Um segundo olhar sobre a Cúpula do Brics – por Paulo Buss e João Miguel Estephanio

Um segundo olhar sobre a Cúpula do Brics – por Paulo Buss e João Miguel Estephanio

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Em novo artigo sobre a Cúpula do Brics, realizada em 6 e 7 de julho/2025, no Rio de Janeiro, pesquisadores do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) analisam os compromissos estabelecidos pelo bloco, em especial, a certeira menção aos determinantes sociais da saúde e às doenças socialmente determinadas – de acordo com os autores, algo até então jamais visto em uma cúpula de chefes de Estado – e a proposta de medidas intersetoriais coordenadas para enfrentá-los.
Por outro lado, apontam também a “notória ausência” de menção ao G77, “principal instrumento de coordenação multilateral dos países em desenvolvimento dentro do sistema das Nações Unidas”.
Conforme aponta o artigo, de qualquer forma, o entendimento dos líderes do Brics quanto ao papel do bloco na reforma da governança global, tornando-a mais equitativa e eficiente, e reforçando seus valores históricos, fica muito claro na Declaração do Rio de Janeiro.

Leia o artigo na íntegra abaixo.

A Declaração dos Líderes do Brics na Cúpula de 2025[1], realizada há uma semana no Rio de Janeiro, tem inúmeras nuances, de tal sorte que merece um segundo olhar e comentários complementares.

Este artigo suplementa o já publicado por Buss & Hoirisch imediatamente após o encerramento da Cúpula[2], identificando os principais compromissos do Brics com apoio a um multilateralismo reformado, a promoção do desenvolvimento com equidade, a paz mundial, e com o enfrentamento das doenças socialmente determinadas, esta como a prioridade para a cooperação internacional e Sul-Sul em saúde.

Com críticas bem fundamentadas à situação vigente, Brics abre a Declaração do Rio de Janeiro reafirmando seus sólidos compromissos com o fortalecimento do multilateralismo, a defesa do direito internacional e o papel central da ONU no sistema internacional, por meio da reforma da governança global e da implementação de mudanças profundas na ordem política, econômica e social mundial, visando “a promoção da paz, de uma ordem internacional mais representativa e justa, de um sistema multilateral revigorado e reformado, do desenvolvimento sustentável e do crescimento inclusivo”.

Destaca a importância do Sul Global e o papel central do Brics como “motor de mudanças positivas, especialmente diante de significativos desafios internacionais” – e aí os líderes definem, como tal, “o agravamento das tensões geopolíticas, a desaceleração econômica e transformações tecnológicas aceleradas, medidas protecionistas, e desafios migratórios”.

Nesse sentido, defendem maior e mais significativa participação e representação de Países em Desenvolvimento e Mercados Emergentes (PDME), assim como de Países Menos Desenvolvidos (PMD), especialmente da África e da América Latina e Caribe, nos processos e estruturas decisórios globais.

Entretanto, para surpresa de muitos, e na contramão dessas defesas, houve a ameaça de taxação de 10% sobre países que se aliassem às posições do Brics, especialmente aquelas identificadas como antiamericanas[3], anunciada exatamente na noite de domingo (6/07), primeiro dia da Cúpula do Brics, e o mais recente anúncio de taxação de 50% às exportações brasileiras (0/7/2025) , imposição da Casa Branca que foi imediatamente criticada e rechaçada pelo presidente Lula, China, Rússia e outros membros do bloco. Para além da inaceitável tentativa de interferência de Donald Trump na política e na Justiça brasileira, essa taxação baseada em falsas alegações de que são necessárias para corrigir os muitos anos de políticas tarifárias e não tarifárias e barreiras comerciais do Brasil, que causaram déficits comerciais insustentáveis ​​contra os Estados Unidos, soou como expressão de sua grande preocupação com o papel forte que Brics vem assumindo na geopolítica global, que poderia estar ameaçando a hegemonia dos EUA na geopolítica, e do dólar na geoeconomia mundial.

Apesar de serem falsas as alegações econômicas, é mais curioso que a carta escrita[4] por Trump comece primeiro com as razões políticas de defesa a Bolsonaro e com manifestação enfática de que a pretensa caça às bruxas deveria acabar imediatamente, evidenciando o caráter secundário das razões econômicas. Além disso, a breve menção aos “ataques insidiosos do Brasil às eleições livres e aos direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos” como parte da justificativa para a referida tarifa, também infundada, mostra, apenas, que a justificativa para a tarifação nasce no alinhamento ideológico entre Trump e Bolsonaro. O Brasil, em todos os seus poderes e esferas, independentemente de orientação política, não pode aceitar isso. É uma ameaça clara à soberania nacional e pode se tornar um precedente perigoso para intervenções externas futuras.
 

Reforma das Nações Unidas

Voltando à análise da declaração, para o Conselho de Segurança (CS), o Brics propõe assento permanente para um país da África e mantém o apoio às aspirações do Brasil e da Índia também como membros permanentes. Compreensível, mas que reforma profunda é essa, que não toca numa das maiores excrecências do sistema, o poder de veto dos cinco, que obstaculiza decisões cruciais no âmbito das Nações Unidas?

Com respeito às três outras grandes instâncias da estrutura atual das Nações Unidas, defende a revitalização da Assembleia Geral (AGNU) e o fortalecimento do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), mas, por razões inexplicáveis, omite qualquer referência ao hoje importantíssimo Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU.

Guardando coerência com o compromisso com o multilateralismo, Brics reitera sua adesão ao Pacto pelo Futuro[5] (incluindo seus dois anexos, o Pacto Digital Global e a Declaração sobre as Gerações Futuras), firmado na Cúpula do Futuro[6] promovida pela ONU, por ocasião da Assembleia Geral de 2024, em Nova York.

As instituições de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – sofreram críticas candentes e propostas reformadoras do Brics, sobretudo para ampliar a participação dos PDME e PMD, assim como a exigência de que a eles sejam dirigidas as maiores atenções e benefícios das duas mega instituições.

Afirma a Declaração que o sistema multilateral de comércio está há muito tempo em uma encruzilhada. Numa crítica de endereço certo, embora não cite os destinatários (Trump, de um lado, Europa, de outro) rechaça “a proliferação de ações restritivas ao comércio, seja na forma de aumento indiscriminado de tarifas e de medidas não tarifárias unilaterais, seja na forma de protecionismo sob o disfarce de objetivos ambientais, o que ameaça reduzir ainda mais o comércio global, interromper as cadeias de suprimentos globais e introduzir incerteza nas atividades econômicas e comerciais internacionais, potencialmente exacerbando as disparidades econômicas existentes e afetando as perspectivas de desenvolvimento econômico global”. Defende uma OMC reformada no centro da regulação do comércio internacional e saúdam a Declaração  sobre a Reforma da OMC e o Fortalecimento do Sistema Multilateral de Comércio[7] adotada pelos ministros de Comércio dos países Brics.

De outro lado, Brics não deixa de identificar os descalabros promovidos pela (não) diplomacia da Casa Branca na ordem internacional no primeiro semestre de 2025, particularmente por suas posturas contra o multilateralismo e pela crescente agressividade contra tudo e todos na arena internacional.

O recado para os Estados Unidos é claro, embora sem mencionar Trump ou o país, no parágrafo 14 (ipsis litteris): “Condenamos a imposição de medidas coercitivas unilaterais contrárias ao direito internacional e reiteramos que tais medidas, na forma de, entre outras, sanções econômicas unilaterais e sanções secundárias, têm implicações negativas de longo alcance para os direitos humanos, incluindo os direitos ao desenvolvimento, à saúde e à segurança alimentar da população em geral dos estados atingidos, afetando de maneira desproporcional os pobres e as pessoas em situações vulneráveis, aprofundando a exclusão digital e exacerbando os desafios ambientais. Apelamos à eliminação de tais medidas ilegais, que minam o direito internacional e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas. Reafirmamos que os Estados-membros não impõem nem apoiam sanções não autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU”.
 

Paz, segurança e estabilidade internacionais

Os líderes do Brics reiteram seus compromissos de promover a paz, a segurança e a estabilidade internacionais, expressando preocupação com os conflitos em curso em diversas partes do mundo e com o atual estado de polarização e fragmentação da ordem internacional. Manifestam apreensão diante da tendência atual de aumento crítico dos gastos militares globais, em detrimento do financiamento voltado ao bem estar, particularmente dos países em desenvolvimento.

Reafirmam o compromisso com a solução pacífica de controvérsias internacionais, por meio do diálogo, da consulta e da diplomacia, ao tempo em que incentivam o papel ativo das organizações regionais na prevenção e na resolução de conflitos e apoiam esforços que contribuam para a solução pacífica de crises.

Em uma passagem emocionante da Declaração defendem o “fortalecimento da cooperação multilateral para enfrentar crises humanitárias em todo o mundo”, expressando preocupação com o enfraquecimento das respostas internacionais, que já eram insuficientes, fragmentadas e frequentemente politizadas. Condenam veementemente todas as “violações do direito internacional humanitário”, incluindo ataques deliberados contra civis e bens de caráter civil, incluindo infraestrutura civil, bem como a negação ou obstrução do acesso humanitário e o direcionamento de ataques contra o pessoal humanitário.

Ressaltam a importância da implementação efetiva do Direito Internacional Humanitário, com a responsabilização por todas suas violações, que não apenas intensificam o sofrimento imediato, como também comprometem as perspectivas de uma paz duradoura ao destruir as bases materiais e sociais necessárias para a reconstrução pós-conflito.

Deslocando seu foco para a conjuntura atual, condenam os ataques militares contra o Irã, expressam profunda preocupação com a subsequente escalada da situação de segurança no Oriente Médio e recordam as posições nacionais em relação ao conflito na Ucrânia, expressas nos fóruns apropriados, incluindo o Conselho de Segurança e a AGNU.

Em uma passagem emocionante da Declaração defendem o “fortalecimento da cooperação multilateral para enfrentar crises humanitárias em todo o mundo”, expressando preocupação com o enfraquecimento das respostas internacionais, que já eram insuficientes, fragmentadas e frequentemente politizadas

A questão da Palestina se estende por vários parágrafos. Assim, o Brics reitera a profunda preocupação com a situação no Território Palestino Ocupado, diante da retomada de ataques contínuos de Israel contra Gaza, da obstrução à entrada de ajuda humanitária e do uso da fome como método de guerra no território. Exortam as partes a se engajarem de boa-fé em novas negociações com vistas à obtenção de um cessar-fogo imediato, permanente e incondicional; à retirada completa das forças israelenses da Faixa de Gaza e de todas as demais partes do Território Palestino Ocupado; à libertação de todos os reféns e detidos em violação ao direito internacional; e ao acesso e entrega sustentada e desimpedida da ajuda humanitária. Ademais, reafirmam o firme apoio à UNRWA na prestação de serviços básicos aos refugiados da Palestina em suas cinco áreas de atuação, no âmbito que lhe foi conferido pela AGNU.

Preconizam a unificação da Cisjordânia com a Faixa de Gaza, sob a Autoridade Palestina e reafirmam o direito do povo palestino à autodeterminação, incluindo o direito a um Estado independente da Palestina. Debruçam-se em detalhar outros aspectos relativos à Palestina, e abordam também às questões do Líbano, da Síria e do Oriente Médio como um todo.

Sobre os conflitos no continente africano, o Brics reitera que o princípio “soluções africanas para problemas africanos” deve continuar a servir de base para a resolução dos mesmos e propõe-se a apoiar todos os ingentes esforços empreendidos pela União Africana e por organizações sub-regionais africanas.

Fazem específica menção às graves crises humanitárias resultantes de novos e prolongados conflitos armados em algumas regiões da África, particularmente os efeitos devastadores dos conflitos no Sudão, na região dos Grandes Lagos e no Chifre da África.

Na América Latina, deploram a deterioração contínua da situação securitária, humanitária e econômica no Haiti. Pedem à comunidade internacional que apoie os esforços haitianos para desmantelar as gangues, melhorar a situação de segurança e estabelecer as bases para o desenvolvimento social e econômico duradouro no país. Mas, curiosamente, Brics não se compromete diretamente com nada para o Haiti.

Brics alerta para riscos de perigo e conflito nuclear, reiterando a necessidade de fortalecer o sistema de desarmamento e clama pelo uso de espaço e das conquistas da ciência e das tecnologias espaciais exclusivamente para fins pacíficos.
 

Outros temas

Outros temas ocuparam as discussões e geraram vários parágrafos na Declaração; deixamos de comentá-los para evitar tornar este artigo excessivamente extenso. Contudo, recomendamos ao leitor examinar, direto na Declaração, as posições do Brics sobre: terrorismo internacional, corrupção, fluxos financeiros ilícitos, crime organizado transnacional, como tráfico de drogas, crimes cibernéticos, crimes que afetam o meio ambiente, tráfico ilícito de armas de fogo, tráfico de pessoas, corrupção e uso de novas tecnologias, incluindo criptomoedas, para fins ilegais. A Declaração também trata das tecnologias de informação e comunicação (TICs) para reduzir as crescentes desigualdades digitais dentro e entre os países, e evitar seus desafios e ameaças, assim como a adoção, pela Assembleia Geral, da Convenção das Nações Unidas contra o Cibercrime.

Tampouco abordaremos, sem, contudo, desconhecer sua importância, os parágrafos 42 a 80, que se encontram sob o subtítulo “Aprofundando a Cooperação Internacional em Economia, Comércio e Finanças”, mas, da mesma forma, remetemos o leitor interessado ao exame direto dos mesmos. Aí estão considerações importantes sobre o Novo Banco de Desenvolvimento, sobre cuja reunião de 2025, realizada no Rio de Janeiro, a pesquisadora visitante do CRIS, Laura Tavares, tratou amplamente no Caderno 12 do CRIS[8]
 

Clima e Desenvolvimento Sustentável, Justo e Inclusivo

O enfrentamento das mudanças climáticas e o desenvolvimento sustentável receberam expressiva atenção, o que certamente está relacionado com a PPT do Brasil na COP 30 e a proximidade de sua realização.

Fortalecer a implementação plena e efetiva do Acordo de Paris, inclusive seus dispositivos relativos à mitigação, adaptação e provisão de meios de implementação aos países em desenvolvimento é compromisso claramente explicitado por Brics, incluindo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Endossam a Agenda de Liderança Climática, bem como a Declaração sobre Finanças Climáticas, em torno da qual pretendem atuar em conjunto para alcançar os impostergáveis compromissos que ameaçam a própria sobrevivência do planeta.

Ressaltam a importância da conservação e do uso sustentável da biodiversidade, da repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e da implementação efetiva da Convenção sobre Diversidade Biológica, seus Protocolos e seu Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal.

Ou seja, ainda que se ocupando com maior espaço na Declaração com a questão climática, o Brics não deixa de considerar a tríade da crise ambiental planetária: clima, biodiversidade e poluição, que afeta profundamente a saúde humana, como sabemos.

Os líderes do bloco se dispõem a empreender “esforços conjuntos para soluções inclusivas e sustentáveis para questões globais prementes”, o que expressam na Declaração-Marco dos Líderes sobre Finanças Climáticas[9], na Declaração dos Líderes sobre Governança Global da Inteligência Artificial[10] e – inédito no campo da saúde global em qualquer bloco de países – no lançamento da Parceria para a Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas, sobre a qual vamos nos deter a partir daqui.

 

Parceria  para a Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas

A Parceria para a Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas[11] foi estabelecida na Cúpula do Rio de Janeiro como a principal prioridade em saúde dos países-membros do bloco. Não recordamos que qualquer outro grupo de países, em tempo algum, tenha feito menção, numa Cúpula de Chefes de Estado e de Governo, a determinantes sociais da saúde e proposto medidas intersetoriais coordenadas para enfrentá-los. É, por isso, de fato um documento ousado, a ser ressaltado entre seus resultados. Reafirmamos: parece claro que esta é a prioridade número 1 da PPT do Brasil na área da Saúde, com o que estes autores concordam plenamente.

Os principais elementos apontados na declaração foram:

  1. A saúde é um direito humano fundamental e as Doenças Socialmente Determinadas (DSD) – doenças cuja ocorrência, evolução e desfecho estão intrinsecamente ligados aos determinantes sociais de saúde – refletem desigualdades em saúde e afetam desproporcionalmente determinadas populações;
  2. Colocar os determinantes sociais da saúde no centro de uma agenda para a eliminação das DSD é uma abordagem oportuna, necessária e politicamente poderosa;
  3. As DSD afetam desproporcionalmente populações em situação vulnerável e estão intrinsecamente relacionadas à pobreza, desigualdade e exclusão social, exigindo respostas abrangentes e multissetoriais, que ultrapassam medidas estritamente relacionadas à saúde;
  4. Ações efetivas para eliminar as DSD como problemas de saúde pública exigem compromissos dos países com ações sobre os determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde, especialmente considerando a necessidade de promover o desenvolvimento sustentável, combater a fome e a pobreza, e fortalecer serviços de saúde comunitária;
  5. A eliminação das DSD contribui diretamente para a realização de diversos ODS, incluindo o ODS 1 (Erradicação da Pobreza), ODS 2 (Fome Zero), ODS 3 (Saúde e Bem-Estar), ODS 4 (Educação de Qualidade), ODS 10 (Redução das Desigualdades) e ODS 17 (Parcerias e Meios de Implementação);
  6. Os países estão bem-posicionados para assumir liderança global na eliminação das DSD (...) e fortalecerão esforços diplomáticos para colocar sua eliminação no centro da agenda global de saúde, e buscando sua priorização em fóruns multilaterais e regionais;
  7. A OMS tem papel central no fomento da cooperação multilateral e regional em saúde, e destaca suas iniciativas e programas exitosos para eliminação de doenças e outros esforços internacionais fundamentais.

Não recordamos que qualquer outro grupo de países, em tempo algum, tenha feito menção, numa Cúpula de Chefes de Estado e de Governo, a determinantes sociais da saúde e proposto medidas intersetoriais coordenadas para enfrentá-los

A Cúpula do Brics recordou a Declaração Política do Rio sobre Determinantes Sociais da Saúde[12] (2011), processo que foi liderado em conjunto pela OMS e Fiocruz e que marcou o debate internacional sobre os DSS na década, destacando seu décimo quarto aniversário em 2025. Também sinalizou para o Diálogo de Alto Nível sobre Determinantes Sociais da Saúde, a ser realizado em 2025, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.

A parceria tem cinco objetivos principais, alinhados às atividades da OMS e outras organizações internacionais relevantes nesta área:

(i) reforçar sistemas de saúde resilientes e a prestação de serviços essenciais, garantindo o acesso equitativo a vacinas, prevenção, detecção precoce, diagnóstico, tratamento e educação em saúde para DSD, fortalecendo serviços de saúde comunitária e focando em populações em situação vulnerável nas regiões mais afetadas por DSD, avançando também na Cobertura Universal de Saúde (CUS);

(ii) fortalecer ações intersetoriais sobre os determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde, adotando uma abordagem integral de governo e sociedade;

(iii) expandir a colaboração em pesquisa, desenvolvimento, capacitação, inovação e transferência de tecnologia entre os membros, promovendo o compartilhamento de conhecimentos como estratégia para fortalecer a cooperação e impulsionar soluções inovadoras adaptadas às realidades locais para eliminação das DSD;

(iv) advogar pela superação das barreiras financeiras à eliminação das DSD, mobilizando recursos nacionais e internacionais e promovendo o engajamento com bancos de desenvolvimento, instituições financeiras, doadores e setor privado para garantir mecanismos sustentáveis e inovadores de financiamento;

(v) alinhar posições sobre DSD no âmbito das organizações internacionais, incluindo agências da ONU como a OMS, PNUD e outros fóruns relevantes, além de partes interessadas do setor privado, facilitando a integração em estruturas mais amplas de cooperação internacional e assegurando alinhamento com os ODS globais.

Cabe chamar atenção, a esta altura, a que mais apropriado do que doenças socialmente determinadas, dever-se-ia estar tratando da determinação social da saúde que, ao invés de doenças pontuais, se refere a algo estrutural que determina o processo saúde-doença-cuidado[13], ou seja, todas as doenças e todo o sistema de cuidados de saúde, como também os sistemas e ações políticas, econômicas, sociais e ambientais que sabidamente influenciam a saúde. Uma primeira e imediata consequência desta abordagem conceitual é que os DSS não são apenas as doenças infecciosas transmissíveis, como faz crer uma leitura acrítica da proposta do Brics, mas todas as doenças, inclusive as crônicas não transmissíveis, como hipertensão, diabetes, enfermidades mentais, neurológicas e as demais.

Contudo, longe, com essas observações, de se desvalorizar esta oportuna iniciativa! Assim, numa imprescindível estratégia de coordenação, a Parceria vai priorizar a ampliação e o reforço de iniciativas já existentes no âmbito como instrumentos-chave para promover a cooperação e a troca de melhores práticas entre os membros, em apoio à eliminação das DSD. Em particular, a Parceria reconhece a relevância de iniciativas como o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas, a Rede de Institutos de Saúde Pública e a Rede de Pesquisa sobre Tuberculose, que oferecem plataformas robustas para pesquisa colaborativa, vigilância, capacitação e inovação.

Reconhecendo que a eliminação das DSD requer “ação robusta, coordenada e intersetorial”, a Parceria deverá, de um lado, fortalecer os sistemas de saúde e enfrentar as barreiras sociais e estruturais ao acesso equitativo à saúde. Isso se dará por meio da expansão do acesso a áreas remotas e de difícil alcance e o aproveitamento de tecnologias inovadoras – como inteligência artificial, diagnóstico de doenças, terapêuticas, desenvolvimento de medicamentos e vacinas, plataformas digitais interoperáveis, sistemas de notificação harmonizados, mecanismos de detecção precoce, vigilância, intercâmbio de dados em tempo real, regulação e ferramentas integradas de eliminação de doenças.

De outro lado, reconhece que o enfrentamento das causas estruturais das DSD requer ação governamental mais ampla, o que envolverá ações intersetoriais, como a melhoria das condições de saneamento e habitação, combate à desnutrição e à pobreza e maior coordenação entre os sistemas de saúde e os programas nacionais de proteção social, particularmente em contextos de desemprego, deslocamento, choques econômicos, desastres, conflitos ou insegurança alimentar.

A Parceria insta as instituições financeiras – incluindo o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), nos termos de seu mandato, o Banco Mundial e outros Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (BMD) – a desempenhar papel fundamental na estruturação de financiamentos para a eliminação das DSD.

Contudo, ainda falta bastante para definir como funcionará a Parceria. A Declaração definiu que terá uma presidência rotatória; que os ministros da Saúde convoquem uma sessão ministerial anual sobre a Parceria; que se organizem conferências globais e regionais sobre a eliminação das DSD, inclusive por meio do engajamento com Institutos Nacionais de Saúde Pública, academia, bem como departamentos relevantes dentro dos MS dos países. Sob a presidência do Brasil, a coordenação da Parceria tocará à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do Ministério da Saúde.

Sentimos falta na declaração que cria a Parceria de referências ao Relatório Mundial da OMS sobre Determinantes Sociais da Equidade em Saúde[14], entregue aos ministros da Saúde por ocasião da Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2025, que contém importantes sugestões e recomendações para países e organismos internacionais sobre o tema, o que, contudo, pode ser resgatado no processo de implementação, assim como na conferência global e nas conferências regionais propostas para o desenvolvimento da Parceria.

O Brasil tem, no âmbito do Ministério da Saúde, o programa Brasil Saudável[15], no qual se inspira, em parte, a iniciativa levada ao Brics[16]. De outro lado, fica claro que esta iniciativa será tão melhor sucedida quanto mais engajada estiver com as Comissões Nacionais de Desenvolvimento Sustentável dos países, que, ao lidar com todos os ODS, tal como já ocorre no caso do Brasil[17], estão atuando sobre os determinantes sociais da saúde.

 

Aliança Global contra a Fome e a Pobreza[18] no Brics

A fome e a desnutrição estão entre as principais condições e doenças socialmente determinadas, pois estão intimamente ligadas à pobreza, e a segurança alimentar e nutricional uma das principais medidas para integrar uma Parceria que quer enfrentar as ‘doenças socialmente determinadas’. Por isso saudamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza ter sido aprovada no Brics, sob a presidência do Brasil. Nesse sentido, há inteira coerência entre os propósitos da Aliança e da Parceria.

Consideramos também extremamente positivo que o tema tenha chegado ao Brics não pela Saúde, mas pela Agricultura (Reunião de Ministros da Agricultura do Brics[19], abril de 2025), denotando, assim, que se começa a praticar, no Brics, a intersetorialidade sinalizada na Parceria e tão necessária para enfrentar as doenças socialmente determinadas. Contudo, deveria ter tido um destaque maior na Declaração dos Líderes, o que não ocorreu.

 

Conselho Popular do Brics[20]

O Conselho Popular, movimento que reúne cerca de 120 entidades da sociedade civil dos 11 países que integram o bloco, foi instituído em 2024, sob a presidência da Rússia, e reforçado durante a presidência brasileira. Representando a iniciativa, o líder do MST, João Pedro Stédile, entregou aos líderes um caderno com demandas de movimentos sociais, com foco em políticas de saúde, educação, ecologia, cultura, finanças, soberania digital e arcabouço institucional. O caderno sintetiza uma agenda construída, segundo o Conselho, sob uma ótica de justiça social, multipolaridade e soberania.

No eixo da Saúde, o documento delineia uma estratégia abrangente para promover a equidade em saúde, fortalecer os sistemas de saúde pública e fomentar a cooperação entre os países do grupo. O documento enfatiza que a saúde é um direito humano fundamental e destaca a necessidade de respostas sistêmicas que abordem os determinantes sociais das doenças, protejam as populações vulneráveis e priorizem a prevenção e a dignidade no atendimento.

Na Educação, o foco está em modelos não ocidentais, com ênfase na soberania, diversidade e no combate ao que considera como mercantilização do ensino.

Outro eixo central é a soberania alimentar. O texto apresenta propostas para o fortalecimento da produção local de alimentos por meio da reforma agrária e o enfrentamento da fome por meio de políticas públicas sustentáveis.

As questões ambientais aparecem com destaque, por conta do avanço das mudanças climáticas. As recomendações incentivam o desenvolvimento sustentável impulsionado pelos países do Sul Global, promovendo a cooperação ecológica entre os membros do bloco.  O Conselho defende que o Brics estabeleça um fundo climático próprio com foco em mitigação, adaptação e proteção da biodiversidade.

No campo econômico, o documento pede a reestruturação da arquitetura financeira global, com foco na soberania, inclusão e sustentabilidade. As medidas abrangem tributação, comércio, regulação monetária, inovação tecnológica e reformas institucionais, assim como a criação de mecanismos de taxação dos super ricos e o fortalecimento das moedas nacionais.

Já no eixo da soberania digital, propõe uma governança inclusiva da inteligência artificial e proteção contra a concentração tecnológica, fora do domínio das big techs.

O documento propõe, ainda, que o Brics assuma papel ativo na construção de uma nova ordem internacional baseada na multipolaridade, na paz entre os povos e na justiça social.

Está prevista para outubro uma nova etapa presencial do Conselho, ainda sob a presidência rotativa do Brasil, com uma conferência ampliada em Salvador (BA).

 

Considerações finais

O entendimento dos líderes do Brics quanto ao papel do bloco na reforma da governança global, tornando-a mais equitativa e eficiente, e reforçando seus valores históricos, fica muito claro na Declaração de 2025 do Rio de Janeiro. O hegemon imperial acusou o golpe, embora as lideranças sempre procuraram deixar claro que querem um convívio em harmonia com todos, sem distinção, inclusive os EUA com sua política internacional agressiva contra tudo e todos.

Nesse sentido, percebe-se o reconhecimento do G20 e seus avanços na Cúpula do Rio de Janeiro de 2024 e, afinal, em 2025, sob a presidência da África do Sul, outro integrante do Brics. Mas é notória a ausência de qualquer menção ao G77, “o principal instrumento de coordenação multilateral dos países em desenvolvimento dentro do sistema das Nações Unidas”[21], que reúne mais de 130 países do Sul Global, inclusive todos os países. Parece-nos um erro estratégico essa ausência: uma representação do G77, espaço para sua manifestação ou pelo menos menção de reconhecimento ao seu papel crucial na UN. Da mesma forma, é incompreensível a participação periférica da UNCTAD, também sem menção na Declaração. Já as instituições multilaterais globais das Nações Unidas, representadas pelo secretário-geral, António Guterres, e pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, receberam o devido destaque e menções claras de apoio na Declaração.

Os próximos meses serão cruciais para o Brics e para o mundo em geral. O presidente Lula fez recente Pronunciamento à Nação[22], e deu entrevista à CNN[23] dos EUA, em que explicitou a posição do Brasil no affair político e econômico provocado por Trump com o país, assim como fez menção às questões candentes do Brics como ator proeminente do Sul Global no mundo contemporâneo. Tudo indica que as negociações com os americanos não serão efetivadas ou, no mínimo, serão duríssimas. Mas a soberania do Brasil, a diplomacia política e os negócios com todo o mundo continuam no rumo histórico adotado pelo Brasil nos seus mais de 200 anos de independência, o que todos os brasileiros admiramos e, como patriotas, defendemos.

* Pesquisadores do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz)

 

[1] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-de-lideres-do-Brics-2014-rio-de-janeiro-06-de-julho-de-2025

[2] Buss & Hoirisch. Saúde recebe prioridade na 17ª Cúpula  no Rio de Janeiro. Acesso: https://cee.fiocruz.br/?q=saude-recebe-prioridade-na-17-cupula-do-Brics-no-rio-de-janeiro

[3] Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/trump-promete-tarifa...

[4] Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/leia-integra-da-carta-de-donald-trump-que-anuncia-taxa-de-50-para-o-brasil/#goog_rewarded

[5] Ver: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/sotf-pact_for_the_future_adopted.pdf

[6] Ver: https://brasil.un.org/pt-br/276588-c%C3%BApula-do-futuro

[7] Ver: https://Brics.br/pt-br/noticias/Brics-aprova-declaracao-conjunta-por-comercio-global-mais-justo-e-inclusivo

[8] Acesso: https://fiocruz.br/documento/2025/07/cadernos-cris-fiocruz-informe-12-2025 pp. 100-119.

[9] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-marco-dos-lideres-do-Brics-sobre-financas-climaticas

[10] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-dos-lideres-do-Brics-sobre-governanca-global-da-inteligencia-artificial

[11] Ver: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/parceria-do-Brics-para-a-eliminacao-de-doencas-socialmente-determinadas

[12] Ver: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/documents/social-determinants-of-health/rio_political_declaration_portuguese.pdf?sfvrsn=db479976_5

[13] Sobre este assunto conceitual e de prática crítico, ver: 1) Qual a diferença entre os conceitos de ‘determinantes sociais da saúde’ e de ‘determinação social da saúde’?, em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/faqconc/qual-a-diferenca-entre-os-conceitos-de-determinantes-sociais-da-saude-e-de-determinacao-social-da-saude/; Sevalho, G. Determinação social da saúde, complexidade, colonialidade e longa duração, em: https://www.scielosp.org/article/csp/2024.v40n12/e00035724/  e 3) Determinação ou Determinantes Sociais da Saúde: Texto e contexto na América Latina, em https://www.scielo.br/j/tes/a/jJpLdWtYsCMVV8YQm6PqMFk/ 

[14] Ver: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/381258/B09387-eng.pdf?sequence=1

[15] Ver: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/brasil-saudavel

[16] Ver: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/julho/com-lideranca-de-lula-Brics-cria-parceria-contra-doencas-ligadas-a-pobreza-e-exclusao-social

[17] Ver: https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2023/setembro/presidente-lula-institui-comissao-nacional-para-os-objetivos-do-desenvolvimento-sustentavel e https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/cnods

[18] Ver: Global Alliance against Hunger and Poverty – The activity focuses on the organization, dissemination, and maintenance of the knowledge and practices of the G20 Task Force, ensuring that this information is well-documented and accessible to strengthen the Global Alliance against Hunger and Poverty

[19] Ver: https://Brics.br/pt-br/noticias/paises-do-Brics-aprovam-declaracao-conjunta-com-foco-em-seguranca-alimentar

[20] Ver: https://Brics.br/pt-br/Brics-p2p/conselho-popular-do-Brics-forum-civil-do-Brics

[21] Visão corroborada pelo Palácio do Planalto. Ver: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/09/presidente-participa-da-cupula-do-g77-china-em-cuba-neste-fim-de-semana

[22] Ver: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2025/07/pronunciamento-a-nacao-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva

[23] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/leia-a-integra-da-entrevista-do-presidente-lula-a-cnn/#goog_rewarded