Saúde Global na Cúpula do G20 em Roma
Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil, edição online de 01 de novembro, por Santiago Alcázar e Paulo M. Buss*
Encerrou-se no dia 31 de outubro, em Roma, a Cúpula do G20. A presidência italiana escolheu focar nos três pilares da Agenda 2030: povo, planeta e prosperidade. Seis anos após a adoção da Agenda e dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em 2015, e em plena pandemia, a escolha italiana foi bem acertada.
Como se recordará, no já longínquo ano de 2015, os líderes do mundo, reunidos na Assembleia Geral das Nações Unidas, adotaram a resolução “Transformando o nosso mundo: Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”. Naquele momento, os líderes recordaram que 70 anos antes, uma geração anterior havia se unido para criar as Nações Unidas. Hoje, disseram, resolvemos fazer um futuro melhor para todos[1]. Para tanto, estabeleceram 17 ODS, que teriam que ser cumpridos até 2030, entre os quais caberia destacar, a erradicação da pobreza e da fome. Todo ano, comissões criadas com o propósito de monitorar a implementação nacional dos ODS, comprometer-se-iam com o feitio de relatórios de acompanhamento, com vistas a facilitar eventuais correções de rumo. 2030 era o norte para as políticas e ações dos governos, comprometidos com a Agenda e os seus ODS. A esperança parecia irresistível.
Veio a pandemia e o impacto foi tremendo. Saltaram à vista enormes inequidades e injustiças. Meses depois, enquanto a poeira ia se assentando, técnicos comprometidos e engajados correram para medir os estragos feitos à Agenda 2030 e aos seus ODS. Foram severos. A pobreza, que vinha sendo progressivamente reduzida, aumentou, assim como a fome. De igual maneira, os outros ODS também foram impactados. Todo o esforço para cumprir a meta 2030 parecia comprometido.
Os técnicos vinham dizendo que, ano a ano, os ODS sempre estiveram defasados, mas ninguém lhes dava ouvidos. A pandemia, diziam aqueles, apenas acentuou as inequidades, não as produziu. Era preciso retomar o caminho. Foi o que fez a presidência italiana do G-20, ao focar sua atenção nos mesmos três pilares da Agenda 2030.
O pano de fundo hoje é o de um mundo dominado por desconfianças, negacionismos, supervalorização do individualismo e enfraquecimento do multilateralismo. Na Cúpula do G-20 sobre Saúde Global, que se realizou em 21 de maio de 2021, os líderes reconheceram que a imunização extensiva constitui um bem público global e que a pandemia somente terminará quando todos os países a tenham efetivamente dominado.
Vacinação equitativa, investimentos sustentáveis em bens públicos, com ênfase na saúde, promoção do conceito “Uma Saúde”, pelo qual se unem saúde humana, saúde animal e saúde planetária – são alguns dos elementos presentes na Declaração de Roma, o documento final daquela Cúpula sobre Saúde Global.
Mereceria aplausos se tivesse resultado em ações concretas. Para alcançar a vacinação equitativa, por exemplo, é necessário enfrentar a falta de financiamento que trava o funcionamento a contento do Access to Covid-19 Tools Accelerator (ACT-T, nas siglas em inglês) e de sua vertente de vacinas, a COVAX Facility, iniciativa liderada pela OMS. O ACT-T engloba extensa gama de produtos necessários para o combate à Covid-19, que inclui, entre outros, medicamentos, diagnósticos e válvulas para respiradores. A COVAX Facility foca no acesso a vacinas. Ambos estão severamente subfinanciados.
Segundo o documento do Fundo Monetário Internacional “A proposal do end the Covid-19 pandemic”, divulgado dias antes da Cúpula sobre Saúde Global, US$ 50 bilhões seriam necessários para imunizar ao menos 40% da população mundial até o final de 2021 e ao menos 60%, até o final do primeiro semestre de 2022. Os recursos – que deveriam provir de governos, doações de fundos privados, com apoio de agências multilaterais – financiariam a compra de vacinas, diagnósticos, mapeamento, manutenção de estoques adequados de medicamentos e outros insumos, bem como implementar medidas de saúde pública onde a cobertura vacinal é pequena.
Segundo os autores, os US$ 50 bilhões empalideceriam frente aos US$ 9 trilhões de perdas para a economia global, caso nada fosse feito. Como todos sabem, pouco foi feito, pois não somente o ACT-T e a COVAX Facility continuam subfinanciados, como a imunização extensiva limitou-se a um punhado de países. Segundo o secretário-geral das Nações Unidas, até o final de setembro deste ano, 10 países haviam utilizado mais de 75% de todas as vacinas produzidas no mundo. A situação não era boa. Não apenas os ODS estavam defasados e fora de alcance, a imunização extensiva encontrava-se comprometida por nacionalismos vacinais obscenos. O G-20, pelo menos no plano retórico, no entanto, não desanimava.
Em 15 de junho, quase um mês após a Cúpula sobre Saúde Global, distinto grupo de peritos, constituído de ministros de finanças/economia e presidentes dos bancos centrais dos países membros do G20, reuniram-se em Veneza, com o propósito de continuar as discussões de como recuperar a economia global e como preparar-se para a próxima pandemia, o que é curioso, pois se admite que entramos numa era de pandemias e não há nada que se possa fazer. Aquecimento global e perda da biodiversidade podem gerar pandemias. As políticas para reverter essas tendências, no entanto, parecem fora de alcance, como os ODS.
O G-20 sabe, no entanto, que sem um robusto sistema de financiamento, o mundo será incapaz de gerir futuras pandemias. Com a finalidade de encontrar soluções para financiar bens públicos globais e sistemas resilientes, estabeleceu em janeiro de 2021, um Painel Independente de Alto Nível, que produziu um informe a ser tomado em conta nas deliberações dos líderes. Os trabalhos do Painel guiaram-se pela premissa que estabelece o financiamento da prevenção, preparação e resposta a pandemias como um bem público global, bem como por uma outra que afirma que o acesso universal e equitativo àquele bem público é uma necessidade científica e econômica à luz do compromisso de não deixar ninguém para trás. Sabia-se e sabe-se o que tem que ser feito. Agora é preciso fazer.
De 5 a 6 de setembro, os ministros da saúde do G20 reuniram-se em Roma para repetir o que, em grandes linhas, havia sido dito pelos líderes em maio e pelos membros do Painel Independente de Alto Nível, no seu informe. A Declaração dos Ministros da Saúde do G-20, que pode ser lida por quem tiver curiosidade comprova que não há nada novo que não tenha sido dito anteriormente, não obstante a grande extensão da mesma. O entusiasmo dos primeiros dias com a presidência que havia recordado a importância de enfatizar os três pilares da Agenda 2030 começava a arrefecer.
Em 12 de outubro, ministros do comércio do G20 reuniram-se em Sorrento para levar adiante o debate sobre o financiamento da tríade povo, planeta e prosperidade. Com relação ao tema saúde e comércio, os ministros reiteraram o que os líderes já haviam dito em maio, tal e como anteriormente os ministros da saúde. Salientaram, por exemplo, que qualquer medida de emergência seja consistente com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), leia-se com o Acordo TRIPS. Sublinharam a importância da 12ª Conferência Ministerial daquela Organização, que deverá realizar-se de 30 de novembro a 3 de dezembro, em Genebra, que deverá tratar da proposta de suspensão (waiver) dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas (EUA) e sobre ampla gama de produtos para a Covid-19, que inclui medicamentos, diagnósticos e válvulas para respiradores, entre outros, ademais de vacinas (África do Sul e Índia), bem como da questão de habilitar a produção daqueles produtos por terceiros, por meio da criação de hubs regionais. Nada novo que encoraje desbravamentos heroicos.
Com relação ao waiver das patentes de vacinas, é preciso esclarecer que a produção de vacinas avançadas para a Covid-19 é convoluta. Não há linearidade mecânica entre o que vem antes e o que segue. A biologia se encarrega de produzir resultados surpreendentes que complicam e dificultam o necessário controle para produção de efeitos desejados. Somente os atuais fabricantes de vacinas sofisticadas teriam as necessárias condições científicas, tecnológicas e financeiras para produzi-las. Assim, a própria complexidade atuaria como uma proteção natural, extra acordo, dos direitos de propriedade intelectual. Nesse contexto, o waiver não produziria efeitos práticos, como no singular romance de Giuseppi Tomasi di Lampedusa que tudo deve mudar para ficar como está. O famoso waiver de patentes seria anunciado com pompa e circunstância como a nova pedra filosofal, capaz de transformar a ganância obscena em virtude.
Às vésperas da Cúpula do G20, aconteceu a reunião conjunta de ministros da saúde e ministros da economia. O objetivo era encontrar financiamento para os compromissos assumidos pelos líderes. O que se conseguiu foi o estabelecimento de uma Força Tarefa Conjunta dos ministros de economia e de saúde, com o propósito de aumentar o diálogo e a cooperação. Em vez de dinheiro novo, novamente um grupo de trabalho. Mais promissor, talvez, seja o Acordo alcançado entre os Ministros da Economia e os Diretores de Bancos Centrais, com vistas a abordar de maneira coordenada os desafios globais, de que são exemplo a mudança climática, a proteção ambiental e a transição para uma economia mais verde e sustentável.
Na sexta-feira, dia 29 de outubro, os Diretores Gerais (DG) da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Organização Mundial para Migrações (OIM) e o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR), encaminharam carta conjunta ao G-20, pela qual apelam aos líderes para se sensibilizarem com a necessidade de vacinar os menos favorecidos, especialmente os que se encontram em situação de risco, como imigrantes, deslocados e refugiados.
No sábado, dia 30, o DG da OMS dirigiu-se aos líderes na sessão de abertura do G20. Fez uma intervenção curta e direta, baseada em cinco pedidos: 1) resolvam a crise da vacina para por um fim à pandemia; 2) financiem plenamente o ACT-A, que nos próximos 12 meses precisa US$ 23.4 bilhões; 3) apoiem a Força Tarefa Conjunta Economia/Finanças-Saúde, com vistas a financiamento adicional para preparação e resposta a eventuais outras pandemias; 4) adotem instrumento internacional, baseado na Constituição da OMS; 5) fortaleçam e financiem sustentavelmente a OMS.
No domingo, dia 31, o G20 adotou a Declaração Final, cujos pontos mais importantes, sob a ótica da diplomacia da saúde, são os seguintes: 1) compromisso de não seguir as restrições inconsistentes da OMC com respeito a exportações. Trata-se de dura crítica a um dos aspectos do licenciamento compulsório, cuja explicação infelizmente está aquém do escopo deste artigo; 2) estabelecimento da Força Tarefa Multilateral sobre Covid-19, com a participação do setor privado e das agencias multilaterais; 3) estabelecimento de Força Tarefa Economia/Finanças-Saúde; 4) reafirmação do compromisso com os ODS; 5) apoio aos esforços para elaboração de instrumento internacional sobre preparação e resposta a pandemias; 6) compromisso de abordar a ameaça global da mudança climática e cooperar coletivamente para alcançar uma COP-26 exitosa.
É pouco, muito pouco, para o tamanho do desafio que os líderes dos países mais ricos do mundo têm pela frente. Há reiterações diversas, mas não se diz como serão levados a cabo. Como crer que o apelo dos DG da OMS, da OIM e do Alto Comissário para Refugiados será ouvido e levado a efeito? Como crer que os cinco pedidos do DG da OMS serão atendidos? Pior, deveriam ter feito uma ponte com a COP-26, em Glasgow, mas não fizeram, limitando-se a dizer que o desafio é grande.
Há razão para ser otimistas com respeito aos resultados da Cúpula do G20? Não! O otimismo é produto de um pensamento mágico que não se atém a nenhum argumento causal. Para o otimista as coisas irão melhorar porque sim. Não é, no entanto, o caso de ficar com os braços caídos. Podemos ter esperança, que é outra coisa e consiste em agarrar-se a uma promessa. No nosso caso, à promessa que nos foi feita em 2015, que transformaríamos o mundo para benefício das próximas gerações.
*Santiago Alcázar é diplomata; pesquisador senior do Centro de Relações Internacionais em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (CRIS/Fiocruz). Paulo M. Buss é doutor em Ciências; diretor do CRIS/Fiocruz; membro titular da Academia Nacional de Medicina.
[1] Ver parágrafos 50 e 51, em: https://sdgs.un.org/2030agenda
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