G20: Contagem regressiva e expectativas crescentes – por João Miguel Estephanio, Pedro Burger, Paulo M. Buss e Mário Moreira
A Saúde no G20 é o tema deste artigo publicado no Le Monde Diplomatique e ampliada pelos autores para o blog do CEE. A análise, promovida pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, se dá no momento em que o Brasil assume a presidência pro tempore do grupo, a partir de 1º/1/2/2023.
O que é o G20 e quais serão as prioridades do Brasil durante a sua presidência do grupo?
O G20 (Grupo dos Vinte) é um fórum internacional composto pelos países com as maiores economias do mundo, que atualmente tem centralidade na coordenação das políticas econômicas com impacto global, com objetivo, ao menos retórico, de promoção do crescimento inclusivo, redução das desigualdades e resposta aos desafios globais. Desde a sua criação, em 1999, o grupo tem desempenhado um papel fundamental na promoção da cooperação e na busca por soluções conjuntas para os desafios econômicos enfrentados pela comunidade internacional. Após a crise financeira global em 2008, o G20 expandiu-se consideravelmente, tornando-se um fórum de chefes de Estado e de Governo dos países membros do grupo, lidando também com temas como saúde, educação, emprego, mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável (AITH; FREITAS; ESTEPHANIO, 2023).
O G20 é composto por 19 países (Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, República da Coreia, México, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia, Estados Unidos Reino Unido e Estados Unidos) e dois organismos regionais: a União Europeia e a União Africana (a última incluída em 2023). Os membros do G20 representam cerca de 85% do PIB global, mais de 75% do comércio global e cerca de dois terços da população mundial (G20 SECRETARIAT, 2023a).
As discussões governamentais no grupo são divididas em duas trilhas: (i) Sherpas (alusão aos guias que atuam em altas montanhas) e (ii) Finanças. A primeira está relacionada às áreas temáticas como trabalho, saúde, meio ambiente, educação, economia etc. Já a segunda, às questões econômicas e financeiras globais, que deram origem ao G20. Paralelamente, há discussões da sociedade civil, instituições de ciência e tecnologia, governos municipais (cidades), parlamento, empresas e negócios privados, dentre outros atores, no âmbito dos Grupos de Engajamento.
Em 1º de dezembro de 2023, o Brasil assume a presidência do G20, que se dá de maneira rotativa pelo período de um ano, compartilhada pela presidência anterior (Índia) e a que seguirá (África do Sul), na denominada troika. Sob o lema Construindo um mundo justo e um planeta sustentável, a presidência brasileira do G20 terá três prioridades: (i) a inclusão social e a luta contra a desigualdade, a fome e a pobreza; (ii) a transição energética e o desenvolvimento sustentável em suas três vertentes (social, econômica e ambiental); e (iii) a reforma das instituições de governança global, que reflita a geopolítica do presente.
Especificamente sobre a primeira prioridade, o governo brasileiro espera lançar uma Aliança Global contra a fome e a pobreza. Será criada uma força-tarefa especial com a missão de desenvolvimento da aliança global. Segundo o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, a aliança buscará angariar recursos financeiros e conhecimento para apoiar a implementação e ampliação de ações, políticas e programas de combate à fome e à pobreza em nível nacional e global. Apesar de estar sendo discutida no âmbito do G20, todos os países que quiserem aderir à aliança serão bem-vindos, conforme destaca o ministro.
Além disso, o governo brasileiro quer trazer uma participação social sem precedentes no G20. Por meio da iniciativa denominada G20 Social, o Brasil quer garantir espaço para diferentes vozes, lutas e reivindicações das populações das vinte maiores economias do mundo, bem como coordenar as atividades dos grupos de engajamento[1] e diversas outras iniciativas não governamentais que envolvam as sociedades de todos os países do grupo (AGÊNCIA GOV, 2023).
Ultrapassando os resultados esperados, como a aliança global, entre outros, o exercício da presidência do grupo confere ao Brasil o poder de pautar as discussões, sob suas perspectivas e posicionamentos, acerca dos grandes problemas globais. Considerando que o G20 não possui secretariado e que suas declarações e posicionamentos são feitos com base no consenso dos seus membros, o poder de pautar as discussões é bastante significativo para se conseguir êxito político ao fim da presidência.
Como as discussões sobre saúde global entram no G20?
Especificamente em relação à discussão sobre saúde, há um Grupo de Trabalho de Saúde (GT SAÚDE), no âmbito da Trilha de Sherpas, que, desde a sua criação, em 2017, funciona para melhorar o diálogo e informar questões importantes de saúde global aos líderes do G20. Tais questões englobam Prevenção, Preparação e Resposta (PPR) dos sistemas de saúde para emergências sanitárias, abordagem de Saúde Única (One Health), Saúde Digital, Cobertura Universal de Saúde, conformidade com as normas do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), financiamento sustentável, dentre outras (G20 SECRETARIAT, 2023b).
Para o GT SAÚDE, a presidência brasileira, liderada, neste tema, pelo Ministério da Saúde, focará na construção de sistemas de saúde resilientes e para isso, priorizará: (i) Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias, com foco na produção local e regional de medicamentos, vacinas e insumos estratégicos para a saúde; (ii) Saúde Digital, para a expansão da telessaúde, integração e análise de dados dos sistemas nacionais de saúde; (iii) Equidade no acesso a inovações em saúde; e (iv) Mudança climática e saúde, facilitando o acesso de países em desenvolvimento a tecnologias necessárias para enfrentar os impactos da mudança do clima sobre a saúde.
Para além do GT SAÚDE, as discussões sobre saúde global também são feitas na Trilha de Finanças, no âmbito da Força-tarefa conjunta Finanças e Saúde (da sigla JFHTF em inglês), criada durante a presidência italiana, em 2021. A força-tarefa visa reforçar o diálogo e a cooperação global em questões relacionadas com a Prevenção, Preparação e Resposta a pandemias (PPR), desenvolvendo acordos de coordenação entre os ministérios das Finanças e da Saúde e promovendo a ação coletiva, entre outras iniciativas. Ainda não foram divulgadas prioridades para essa força-tarefa durante a presidência brasileira; contudo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, divulgou que, no âmbito da Trilha de Finanças, as prioridades definidas pela pasta e pelo Banco Central do Brasil são trabalhar para prevenir riscos por meio de coordenação eficaz entre políticas econômicas e financeiras, colocar a desigualdade no centro da agenda macroeconômica em âmbito global, desenvolver uma nova abordagem para uma tributação internacional justa e encontrar soluções para corrigir desigualdades (AGÊNCIA GOV, 2023).
A saúde também é abordada nos grupos de engajamento, principalmente no T20 (grupo que reúne os think tanks dos membros do G20), no S20 (S de Science, grupo que reúne instituições científicas dos membros do G20) e no C20 (que reúne as organizações da sociedade civil engajadas nos debates do G20). Diferentemente da inserção nas Trilhas de Sherpas e de Finanças, onde necessariamente as discussões são tratadas no âmbito governamental, sendo, portanto, orientadas pelos princípios que norteiam a atuação do Governo Federal, as discussões sobre saúde nos grupos de engajamento é mais livre, podendo-se, inclusive, criticar cientificamente o rumo das discussões travadas e as prioridades definidas pelos governos.
O que já se sabe sobre o G20 no Brasil e como a Fiocruz participará das discussões?
No dia 1º/12/2023, devem ser publicadas notas conceituais sobre as prioridades da presidência brasileira para o G20, bem como, sobre as prioridades de todos os grupos de trabalho e forças-tarefa que compõem as Trilhas de Sherpas e de Finanças. Tais notas devem trazer em detalhes as prioridades e o contexto de suas definições, o calendário de reuniões, os resultados esperados, bem como outras informações relevantes para que tanto a sociedade em geral, quanto os outros países membros do G20 possam entender, avaliar e se engajar nas discussões.
Segundo publicação da Agência Gov, as reuniões das Trilhas de Sherpas e de Finanças terão início em 11/12/2023, em Brasília/DF. Começarão a ser negociadas as declarações e outros atos a serem adotados pelos líderes do G20 na Cúpula do Rio de Janeiro, em novembro de 2024. O calendário geral da presidência brasileira do G20 prevê ainda três fases: (i) reuniões por videoconferência em janeiro e fevereiro, abrangendo todos os quinze grupos de trabalho; (ii) reuniões técnicas e presenciais, entre março e junho, em diversas cidades e regiões brasileiras; e (iii) reuniões ministeriais, presenciais, igualmente distribuídas pelo país, de agosto a outubro. As reuniões têm cunho preparatório para a Cúpula do G20 de chefes de Estado e de Governo do Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 de novembro de 2024.
A Fiocruz mantém plena articulação com o Ministério da Saúde e com o Ministério das Relações Exteriores, no que tange a sua atuação nas discussões governamentais como instituição estratégica do Estado brasileiro, bem como com as instituições responsáveis pelos grupos de engajamento T20 – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) – e S20 –Academia Brasileira de Ciências (ABC), no que tange a sua capacidade de pesquisa e análise crítica dos temas relacionados à saúde e seus determinantes sociais.
O objetivo dessas articulações é prover conhecimento técnico-científico sobre saúde, saúde global, diplomacia da saúde, segurança alimentar e nutricional, Agenda 2030 e seus objetivos para o desenvolvimento sustentável, saúde e ambiente, entre outros assuntos relacionados aos principais desafios em saúde no mundo, seja por meio de publicações, trabalhos técnicos, ou por meio da organização de eventos paralelos à programação oficial do G20.
Há 120 anos, desde sua criação, a Fiocruz é instituição comprometida com a vida, a saúde e a qualidade da vida humana, animal e planetária. Neste sentido, está profundamente preocupada com o rumo de violência política institucionalizada que o mundo vem tomando nos últimos anos, com a eclosão de mais de uma centena de conflitos militares[2] que têm produzido milhares de mortos, feridos e descapacitados físicos e mentais, alguns para o resto de suas vidas, além de uma explosão nos gastos militares globais[3] (mais de USD 2,24 trilhões em 2022) em detrimento dos recursos para a implementação do desenvolvimento e da paz. Como resposta, tem feito discussões sobre o papel da saúde como ponte para a paz nos conflitos militares em curso, com particular preocupação com a imensa tragédia humanitaria e de saúde instalada nos territórios palestinos ocupados, principalmente em Gaza.
Entre as iniciativas que pretende propor ao grupo de saúde do G20 está a estratégia ‘saúde como ponte para a paz’, com a qual visa desenvolver compromissos comumente acordados de promoção da paz e defesa firme da vida humana e da integridade dos estabelecimentos de saúde e seus profissionais, além de coordenar e melhorar a efetividade da ajuda humanitária e de saúde dos países integrantes do G20 nos conflitos militares.
Tais propostas estão alinhadas com recorrentes pronunciamentos do presidente Lula, como na recente cúpula virtual do G20[4] e de BRICS[5], e do chanceler Mauro Vieira, inclusive na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no dia 29 de novembro[6].
Além disso, por meio do Observatório em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, coordenado pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde, a Fiocruz segue fazendo o monitoramento quinzenal do G20, e já fez e fará diversas publicações com análises críticas sobre as atividades do grupo, nos Cadernos Cris[7].
Por meio da presidência do G20, na continuidade (sem continuísmo) das presidências da Indonésia (2022) e da Índia (2023), o Brasil continuará dando voz ao Sul Global no clube dos mais ricos do mundo. Uma pista da condução brasileira pode ser retirada dos arrebatadores discursos do presidente Lula na Cúpula do G77[8], em Cuba, em de 16 de setembro de 2023; no discurso com que que abriu a 78ª. Assembleia Geral das Nações Unidas[9], em Nova York, em 19 de setembro de 2023; ou no discurso que proferiu no encerramento da Cúpula do G20[10], em Nova Deli, em 10 de setembro de 2023, quando afirmou:
Há 15 anos, este grupo se consolidou como uma das principais instâncias de governança global na esteira de uma crise que abalou a economia mundial. Nossa atuação conjunta nos permitiu enfrentar os momentos mais críticos, mas foi insuficiente para corrigir os equívocos estruturais do neoliberalismo.
A arquitetura financeira global mudou pouco e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas. Novas urgências surgiram. Os desafios se acumularam e se agravaram. Vivemos num mundo em que a riqueza está mais concentrada. Em que milhões de seres humanos ainda passam fome.
Em que o desenvolvimento sustentável está sempre ameaçado. Em que as instituições de governança ainda refletem a realidade de meados do século passado.
Só vamos conseguir enfrentar todos esses problemas se tratarmos da questão da desigualdade. A desigualdade de renda, de acesso a saúde, educação e alimentação, de gênero e raça e de representação está na origem de todas essas anomalias.
Se quisermos fazer a diferença, temos que colocar a redução das desigualdades no centro da agenda internacional.
O mundo espera muito dessa presidência brasileira do G20. Em saúde, os profissionais e pesquisadores do setor, as instituições científicas como a Fiocruz e as universidades e institutos de pesquisa, além de ativistas sociais da saúde, estão prontas para colaborar no alcance de objetivos estratégicos desta empreitada que começa a 1º de dezembro de 2023.
* João Miguel Estephanio e Pedro Burger são pesquisadores sênior do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz); Paulo M. Buss é diretor do Cris/Fiocruz; Mário Moreira é presidente da Fiocruz.
Versão revisada e ampliada pelos autores do artigo publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil online no dia 29/112023.
Referências
AGÊNCIA GOV. Presidente instala Comissão Nacional do G20, 2023. Disponível em https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/presidente-instala-comissao-nacional-do-g20, acessado em 26/11/2023.
AITH, F.; FREITAS, R. DE; ESTEPHANIO, J. M. La révision du règlement sanitaire international (RSI) au G20. Journal de Droit de la Santé et de l’Assurance Maladie, v. 37, p. 173–177, 2023.
G20 SECRETARIAT. About G20G20 INDIA. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.g20.org/en/about-g20/#members>. Acesso em: 24 ago. 2023a.
G20 SECRETARIAT. G20 - Background Brief. [s.l: s.n.].
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME (MDS). Wellington Dias avança em proposta brasileira de criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza durante Cúpula Global em Londres, 2023. Disponível em https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/wellington-dias-avanca-em-proposta-brasileira-de-criacao-da-alianca-global-contra-a-fome-e-a-pobreza-durante-cupula-global-em-londres, acessado em 21/11/2023.
[1] Durante a presidência brasileira, haverá 12 grupos de engajamento que farão suas discussões paralelas ao trabalho governamental, de modo a influenciar em posicionamentos dos líderes, quando da declaração de líderes do G20.
[4] Ver: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cupula-virtual-do-g20
[5] Ver: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cupula-virtual-extraordinaria-do-brics
[6] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/intervencao-do-ministro-mauro-vieira-no-debate-de-alto-nivel-do-conselho-de-seguranca-da-onu-sobre-a-situacao-no-oriente-medio
[7] Disponíveis em https://portal.fiocruz.br/cadernos-cris
[8] Ver: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cupula-do-g77-china-em-cuba