Política de atenção ao câncer: risco de retrocesso – por Luiz Antonio Santini

Política de atenção ao câncer: risco de retrocesso – por Luiz Antonio Santini

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Foi sancionada em 10 de maio de 2022, pelo Governo Federal, a Lei nº 14.335, que dispõe sobre a atenção integral à mulher na prevenção de cânceres do colo uterino, de mama e colorretal, alterando o texto até então vigente (Lei nº 11.664, de 2008). A nova lei merece as críticas que tem recebido de especialistas da área oncológica, uma vez que as diretrizes ali contidas estão equivocadas do ponto de vista epidemiológico e trarão consequências graves à saúde das adolescentes e adultas, bem como ao sistema de saúde. A medida acaba por desqualificar a política de controle do câncer do país, construída ao longo de muitos anos, e incentivar tomadas de decisão em saúde sem evidências científicas.

Embora apresentada e divulgada como um dispositivo que amplia a prevenção do câncer em mulheres, a lei dá margem a interpretações inadequadas, indicando a realização de exames preventivos, de rotina, a partir da puberdade e incluindo o câncer colorretal entre os cânceres a serem rastreados dessa forma, sem orientação pela ciência. A indicação de rastreamento de câncer de mama e colorretal a qualquer tempo inclui no grupo a ser rastreado meninas púberes, o que não é prática em lugar algum do mundo.

A aprovação da lei não se deu por falta de alerta. Nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), publicada em março, por ocasião da aprovação no Senado, do Projeto de Lei 6559, que daria origem ao novo texto, já apontava esses equívocos. Conforme registrou a Abrasco, o Instituto Nacional do Câncer (Inca), responsável pelas diretrizes nacionais para o rastreamento dos cânceres do colo do útero e mama, recomenda a realização de exames preventivos para o câncer do colo do útero em mulheres de 25 a 64 anos a cada três anos e de mamografias de rastreamento em mulheres de 50 a 69 anos a cada dois anos. Essas recomendações, destaca ainda a nota da Abrasco, baseiam-se em evidências científicas, que apontam maior benefício e menor risco nessas faixas etárias, para a saúde das mulheres.

Sabemos, como bem lembrou a nota da Abrasco, que o câncer do colo do útero é uma doença de evolução lenta, causado por infecção persistente pelo HPV. Em mulheres com menos de 25 anos, a maior parte das alterações causadas pelo vírus regride espontaneamente. Tratar essas lesões em mulheres jovens traz consequências, como maior risco de morbidade obstétrica neonatal.

No que diz respeito ao rastreamento do câncer de mama, também abordado na nova lei, o exame de mamografia é contraindicado em mulheres com menos de 50 anos e assintomáticas, por já se terem evidências de que os danos superam possíveis benefícios. Já entre aquelas com 50 anos ou mais, observam-se benefícios e redução da mortalidade.

Quanto ao rastreamento do câncer colorretal, do qual a nova lei passou a tratar, a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta que o rastreamento se dê em homens e mulheres com mais de 50 anos e em países com capacidade de realizar a confirmação diagnóstica e o tratamento. Como, mais uma vez, aponta corretamente a Abrasco, “a nova lei desconsidera a realidade da rede de atenção oncológica brasileira, que hoje não está estruturada para atender uma demanda atrelada à implantação do rastreamento, podendo sobrecarregar o sistema e atrasar ainda mais o acesso ao diagnóstico e tratamento dos casos sintomáticos”. 

Embora em tom ligeiramente contemporizador, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), também alerta em nota, publicada em 11 de maio, dia seguinte à promulgação da lei, para as consequências danosas do texto. A SBOC já havia encaminhado, em março, ofício à Presidência da República e ao Ministério da Saúde, alertando que a inclusão do inciso II, ao art. 2º do então Projeto de Lei, estabelecendo que os exames citopatológicos do colo uterino, mamográficos e de colonoscopia devem ser assegurados a "todas as mulheres que já tenham atingido a puberdade, independentemente da idade", poderia “dar margem a interpretações que vão na contramão das melhores evidências científicas disponíveis”. E nesse sentido, registra sua expectativa de que esse ponto seja revisto na regulamentação da medida, prevista para daqui a 90 dias.

Sabendo-se que existem faixas etárias bem definidas para que se realize o rastreamento de tumores de colo uterino, mama e colorretal, não há pertinência em recomendar esses procedimentos “a qualquer idade”, como aponta a lei, sob pena de se gerar uma demanda enorme por exames, desnecessariamente, e de se exporem pessoas a procedimentos para os quais não têm indicação. 

Estratégias de controle de doenças podem requerer alterações com o tempo. Isso, no entanto, deve obedecer a determinados critérios, como os epidemiológicos e demográficos, e, sobretudo, a evidências científicas. No caso da nova lei, não há critérios explícitos nos quais as alterações possam se fundamentar. Um programa de rastreamento do câncer colorretal, corretamente organizado, com trajeto dos pacientes pelo sistema bem definido, de modo ao melhor acesso a diagnóstico e tratamento é muito bem-vindo, mas sem contrassensos, como propor colonoscopia na puberdade.

Assim, aplaudir essa lei, em nome de um possível avanço na política de controle de câncer no Brasil, é inadequado e nos causa preocupação.

* Ex-diretor Geral do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e pesquisador do CEE-Fiocruz.

 

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