Samarco – fratura exposta dos limites do Brasil na redução de risco de desastres
Na tarde de 5 novembro de 2015, a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, uma empresa joint venture da companhia Vale do Rio Doce e da anglo-australiana BHP- Billiton, se rompeu liberando um volume estimado de 34 milhões de metros cúbicos de lama, contendo rejeitos de mineração, resultando em impactos por uma extensão de 650 quilômetros, impactando 31 municípios em Minas Gerais e três no Espírito Santo. Foi o maior desastre mundial desse tipo desde os anos 1960, em termos de quantidade de material lançado no meio ambiente e de extensão territorial dos danos, resultando em danos humanos e ambientais que podem ter um horizonte temporal de longo prazo, incertezas, efeitos irreversíveis e de difícil gestão.
Carlos Machado de Freitas
*Compreender as causas e consequências desse desastre é vital. Tanto para avançarmos na capacidade de prevenção de outros desastres no país, como para evitar que medidas insuficientes de resposta, recuperação e reconstrução prolonguem os desastres para as vítimas, correspondendo a um segundo desastre dentro do mesmo.
Em relação às causas, é fundamental termos claro que, ao longo do século XX, e mais particularmente, nos últimos 50 anos, a exposição das pessoas aos riscos de desastres vem crescendo no Brasil e no mundo mais rapidamente do que as capacidades de redução das possibilidades de ocorrência e da vulnerabilidade das populações e das instituições, resultando em intensos e extensos (no tempo e no espaço) impactos. Nesta perspectiva, o desastre da Samarco deve ser compreendido não como uma excepcionalidade, mas como parte dos custos humanos, sociais e ambientais resultantes do atual modelo de desenvolvimento econômico.
Os fatores que se encontram na origem dos desastres em barragens de mineração envolvem um conjunto de anormalidades que são transformadas em normalidades
Os fatores que se encontram na origem dos desastres em barragens de mineração e estiveram presentes no desastre da Samarco envolvem um conjunto de anormalidades que são transformadas em normalidades, tais como manutenção deficiente; ausência de monitoramento contínuo (a barragem ficou sem monitoramento por falta de pessoal durante os dez dias que antecederam o desastre); crescimento do tamanho das barragens e do material depositado sem adequados procedimentos de segurança (entre 2009 e 2014, a deposição de rejeitos cresceu mais de 80%), com a sobrecarga das barragens. Combinada com políticas frágeis e instituições públicas de controle e prevenção desestruturadas, constituem cenários férteis para a ocorrência de desastres no Brasil, em que anormalidades como as encontradas após as investigações da Polícia Federal, são cotidianamente transformadas em normalidades dentro das empresas.
Em relação às consequências ambientais, estas são múltiplas, com alterações dos processos ecológicos. Degradação do solo em determinadas localidades, que demandará décadas ou séculos para recuperação; perda da cobertura vegetal em mais de 1.500 hectares; alteração da qualidade das águas nos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, com impactos diretos sobre a cadeia alimentar e reprodução de algumas espécies; elevação dos níveis de concentração de metais pesados como alumínio, arsênio, cádmio, cobre, cromo, manganês e níquel, sendo que alguns destes, como chumbo e mercúrio com níveis superiores ao limite da legislação de 165 e 1.465 vezes, respectivamente, em alguns pontos.
Destacam-se também os impactos psicossociais, resultantes do comprometimento dos meios de vida, das heranças culturais e da perda da sensação de lugar
Em relação às consequências sobre a saúde, para além dos impactos diretos, como os 19 óbitos afetando principalmente trabalhadores (dois terços deles), crianças e idosos, registram-se 536 lesionados e outras 10 mil pessoas diretamente afetadas com perda dos lares e de seus modos de vida. Entre os impactos diretos destacamos os riscos de doenças relacionadas à qualidade da água, principalmente diarreias no primeiro momento e contaminações por metais pesados no futuro, e ao ciclo de vetores e hospedeiros de doenças a partir da alteração do ciclo das águas e de perda de cobertura vegetal, destacando-se dengue, chikungunya e zika, além de esquistossomose, doença de Chagas e leishmaniose, que podem surgir meses após o período inicial do desastre. Há risco, ainda, de doenças respiratórias, com a transformação da lama de rejeitos em grande fonte de poeiras e material particulado (contendo óxido de ferro, sílica e matéria orgânica, além da hipótese de outros metais como alumínio e manganês). Destacam-se também os impactos psicossociais e na saúde mental, resultantes do comprometimento dos meios de vida, das heranças culturais e da perda da sensação de lugar, bem como a insegurança e medo da violência entre os que foram deslocados para abrigos ou casas temporárias, contribuindo para futuras doenças crônicas, como as cardiovasculares. Não menos grave foram também os impactos sobre os índios Krenak, que tiveram seus modos de vida, cultura e religião afetados pelo desastre.
As consequências econômicas incluem desde os danos e destruição de edificações (casas, unidades de saúde, escolas, pontes, vias e demais equipamentos urbanos), impactos sobre serviços públicos municipais (energia, tratamento de esgoto, limpeza urbana, entre outros), impactos sobre as atividades econômicas na indústria, serviços, agropecuária, comércio e retração tributária que provocou colapso na economia dos municípios próximos da Samarco, dependentes da atividade econômica baseada em extração de minério de ferro (em torno de 95%). Sem contar os custos de recuperação e reconstrução – estima-se em mais de R$ 1 bilhão os prejuízos econômicos diretos e imediatos para os municípios atingidos.
O desastre da Samarco é não só uma fratura exposta das falhas na gestão de riscos de barragem por parte de uma empresa considerada exemplar, mas das frágeis políticas e instituições existentes para a redução de riscos
A empresa Samarco era, até o desastre, considerada exemplo de segurança em barragens, com as suas ações classificadas como de baixo risco. Essa é a mesma classificação de 80% das 662 barragens existentes no Brasil, distribuídas em 19 estados e 164 municípios. Se considerarmos que o desastre da Samarco é não só uma fratura exposta das falhas na gestão de riscos de barragem por parte de uma empresa considerada exemplar, mas também das frágeis políticas e instituições existentes para a redução de riscos, podemos concluir que temos um conjunto de sérias ameaças e riscos de desastres em barragens de mineração espalhadas pelo país. A primeira lição a ser aprendida então é que são urgentes a adoção de um conjunto de ações dos diferentes órgãos públicos (mineração, meio ambiente, defesa civil e saúde), nos seus diferentes níveis (do federal ao municipal) para, com transparência e participação ampla da sociedade, reduzir os riscos de eventos similares, bem como as vulnerabilidades relacionadas às condições de vida da população e aos órgãos ambientais.
Porém, apesar da urgência e de haver um universo bem delimitado onde atuar, nenhum passo ainda foi efetivamente dado. Ao contrário, registram-se retrocessos. Em Minas Gerais, em 25 de novembro de 2015 (50 dias após o desastre da Samarco), foi sancionado pelo governador Fernando Pimentel (PT), o Projeto de Lei nº 21.972/2016, cujo objetivo foi não só flexibilizar o licenciamento ambiental, mas também concentrar no Executivo as decisões, esvaziando a participação da sociedade nesse processo. No Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou em 27 de abril de 2016 a PEC 65/2012, de autoria do senador Acir Gurgacz (PDT-RO) e relatada pelo senador Blairo Maggi (PR-MT), atual ministro da Agricultura. A PEC 65, na prática, esvazia completamente o processo de licenciamento ambiental em favor da flexibilização no nível federal, violando os princípios da Constituição de 1988. Nesse amplo leque de partidos, temos do PT de Pimentel ao PR de Maggi (seu nome encontra-se associado ao desmatamento, à defesa do uso de agrotóxicos proibidos e ao descaso com a legislação ambiental), passando pelo PDT, ações que claramente constituem retrocessos, reduzem cada vez mais o papel dos órgãos ambientais e da sociedade no licenciamento e criam cenário favorável para futuros desastres como provocado pela Samarco.
Outro aspecto que deve ser destacado é o recorrente desrespeito às vítimas nos desastres, assim como a negligência em relação aos processos de reabilitação e recuperação ambiental, sem qualquer consulta e envolvimento das vítimas e das organizações da sociedade civil relacionadas, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), assim como o envolvimento do Ministério Público Federal (MPF).
O acordo não prevê mecanismos jurídicos que garantam o cumprimento das obrigações e não possui foros adequados de participação dos atingidos para tomadas de decisões
A presidente Dilma Roussef (PT) firmou acordo com Samarco, Vale e BHP e os governos de Minas e Espírito Santo, para criação de um fundo de R$ 20 bilhões para recuperar a Bacia do Rio Doce em 15 anos, constituindo uma fundação (espécie de consórcio empresarial-governamental). Na ação civil pública movida pelo MPF, são réus, além das empresas Samarco, Vale e BHP, órgãos do Governo Federal (ANA, Ibama, DNPM, IcmBio, Funai, Anvisa, Iphan e BNDES) e estaduais (MG e ES) relacionados ao meio ambiente. Os R$ 20 bilhões propostos no acordo constituem apenas 12% dos R$ 155 bilhões demandados na ação do MPF. Por fim, o acordo possui duas características que produzem uma impermeabilidade democrática na governança da fundação proposta e constituem sério descaso para com as vítimas e o meio ambiente: por um lado não prevê mecanismos jurídicos que garantam o cumprimento das obrigações; por outro, não possui foros adequados de participação dos atingidos (são diferentes grupos populacionais, incluindo várias comunidades tradicionais e indígenas) para tomadas de decisões.
A maior parte dos nossos partidos e políticos, da esquerda para a direita, vem atuando no sentido de flexibilizar a legislação ambiental favorecendo muito mais seus financiadores de campanha do que os interesses da população
O desastre da Samarco é uma fratura exposta não só por revelar como nos processos produtivos e de regulação dos mesmos, anormalidades são transformadas em normalidades, mas também por deixar claro outros dois processos igualmente importantes. O primeiro é como a maior parte dos nossos partidos e políticos, da esquerda para a direita, vem atuando no sentido de flexibilizar a legislação ambiental favorecendo muito mais seus financiadores de campanha (na eleição de 2014, a Vale doou quase R$ 49 milhões para diferentes candidatos a deputados, governadores e presidente) do que os interesses da população. O segundo é como todo o nosso escopo institucional, materializado inclusive no acordo criando o consórcio empresarial-governamental nesse desastre, mas não restrito a ele, encontra-se estruturado para proteger muito mais os governos e as empresas do que os cidadãos, tornando-se insensível ao sofrimento das vítimas e prolongando os efeitos dos desastres (o desastre político-institucional dentro do desastre socioambiental).
O atual modelo de desenvolvimento econômico adotado no país encontra-se estruturado em um sistema político que acaba favorecendo grandes interesses econômicos em detrimento de um desenvolvimento que combine sustentabilidade ambiental e justiça social. A questão é que esse modelo não só privilegia alguns poucos em detrimento dos milhões de vítimas de desastres no país e meio ambiente, mas compromete igualmente o futuro das próximas gerações e os sistemas de suporte à vida.
* Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Fiocruz (Cepedes/Fiocruz)