Redução da dívida pública requer Estado forte, não mínimo, aponta debate sobre financiamento do SUS no Abrascão
A difundida ideia de que a redução do tamanho do Estado é caminho para reduzir a dívida pública é equivocada; não são coisas antagônicas, como se quer fazer crer, e podem caminhar juntas. Essa afirmação deu o tom da apresentação e análise da economista e pesquisadora Esther Dweck, na mesa redonda A disputa pelos fundos públicosno Brasil e as estratégias para o financiamento sustentável do SUS, realizada em 22/11/2022, no Abrascão. Esther, que integra o projeto de pesquisa do CEE-Fiocruz Desafios do SUS no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas – CEIS 4.0, compartilhou a mesa com os pesquisadores Lenir Santos, do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), e Carlos Ocké-Reis, do Ipea, com coordenação de Erika Aragão, da UFBA.
Esther defendeu uma “mudança geral” no entendimento quanto ao papel do Estado na garantia de um SUS de qualidade para todos. “A ausência do Estado é que veio promovendo todos os problemas que observamos”, afirmou, explicando que houve crescimento importante do tamanho Estado, em nível global, até a década de 1980, com vistas a garantir direitos sociais à população. “Um movimento muito generalizado que se interrompe com a ascensão neoliberal. O Estado para de crescer, mas não diminui, nem mesmo na Inglaterra”, esclarece. “Essa ideia de redução do tamanho do Estado não existe nem no período neoliberal”.
Para Esther, os gastos sociais têm importância no crescimento econômico, sendo necessário, no entanto, levar em conta, em paralelo, o “lado tributário”, que no Brasil foi menos desenvolvido rumo à busca pelo bem-estar social. “Sempre houve um lado capenga na tributação no país. Com elevação da tributação progressiva, alguns países conseguiramampliar seus Estados, e a dívida pública caiu sem problemas. Foi justamente quando o Estado parou de crescer que as dívidas aumentaram”, analisou. “É muito importante entender que equilíbrio fiscal é resultado, não causa. E a ampliação do Estado não tem antagonismo com a situação fiscal. Ao contrário, pode ser solução para a situação fiscal”, apontou.
Conforme observou, a Constituição de 1988 consolidou as bases do Estado de bem estar social que faltava ao projeto de desenvolvimento do país, mas, a partir de 1989, tem início um período neoliberal no Brasil. “Muitas vezes, os objetivos macroeconômicos foram utilizados como forma de criar obstáculos aos gastos sociais”, observou, considerando que a Emenda Constitucional 95 “acabou com a possibilidade de ampliação dos gastos sociais”.
Independentemente da pandemia, já em 2017, 18 e 19, registrou-se processo de lenta recuperação econômica, disse. “Se não mudar a EC95, o governo eleito não poderá fazer muita coisa. A PEC da transição dará um alento para 2023, mas não resolverá o problema. É preciso uma nova regra que permita ao governo eleito implementar o que está em seu programa, expansão dos direitos sociais e dos gastos em saúde”. Conforme lembra, a instância que pode mexer nos gastos em saúde e em educação é o governo federal, que tem instrumentos para isso, não os entes subnacionais – estados e municípios. “O governo federal tem papel fundamental para fazer a expansão rápida”.
Essa ideia de redução do tamanho do Estado não existe nem no período neoliberal (Esther Dweck)
A pesquisadora destacou o projeto levado à frente pelo CEE-Fiocruz, de interação entre saúde e base produtiva, que pode ser estimulada, por um novo padrão de desenvolvimento. “A vitória eleitoral barrou a destruição, mas é preciso reconstruir”.
Lenir Santos, presidente e idealizadora do Idisa, fez um resgate do período de conformação do SUS, lembrando que o sistema, concebido na Constituição de 1988, foi implementado no período Collor. “Em 1990, o Inamps foi vinculado ao Ministério da Saúde,pelo decreto 99.060, de forma totalmente acrítica, quanto ao que o SUS e o Inamps significavam”, observou, lembrando, ainda, que a estrutura do governo Collor concebeu o SUS como departamento do Ministério da Saúde, “uma aberração; o SUS já começa a ser implantado de maneira inadequada”.
A pesquisadora considerou o período de 1988 a 2022, como o da “saga do subfinanciamento”, destacando que, em 1994, houve a desvinculação dos recursos da união (DRU), que seria provisória, mas que vigora até 2023. “Então, estamos falando de 27 anos de provisoriedade”.
O governo Collor concebeu o SUS como departamento do Ministério da Saúde, uma aberração; o SUS já começa a ser implantado de maneira inadequada (Lenir Santos)
Em 1996, prosseguiu, com a criação da CPMF, buscou-se trazer mais recurso para a Saúde, mas “ficou elas por elas porque outros recursos foram retirados”. Em 2012, a EC 29, Lei Complementar 141, que dispunha sobre os recursos dos entes federados para a Saúde, levou 12 anos para sair, o que só ocorreu em 2012, sem ainda ser cumprida. “Há dez anos não se cumpriu seu artigo 17, sobre o rateio federativo. Quando olhamos para a forma como a União faz transferência de recursos aos demais entes da federação, o que é obrigatório pela Constituição, isso se dá mais no sentido de pagamento de serviços e não no sentido de rateio federativo”, avaliou.
Lenir sublinhou, também, a importância de se levar em conta a mudança do perfil da sociedade, dos anos 1980 aos dias atuais, o que implica definição de um novo modelo assistencial. “Nos anos 1980, a expectativa de vida era de 62,5 anos e, em dados de 2019, a expectativa é de 76,5 anos. É outra sociedade”, disse, defendendo, ainda, a volta das políticas intersetoriais. “Ambiente, saneamento, assistência social têm que andar junto com as políticas de saúde”.
Por fim, Lenir destacou “as implicações do entendimento da saúde como mercadoria”, da associação entre “saúde e consumo, em vez de saúde e direito”, mencionando a lei 13.097/2015, que, em seu artigo 142, “abriu a saúde para o capital estrangeiro em 100%”. Para Lenir, o tema deve ser trazido à discussão sobre financiamento. “Temos que estimular o debate ampliado sobre o financiamento da saúde; despertar o sentimento de pertencimento da população ao SUS, alcançado na pandemia”.
Carlos Ocké trouxe para a mesa a proposta da Associação Brasileira de Economia da Saúde de financiamento do SUS, voltada a uma mudança de regra no cálculo do piso federal da Saúde, congelado por conta da EC-95 [pela atual regra o piso é calculado em 15% da receita corrente líquida de 2017, limitado à atualização pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)]. “Nenhum debate foi feito sobre isso”, disse, lembrando que “sem a organização e mobilização popular” esse cenário não mudará. “Essa compreensão é fundamental, disse, citando o Conselho Nacional de Saúde, a Frente pela Vida, e o conjunto das entidades da Reforma Sanitária. “Sem mobilização da sociedade não se avança em direção a um projeto democrático e popular, que pressupõe a superação do neoliberalismo e o isolamento da extrema direita no país”.
Como observou Ocké-reis, na baixa do ciclo econômico, o gasto em Saúde não pode cair. “Até porque, em momentos de crise, o sistema de saúde é mais pressionado. A proposta da Abres procura garantir o crescimento automático do gasto público. Tem que haver mudança nas regras fiscais, com alguma estabilidade fiscal, mas com crescimento e inclusão social e sustentabilidade ambiental”, apontou. “Saúde desconcentra renda; saúde agiliza a cadeia produtiva; saúde, a partir dos investimentos em vacina e medicamentos, favorece nossa relação com o resto do mundo. Para além da melhoria da qualidade de vida, há uma externalidade positiva que torna a política de saúde fundamental para acumular forças. Investir na saúde é estratégico para a mudança na correlação de forças no país”.
Na baixa do ciclo econômico o gasto em saúde não pode cair. Até porque, em momentos de crise, o sistema de saúde é mais pressionado (Carlos Ocké-Reis)
O economista observou que a indexação da política de financiamento do SUS a alguma variável macroeconômica leva a redução do gasto em Saúde. “Se há baixa do ciclo e o movimento é procíclico – “ou seja, acompanha o movimento do ciclo” –, o gasto em Saúde diminui”. A ideia é que a nova regra do piso proposta seja acíclica. “Gastamos muito pouco em saúde, é preciso entender isso”.
De acordo com Ocké, a proposta da Abres busca anular uma característica estrutural do financiamento da Saúde no Brasil que traz uma contradição: “um modelo universalista em que o gasto privado é maior do que o gasto público”.
Ele destacou a importância da regulação dos mercados e do fortalecimento do Estado na saúde, dentro e fora do SUS, bem como a elevação do gasto público federal para que se eleve o gasto público geral no setor. “Quem tem condições de puxar o gasto público de 4% do PIB para 7% é o governo federal. A participação do governo federal no gasto público em saúde tem caído. É preciso que se eleve, desonerando estados e municípios e criando condições de os municípios refrearem o crescimento das organizações sociais”.
Ocké propôs “botar de cabeça para baixo a ideia de que o problema do SUS é de gestão, eficiência, eficácia e efetividade”, difundida pelas agências multilaterais. Ele apresentou dados do gasto público per capita em saúde o Brasil (610 dólares), em relação a países como França (4,1 mil dólares), Austrália (4 mil) e do Canadá (3,8 mil). Boa parte dos problemas de gestão do SUS decorre dos problemas de financiamento. Para gastar mais e melhor no SUS, são necessários mais recursos financeiros e organizacionais e não menos”.