Podemos construir um ambiente de mais justiça social e menos disputa comercial?

Podemos construir um ambiente de mais justiça social e menos disputa comercial?

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Publicado no site Jota, por Jorge Bermudez

Hoje em dia, quem olha o mundo com uma visão geopolítica o enxerga como se estivéssemos diante de um enorme tabuleiro daqueles jogos de estratégia, com as nações e a representação de interesses se digladiando pela conquista de territórios, aqui representados nas disputas entre os países do Norte e do Sul no acesso a tecnologias contemporâneas. Estamos diante da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, contabilizando quase 160 milhões de casos e mais de 3 milhões de mortes (no Brasil passando da marca de 15 milhões de casos e quase chegando às 500.000 mortes e famílias enlutadas) e a cada dia recebendo novas notícias, esperadas ou inesperadas. Aqui entram em jogo os poderios econômicos, a infraestrutura tecnológica e os interesses representados nas incoerências levantadas no Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em acesso a medicamentos, entre os interesses individuais, as diretrizes de saúde pública, as leis, a regulação de direitos humanos e as regras de comércio.

O mundo acompanha desde o início da pandemia a dualidade entre solidariedade e disputa comercial das tecnologias, na atualidade com maior ênfase no acesso às vacinas e o “apartheid da saúde”, que vem sendo promovido entre os países do Norte e os países do Sul. Os mecanismos voluntários não se mostram e nunca foram suficientes e se trava uma disputa na Organização Mundial do Comércio (OMC), com dois terços dos países membros apoiando a suspensão temporária de direitos de proteção patentária para as tecnologias associadas a Covid-19, proposta pela Índia e pela África do Sul, como medida necessária para assegurar o acesso a vacinas aos 7,9 bilhões de habitantes do mundo. Entretanto, até poucos dias atrás, essa discussão se encontrava completamente travada na OMC pela oposição dos países do Norte, notadamente os EUA, a União Européia, Austrália, Japão, Reino Unido, entre outros, e o Brasil, cujo governo atual optou num primeiro momento em se alinhar com a oposição da administração Trump, se afastando dos BRICS e outros parceiros tradicionais e na contramão do mundo em desenvolvimento.

O tabuleiro do jogo de estratégia pode mudar completamente com o anúncio, em 5/5/2021, da mudança de posição do governo dos EUA e a disposição de apoiar a suspensão dos direitos de proteção patentária de vacinas na OMC.

É claro que houve muita pressão nos EUA, inclusive no seio dos democratas, da sociedade civil e de personalidades, solicitando que a administração Biden-Harris mudasse a posição inicial. No entanto, é necessário dizer que o inesperado desse anúncio impactou o mundo e seguramente está influenciando diversos blocos, o que nos leva a crer que o mundo possa parecer mais solidário no acesso às vacinas no curto e médio prazos. Países como Austrália, Nova Zelândia, a União Européia e Canadá anunciaram abertura para rediscutir a possibilidade de apoiar o “waiver”, embora a proposta dos EUA tenha restringido a pauta a vacinas e não, como originalmente proposto, para todas as tecnologias.

Entretanto, cada passo pode representar um avanço, indubitavelmente. O assunto é tão dinâmico que gerou uma série de controvérsias e discussões entre os países, como mostra levantamento recente feito por Health Policy Watch, levando a própria OMC a agir com mais agilidade.

A mudança de posição dos EUA também vem gerando polêmicas, como verificado na reunião de líderes dos 27 membros da União Europeia, no Porto, em Portugal, a primeira reunião presencial na pandemia realizada nos dias 7 e 8 de maio, tal a importância do debate. Severas críticas foram levantadas, colocando o levantamento das restrições à exportação e a capacidade produtiva como medidas mais relevantes por parte dos EUA, questionando  o “falso debate” da suspensão da proteção patentária e argumentando que poderiam até haver mais riscos do que benefícios no apoio ao “waiver”.

Entretanto, ao assinarem o “Compromisso Social de Porto”, abordam a necessidade de superarem a crise econômica e social decorrente da pandemia, enfatizam a necessidade de promover medidas direcionadas à proteção social, inclusão social, combate à pobreza e o reforço de direitos sociais, ao mesmo tempo reiterando posicionamentos anteriores, mas não mencionam explicitamente o atual debate sobre propriedade intelectual na OMC.

Até mesmo o Brasil, que inicialmente foi contra a medida e depois ficou sem se manifestar nas reuniões da OMC, acaba de anunciar que poderá novamente se alinhar com os EUA nesta última proposta. Vamos lembrar também que, no nível internacional, o Brasil vem sendo questionado pelas suas posições ultraliberais e sobre como voltar a resgatar o papel social estratégico que já exerceu no passado, embora saibamos ser muito difícil ou até impossível, considerando o negacionismo e as atuais linhas políticas do governo e do atual gabinete, que vem gerando descrédito nas arenas internacionais.

Entretanto, mesmo que o governo venha atuando na contramão, o Brasil vem presenciando significativas vitórias da sociedade e dos direitos humanos na questão ampla de propriedade intelectual e acesso a medicamentos.

Ressaltamos a aprovação no Senado do parecer do Senador Nelsinho Trad ao PL 12/2021 do senador Paulo Paim no último 29 de abril, que abre o caminho para o que vem sendo proposto por diversos PLs na Câmara dos Deputados e alterações legislativas que outros países têm promovido, mas que ainda terá que passar pelo crivo da Câmara dos Deputados e pela forte oposição do Poder Executivo. A proposta aprovada ressalta as licenças compulsórias automáticas para tecnologias relacionadas com a Covid-19 e nos aproxima da proposta em discussão na OMC. Esperamos que a discussão na Câmara dos Deputados tenha a mesma sensibilidade e defesa da vida manifestada no Senado, embora tenhamos enorme preocupação com a receptividade que possa ter no governo e com o seu negacionismo.

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu também no último dia 6 de maio pela inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da nossa Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), dispositivo que permitia a extensão da proteção patentária para além do período de 20 anos, quando havia menos de dez anos restantes ao ser deferida a patente pelo INPI. Essa luta vinha sendo travada há alguns anos e nos permite pensar numa realidade mais próxima do Acordo TRIPS sem cláusulas mais restritivas na nossa legislação. Ainda vão ser discutidos aspectos sobre a modulação dos efeitos desta decisão, mas o mundo vem acompanhando esta vitória emblemática para o Brasil e a mobilização da sociedade civil nesta matéria.

Em termos de perspectivas para o mundo em desenvolvimento e em nome da equidade e solidariedade que estão sendo atropeladas pelo nacionalismo exacerbado e por compras antecipadas dos países do Norte, deve constituir obrigação moral e ética apoiar o “waiver” apresentado pela Índia e África do Sul e hoje apoiado pela maioria dos 164 países membros da OMC, certamente com mais países apoiando depois do “cataclisma” que a mudança de posição dos EUA motivou.

Não podemos concordar com visões restritas ao imediatismo, à dificuldade de implementar medidas ou à busca de respostas de imediato no Brasil, nem com as possíveis ou potenciais consequências para iniciativas de transferência tecnológica em curso, pois estas certamente seguirão seus rumos e contribuirão positivamente com o acesso universal às vacinas.

Não haverá “apagão” no Brasil nem retirada de investimentos por parte das grandes empresas farmacêuticas, pois nenhuma grande empresa, como nunca fez e não haverá de fazer, vai ousar se retirar e abrir mão de lucrar ao abastecer um país de 212 milhões de habitantes com as compras centralizadas e asseguradas no nosso SUS.

É na somatória de iniciativas, como foi nosso passado, fortalecendo nosso SUS, os BRICS, o Mercosul, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), lembrando como o Brasil foi importante e contribuiu com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as Nações Unidas; lembrando do papel relevante que o Brasil teve na maioria das ações recentes ou passadas na OMS, entre as quais a CIPIH, o IGWG, a GSPOA, o EWG, o CEWG, que esperamos que as atuais iniciativas deflagradas na pandemia (ACT-accelerator, C-TAP, COVAX, entre outras) possam sentir que os países de renda média apoiam e reforçam a necessidade de medidas conjuntas que assegurem o acesso universal a essas tecnologias.

Que tenhamos, neste momento tão importante para o mundo, a ousadia de confrontar um sistema de propriedade intelectual que podemos considerar falido ou fracassado e que não está gerando a inovação que nossas populações precisam! Que possamos no Brasil, fortalecendo e financiando o SUS, aspirar a viver e legar um mundo mais solidário no pós-pandemia!

*JORGE BERMUDEZ é médico formado na UFRJ, com mestrado em Medicina Tropical (UFRJ) e doutorado em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), atualmente Pesquisador Sênior e Chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública/ Fiocruz. 

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