimento sobre favelas continuava fragmentado em espaços e campos disciplinares diversos, em contraste com sua “potência emergente”, representada por centros culturais, museus, lideranças, coletivos de jovens, entre outras iniciativas, em busca de reconhecimento. Nascido como Dicionário Carioca de Favelas, passou em seguida a se chamar Dicionário de Favelas Marielle Franco, em homenagem à vereadora assassinada, expandindo seu âmbito nacional e internacional.

“O desafio permanente dessa proposta é superar estereótipos e preconceitos – raciais, territoriais e de gênero – que propiciam o apagamento de sua memória e cultura e, dessa forma, a reprodução da desvalorização da população das favelas, promovendo assim sua exclusão e superexploração”, destaca Sonia Fleury.

Diferentemente de um dicionário físico, a plataforma digital wikifavelas.com.br é uma obra em permanente construção, ampliação e transformação. Um exemplo desse encaminhamento foi a inclusão da temática da Covid-19 entre os temas contemplados, uma demanda dos próprios atores mobilizados nas favelas no enfrentamento à pandemia. “Grupos que atuam nas favelas nos procuraram e tivemos que abrir um setor inteiro sobre o tema, que não estava previsto, onde foram incluídos verbetes sobre busca de recursos, iniciativas de comunicação, cartilhas, painéis de dados. Tudo foi para lá, construindo-se um bando de dados fantástico de como a favela atuou na pandemia”, relata Sonia, em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, destacando que o tema foi depois ampliado de modo a abranger conteúdos sobre a saúde nas favelas.

O Dicionário já abrange verbetes de diversos estados (como São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, entre outros) e países (Argentina, México, Peru, Uruguai, África do Sul). No entanto, sendo sua origem e sua base o Rio de Janeiro, a maior parte dos verbetes referem-se a essa região. A equipe busca, agora, ampliar essa abrangência, contando com o apoio da Fiocruz e com a articulação nacional da instituição. “Queremos difundir esse trabalho e superar o perfil de projeto localizado”, anuncia Sonia, destacando que o Dicionário passa agora a ocupar uma sala própria, nas instalações do Icict do Campus Maré. “Simboliza um avanço na institucionalização do projeto dentro da Fiocruz”, considera.

 

Verbetes, acessos e repercussão

Os verbetes do Dicionário de Favelas Marielle Franco incluem fotos, vídeos, poemas, entrevistas, biografias, resumo de livros e demais formas de manifestação, escrita ou oral, relacionadas ao contexto das periferias e favelas, do Brasil e do mundo. “Começamos com verbetes textuais. Depois, nos demos conta da importância da linguagem oral e buscamos adaptar a parte técnica da plataforma para abrigar também vídeos, áudios e fotos”, relata Sonia. “O banco de dados é fenomenal para quem estuda o tema”.

A plataforma contém mais de 2 mil verbetes cadastrados – só em 2023, foram criados mais de 600 –, contando com cerca de 1,4 mil colaboradoras e colaboradores e abordando temáticas relacionadas a associativismo e história, políticas públicas e economia, processos culturais e de socialização, bem como à Covid-19 nas favelas.

Estão contabilizados cerca de 9 milhões de acessos à wikiFavelas – o que destaca a plataforma como a quinta mais acessada na Fiocruz –, sendo 60 mil acessos únicos por mês.

O impacto desses números vem ultrapassando o âmbito das redes. Conforme relata Sonia, por conta da abrangência crescente do Dicionário, a equipe vem sendo convidada para eventos e projetos. Um exemplo é a participação no grupo de consultores que trabalhou com o IBGE para a mudança do conceito de favelas, “que vinha desde os anos 1970, com viés extremamente preconceituoso”. O conceito de aglomerados subnormais deu lugar ao de favelas e comunidades urbanas. “Isso tem impacto grande nas políticas públicas”, observa Sonia, explicando que o novo conceito retira o foco da ideia de propriedade e do entendimento de que se não tem propriedade não tem direitos.

O reconhecimento do trabalho realizado tem valido também o apoio de emendas parlamentares a iniciativas relacionadas ao projeto, como cursos, criação de um repositório, realização de eventos, entre outras. “A plataforma passou a ser reconhecida, de fato, como um espaço em que o conhecimento sobre favelas pode ser buscado e difundido”, ressalta Sonia Fleury.

A plataforma vem sendo enriquecida também com a produção acadêmica das universidades e outras instituições de pesquisa sobre favelas. Entrevistas, levantamentos, análises e outras produções que ficariam restritas aos respectivos pesquisadores, vêm se tornando verbetes do Dicionário, por iniciativa dos próprios pesquisadores, que procuraram a equipe. “O Dicionário já é um banco de dados buscado por alunos fazendo TCC, mestrado, doutorado, que o consultam e referenciam, como lugar de conhecimento acumulado”.

 

Ações paralelas

O projeto do Dicionário está associado também a realização de oficinas, grupos de estudo, ciclos de debates e cursos de formação, visando ampliar o acesso das favelas a tecnologias e saberes que permitam que todos as pessoas sejam capazes de contar e preservar suas memórias, “intensificando a ação coletiva e incidindo politicamente sobre o futuro das cidades”. Entre essas iniciativas, está um Ciclo de Debates, com lives reunindo lideranças para abordar assuntos diversos, transformados em verbetes depois, bem como uma seção de cursos, presenciais ou virtuais, para jovens lideranças e profissionais de favelas.

Foram implementados o curso Tamo Junto, para jovens de coletivos que se destacaram no combate à pandemia em seus territórios, e o Curso de Acervos Marielle Franco, voltado a atender a demanda de grupos que atuam na preservação dos acervos em territórios de favelas e periferias. Como desdobramento, foi desenvolvido no Icict o Repositório dos Saberes Populares, em colaboração com o Centro de Estudos, Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão (Cepedoca), que já incorporou seu acervo ao repositório.

Para 2024, estão programados o curso Fé nas Favelas, para integrantes de grupos religiosos e nova edição do Tamo Junto, para territórios de Niterói e São Gonçalo, ambos com apoio de emendas parlamentares. Além disso, a partir dos verbetes, começaram a ser desenvolvidas propostas de material didático para o ensino médio e superior.

Duas novas linhas de atividade, ainda, estão em andamento, fruto de colaboração com a equipe da professora Palloma Menezes, do Iesp/Uerj e apoio da Vídeo Saúde Distribuidora, da Fiocruz: o projeto Memória Viva que realiza entrevistas com lideranças tradicionais das favelas, e um mapeamento dos grupos que produzem conhecimento e memórias nesses territórios, no Rio de Janeiro.

Com a Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que coordena o projeto Geração cidadã de dados: cartografia dos coletivos de comunicação comunitária para promoção da saúde, o objetivo é mapear coletivos de comunicação comunitária localizados em bairros da Área de Planejamento 3.1 (28 bairros entre Bonsucesso e Ilha do Governador) do município.

Além dessas iniciativas, a equipe do Dicionário mantém canais nas redes sociais, como Instagram e Facebook, e colunas em espaços como o blog Outras Palavras, além de um Boletim Informativo mensal enviado aos usuários cadastrados na plataforma.

 

Wikipedia

A relevância do Dicionário de Favelas Marielle Franco pode ser medida, ainda, pelo contato realizado com a Wikipedia Internacional, com a qual a equipe entrou em contato no início do projeto, para troca de informações técnicas, tendo em vista que seria usada a plataforma wiki. “Eles nos perguntaram por que não fazíamos o dicionário lá. Explicamos que temos princípios diferentes. Na Wikipedia, há um único texto sobre determinado tema, que vai sendo modificado, reelaborado, forjando um consenso que não existe na realidade. Temos uma visão mais pluralista em que o conflito de olhares pode aparecer”, explica Sonia.

Mais tarde, foi a vez de a Wikipedia procurar a equipe do Dicionário. “Eles haviam se dado conta de que quem escreve aqueles verbetes são em geral pessoas do Norte global, em geral, homens brancos. E queriam saber como conseguimos nos aproximar, no Sul, de um outro tipo de população para produzir no Dicionário”, relata Sonia. “Foi uma conversa interessante”.

 

Marielle Franco

Marielle Franco é homenageada pelo Dicionário de Favelas por sua luta em defesa dos direitos humanos, em especial das mulheres negras, dos moradores de favelas e da população LGBTI. Eleita em 2016, aos 37 anos, com expressiva votação, como vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle vinha se consolidando como liderança política na defesa de valores democráticos e práticas políticas coletivas, que mobilizaram a juventude.

Nascida e criada na favela da Maré, estudou Sociologia e tornou-se mestre em administração pública com dissertação sobre a política de segurança conhecida como UPP (Unidades de Polícia Pacificadora). Entusiasta do Dicionário de Favelas, contribuiu com um verbete sobre esse tema (UPP – A redução da favela a três letras).

Marielle foi executada em 14 de março de 2018, em crime político ainda não inteiramente elucidado. “Buscaram calar sua voz, assim como fizeram com a de tantas outras lideranças populares. Mas, sua trajetória deixou muitas sementes e o Dicionário de Favelas se compromete a difundir os valores pelos quais ela viveu e morreu”, diz Sonia.

Leia aqui: O legado de uma nova forma de lutar e de fazer política

 

Nova identidade visual

Como marco das comemorações dos cinco anos do Dicionário de Favelas Marielle Franco, sua identidade visual ganhou uma atualização. A proposta foi trazer leveza, movimento e “uma nova personalidade para a marca”, explicam os idealizadores, designers do Icict/Fiocruz. A busca por acessibilidade também orientou o trabalho, pelo o uso de cores, imagens, fontes adequadas a todo público que utiliza plataformas digitais, de modo a facilitar o acesso ao conteúdo.

A pipa, que integra a nova identidade, observam, remete a um “patrimônio cultural, histórico e imaterial no Rio de Janeiro”, e à ideia de movimento. "A pipa lembra o tempo em que as crianças podiam correr tranquilas nas ruas, livres e soltas, colorindo o céu com toda liberdade na favela”, considera a pesquisadora Cleonice Dias, que foi representante da Cidade de Deus no conselho editorial do Dicionário. “Lembra a utopia de estar hoje lutando para afirmar a nossa potência, a nossa resistência, a nossa resiliência, toda a nossa garra de ter propostas para a favela, para a cidade, para o país, para a preservação da vida, do mundo, na Terra".

* Com informações da organização do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

 

Dicionário de Favelas Marielle Franco
Telefone: (21) 97593-7719
E-mail: wikifavelas@gmail.com
Site: www.wikifavelas.com.br