Primeiros passos do G20 sob a presidência do Brasil
Antes mesmo de assumir a presidência, o governo brasileiro divulgou o lema Construindo um mundo justo e um planeta sustentável e as prioridades propostas para o G20 sob sua liderança: (1) inclusão social e combate à fome e à pobreza; (2) transições energéticas e promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental; e (3) reforma das instituições de governança global. Essas prioridades já amplamente conhecidas orientam a atuação da presidência brasileira e delas são derivadas as prioridades específicas de cada área temática do G20, de acordo com a nota conceitual divulgada[1].
Primeiras atividades do G20 no ciclo atual
O Brasil inaugurou o primeiro ciclo de trabalhos do G20 nos dias de 11 a 15 de dezembro de 2023, com reuniões das trilhas de Finanças e de Sherpas que aconteceram em Brasília[2]. No período, o país recebeu representantes dos membros do bloco, além de países e instituições convidadas, para tratar de pontos cruciais estabelecidos nas agendas.
A reunião dos Sherpas [termo usado em alusão aos guias que atuam em altas montanhas, para denominar a trilha do G20 voltada a áreas temáticas como trabalho, saúde, meio ambiente, educação, economia etc.], emissários pessoais dos líderes do G20, foi centrada nas discussões sobre os métodos de trabalho do grupo e na aprovação das inovações brasileiras para o mandato, como a aproximação das discussões financeiras e políticas e o incentivo ao diálogo com a sociedade civil por meio da contribuição de propostas.
O sherpa brasileiro, embaixador Mauricio Lyrio, avaliou o primeiro encontro como “muito produtivo” e afirmou que, apesar de existirem diferentes formas de entendimento dos temas, as prioridades estipuladas pelo Brasil foram bem aceitas[3]. De acordo com Lyrio, o grupo concorda com o objetivo de produzirem resultados concretos, que realmente façam a diferença na vida das pessoas, especialmente nos temas do combate à fome e à pobreza.
Na sequência, a reunião conjunta inédita entre as trilhas de Finanças e de Sherpas foi idealizada para aproximar as agendas política, social e ambiental da agenda econômica e financeira[4]. O presidente Lula, em declaração durante o encontro, afirmou que a articulação entre as trilhas é essencial para o funcionamento do grupo, o qual nos últimos anos aprovou muitas declarações, notas e relatórios que nem sempre saíram do papel[5].
Já na Trilha de Finanças, uma das grandes questões presentes nos diálogos foi o financiamento para países emergentes[6]. Nesse contexto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, iniciou seu discurso com esse apelo, destacando os altos níveis de endividamento e a necessidade de reformas para uma distribuição mais equitativa de recursos globais, além de soluções para a dívida de países pobres e de renda média. Tal preocupação também foi transposta para o financiamento climático, sobre o qual o ministro enfatizou a importância de rever o funcionamento dos principais fundos climáticos existentes, a fim de garantir que o dinheiro chegue para os países que mais precisam de recursos e seja possível pensar numa transição energética justa.
Em briefing concedido para a imprensa, Mauro Vieira informou haver consonância sobre a terceira prioridade brasileira, com o entendimento de que as principais instituições multilaterais, como ONU, FMI e Banco Mundial, precisam de reformas para se adaptarem aos desafios atuais
Janeiro marcou o início dos primeiros encontros dos Grupos de Trabalho (GT) e das Forças-Tarefa (FT), que se estenderam até fevereiro. O intuito dessas reuniões preliminares é o de alinhar os objetivos da presidência brasileira aos temas centrais da agenda de cada grupo, além de promover a apresentação dos representantes, prioridades e agendas de trabalhos específicas. Essas primeiras reuniões dos GTs e FTs foram realizadas de forma virtual, para reduzir custos e garantir praticidade.
Em fevereiro, foram realizadas as primeiras reuniões ministeriais presenciais do G20. A reunião de Ministros de Relações Exteriores do G20 ocorreu em 21 e 22/2, na Marina da Glória, Rio de Janeiro. O ministro Mauro Vieira iniciou o evento com um discurso que enfatizou o posicionamento brasileiro perante as guerras em curso e afirmou que não é do interesse do país viver em um mundo fraturado. Reafirmou a importância do bloco como foro essencial para debates e para o progresso na redução das tensões internacionais e na agenda de desenvolvimento sustentável: “Diante do quadro que vivemos, este grupo é hoje, possivelmente, o foro internacional mais importante, no qual países com visões opostas ainda conseguem se sentar à mesa e ter conversas produtivas”, destacou[7].
Em briefing concedido para a imprensa, Mauro Vieira informou haver consonância sobre a terceira prioridade brasileira, com o entendimento de que as principais instituições multilaterais, como ONU, FMI e Banco Mundial, precisam de reformas para se adaptarem aos desafios atuais. Especificamente sobre o Conselho de Segurança, o Brasil espera impulsionar uma reforma que inclua a adição de novos países como membros rotativos e permanentes, sobretudo da América Latina, do Caribe e da África.
Nesse sentido, a proposta de uma segunda reunião dos chanceleres foi aceita e será realizada em setembro, à margem da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York. Será a primeira vez em que o G20 se reunirá dentro da sede ONU. Ainda segundo Vieira, além desses assuntos, foram acolhidas no encontro as demais prioridades apresentadas pelo país, o combate à fome e à pobreza e a promoção do desenvolvimento sustentável em seus três pilares (social, econômico e ambiental).
Sobre a prioridade um, foi realizada a reunião da Força-Tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, uma das principais inovações impulsionadas pela gestão brasileira no G20 neste ano. A Aliança Global está sendo estruturada com base em três pilares: o financeiro, o técnico e o institucional. No pilar financeiro, a proposta é que países mais ricos e fundos doadores mobilizem recursos para auxiliar países em desenvolvimento na implementação de ações contra a fome e a pobreza. No institucional, a ideia é o comprometimento com a elaboração e implementação de políticas consideradas prioritárias.
Já no pilar técnico, a intenção é aproveitar os conhecimentos existentes de diversas experiências de políticas públicas e tecnologias sociais que foram exitosas para a redução da fome e da pobreza. No caso do Brasil, projetos como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foram apresentados como exemplos. De acordo com o cronograma de reuniões do grupo, é esperado que uma proposta mais estruturada do documento de adesão seja apresentada em julho durante reuniões ministeriais e que a Aliança seja oficialmente lançada em novembro, durante a Cúpula de Chefes de Estado e de Governo no Rio de Janeiro.
Foi realizada a reunião da Força Tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, uma das principais inovações impulsionadas pela gestão brasileira no G20 neste ano. A Aliança Global está sendo estruturada com base em três pilares: o financeiro, o técnico e o institucional
Por fim, realizou-se a 1ª Reunião de Ministros de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais do G20 Brasil. Na abertura, o ministro Fernando Hadad defendeu uma “globalização inclusiva e sustentável”, reafirmando as prioridades brasileiras: “A presidência brasileira assumiu o desafio de fazer um G20 inclusivo, em que tenhamos a chance de avançar em diversos temas que nos são caros, como o combate à pobreza e à desigualdade, o financiamento ao desenvolvimento sustentável, a reforma da governança global, a tributação justa e o problema do endividamento crônico de vários países”.
Em seu discurso, Haddad afirmou que os países mais pobres estão arcando com custos ambientais e econômicos crescentes, ao mesmo tempo que veem suas economias ameaçadas por uma crescente onda protecionista por parte dos países ricos.
O ministro alertou ainda que uma parcela significativa das receitas dos países mais pobres está seriamente comprometida pelo serviço da dívida, em um cenário de juros elevados pós-pandemia. Ainda que milhões de pessoas tenham saído da pobreza, houve substancial aumento das desigualdades de renda e riqueza em diversos países: “Chegamos a uma situação insustentável, em que o 1% mais rico detém 43% dos ativos financeiros mundiais e emite a mesma quantidade de carbono que os dois terços mais pobres da humanidade”, alertou Haddad.
Saúde nos primeiros meses do G20
A primeira reunião técnica da Força-Tarefa de Finanças e Saúde foi realizada no início de fevereiro[8]. Criada em 2021 como consequência da Covid-19 e da premente necessidade de fortalecer a Prevenção, Preparação e Resposta (PPR) a pandemias, a iniciativa visa estreitar o diálogo e a cooperação entre ambos os setores, de modo a responder de maneira eficaz a futuras emergências sanitárias[9]. Como aponta o embaixador Alexandre Ghisleni, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais (Aisa) do Ministério da Saúde: "Se não nos prepararmos para a eventualidade de uma próxima pandemia, que é uma possibilidade real e presente, seremos surpreendidos. Essa é a raiz do que estamos fazendo: construir sistemas de saúde que sejam resilientes e possam enfrentar melhor os desafios que vão certamente surgir”[10].
O Brasil apresentou o plano de trabalho previsto para o decorrer do ano e suas três prioridades, sendo as duas primeiras novidades da gestão brasileira, enquanto a terceira é uma continuidade da gestão da Índia, último país a presidir o bloco: (i) destrinchar a centralidade das iniciativas de financiamento criadas para lidar com os determinantes sociais da saúde; (ii) aumentar a mobilização de recursos para o setor da Saúde por meio da avaliação de acordos de conversão de dívidas por saúde (debt for health); e (iii) melhorar a avaliação da saúde global e das vulnerabilidades e riscos sociais e econômicos decorrentes de pandemias para priorizar respostas políticas[11].
Ainda na agenda da saúde, realizou-se de maneira virtual a primeira reunião do Grupo de Trabalho de Saúde do G20[12]. De acordo com o embaixador Ghisleni, o encontro foi bem sucedido e contou com amplo engajamento de organizações internacionais e de outros setores, como instituições financeiras, além de ter havido adesão aos temas propostos pela gestão do Brasil. “Esse nível de envolvimento nos dá esperança de alcançar resultados concretos que abordem tanto a dimensão social como a econômica da saúde. Combinar essas duas perspectivas é um dos nossos maiores esforços", afirmou Ghisleni.
O maior interesse dos participantes foi em aprofundar a discussão sobre o que tem sido uma das principais propostas do Brasil nessa pasta: a criação de uma Aliança para a Produção Regional e Inovação[13]. A iniciativa tem como objetivo criar uma rede que una os principais atores, incluindo países, academia, setor privado e organizações internacionais, para pesquisa, desenvolvimento e produção de vacinas, medicamentos, diagnósticos e insumos estratégicos. Os próximos passos do GT são justamente abordar os detalhes sobre como essa iniciativa será concretizada e alcançar o consenso dos membros até a reunião ministerial do Grupo, que ocorre em outubro deste ano. "O fato de não termos enfrentado questionamentos fundamentais sobre o interesse de lançar uma iniciativa nessa área indica que há um terreno fértil para avançarmos", destacou o chefe da Aisa. Não menos importante, as outras prioridades específicas da saúde também foram discutidas, com boa recepção pelos representantes dos demais países: preparação e respostas a pandemias, equidade no acesso à saúde, promoção de saúde digital e as relações entre mudanças climáticas e saúde.
Grupos de Engajamento
No período analisado, os diversos grupos de engajamento ao G20, como o T20 (Think Tanks), C20 (Sociedade Civil), S20 (Ciência), B20 (Negócios), entre outros, também iniciaram seus trabalhos mobilizando seus públicos para produzirem suas propostas a serem apresentadas ao G20, e espera-se uma maior permeabilidade oficial às contribuições, inclusive com a realização da Cúpula Social do G20, logo antes da Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo, em novembro de 2024.
De acordo com as informações e análises disponíveis, os primeiros passos da presidência brasileira do G20 estão firmes no sentido de que as atividades realizadas não frustram expectativas até o momento. Nesse período deu-se a consolidação das posições, propostas e prioridades brasileiras e, nas primeiras reuniões, foram recebidas as impressões e opiniões dos demais membros do grupo e países e instituições convidadas. As informações são de uma boa recepção pela grande maioria dos participantes e uma simpatia pelas proposições brasileiras
Considerações finais
De acordo com as informações e análises disponíveis, os primeiros passos da presidência brasileira do G20 estão firmes no sentido de que as atividades realizadas não frustram expectativas até o momento. Nesse período deu-se a consolidação das posições, propostas e prioridades brasileiras e, nas primeiras reuniões, foram recebidas as impressões e opiniões dos demais membros do grupo e países e instituições convidadas. As informações são de uma boa recepção pela grande maioria dos participantes e uma simpatia pelas proposições brasileiras.
A atuação brasileira no G20 em relação à saúde, inclusive foi elogiada pelo diretor-geral da OMS, em entrevista exclusiva concedida para o site do G20 durante visita ao Brasil: Tedros Adhanom ressaltou a necessidade de investimentos na saúde que sejam contínuos e sustentáveis, não apenas em momentos de emergências, e elogiou a presidência brasileira do fórum por colocar a saúde como prioridade na agenda global[14].
Entendendo os limites de um Fórum que agrega os países mais poderosos do mundo, muitos deles, como mencionado, com posições geopolíticas às vezes antagônicas, espera-se que a urgência das necessidades globais em diversas áreas e a condução brasileira possam levar os 19 países mais as Uniões Europeia e Africana a entrarem em acordos e tomarem ações concretas que possam contribuir de maneira relevante para um “mundo justo e um planeta sustentável” e saudável. Seguiremos acompanhando.
* Pesquisadores do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz)
[1] https://www.g20.org/pt-br/noticias/documentos
[2] Autoridades mundiais chegam ao Brasil e iniciam discussões do G20. G20. 11 dez. 2023. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/autoridades-mundiais-chegam-ao-brasil-e-iniciam-discussoes-do-g20. Acesso em: 03 fev. 2023.
[3] "Propostas da presidência brasileira foram muito bem aceitas", diz sherpa brasileiro. G20. 11 dez. 2023. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/propostas-da-presidencia-brasileira-foram-muito-bem-aceitas-diz-sherpa-brasileiro. Acesso em: 03 fev. 2024.
[4] Unificando temas estratégicos: reunião conjunta das Trilhas Sherpa e de Finanças. G20. 13 dez. 2023. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/unificando-temas-estrategicos-reuniao-conjunta-das-trilhas-sherpa-e-de-financas. Acesso em: 03 fev. 2024.
[5] "Precisamos de uma nova globalização que combata as disparidades”, defende Lula. G20. 13 dez. 2023. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/precisamos-de-uma-nova-globalizacao-que-combata-as-disparidades-defende-lula-na-reuniao-do-g20. Acesso em: 03 fev. 2024.
[6] “Queremos melhorar fluxos financeiros para países que mais necessitam”, defende Haddad. G20. 14 dez. 2023. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/queremos-melhorar-os-fluxos-financeiros-para-os-paises-que-mais-necessitam-defende-ministro-haddad-no-g20. Acesso em: 04 fev. 2023.
[7] Discurso do Ministro Mauro Vieira por ocasião da reunião de ministros de Relações Exteriores do G20 – Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2024. G20. 21 fev. 2024. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/discursos/discurso-do-ministro-mauro-vieira-por-ocasiao-da-reuniao-de-ministros-de-relacoes-exteriores-do-g20-rio-de-janeiro-21-de-fevereiro-de-2024. Acesso em: 25 fev. 2024.
[8] G20: Brasil realiza debate sobre desigualdades e financiamento da saúde. Ministério da Fazenda. 01 fev. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/fevereiro/g20-brasil-realiza-debate-sobre-desigualdades-e-financiamento-da-saude. Acesso em: 04 fev. 2024.
[9] Com o apoio do Banco Mundial, um dos principais resultados da Força Tarefa foi a criação do Fundo Pandêmico em 2022, focado em fortalecer países de baixa e média renda.
[10] “Países precisam se preparar para eventuais novas emergências sanitárias”, diz embaixador. G20. 02 fev. 2024. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/paises-precisam-se-preparar-para-eventuais-novas-emergencias-sanitarias-diz-embaixador. Acesso em: 04 fev. 2024.
[11] Força-Tarefa de Finanças e Saúde apresenta propostas durante primeira reunião de trabalho. Ministério da Fazenda. 01 fev. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2024/fevereiro/forca-tarefa-de-financas-e-saude-apresenta-propostas-durante-primeira-reuniao-de-trabalho. Acesso em: 04 fev. 2024.
[12] Com foco na redução das desigualdades, GT Saúde realiza primeira reunião no G20. Ministério da Saúde. 22 fev. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/fevereiro/com-foco-na-reducao-das-desigualdades-gt-saude-realiza-primeira-reuniao-no-g20. Acesso em: 25 fev. 2024.
[13] Proposta brasileira de aliança global por insumos médicos e vacinas é bem aceita no G20. G20. 22 fev. 2024. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/proposta-brasileira-de-alianca-global-por-insumos-medicos-e-vacinas-e-bem-aceita-no-g20. Acesso em: 25 fev. 2024.
[14] O investimento na saúde deve ser constante, defende Tedros Adhanom, da OMS, em entrevista exclusiva ao site do G20. G20. 07 fev. 2024. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/o-investimento-na-saude-deve-ser-constante-defende-tedros-adhanom-da-oms-em-entrevista-exclusiva-ao-site-do-g20. Acesso em: 25 fev. 2024.