Opinião – Por um enfoque socioambiental crítico
Artigo de Marcelo Firpo mostra como a articulação entre produção acadêmica e mobilização social está na base do enfrentamento ao consumo de agrotóxicos e pode orientar outras lutas, como a defesa do saneamento básico como direito humano
Marcelo Firpo Porto *
Os últimos anos vêm marcando a construção de um enfoque socioambiental crítico nas discussões sobre saúde e ambiente no âmbito da saúde coletiva brasileira (Porto, Rocha e Finamore, 2014). Esse enfoque atualiza o debate sobre a determinação social da saúde a partir de contribuições provenientes das interrelações entre ecologia, economia, política e direitos humanos fundamentais, com a incorporação de conceitos importantes que são usados na análise de problemas de saúde e ambiente, tais como: modelos de desenvolvimento; metabolismo social ou socioecológico; neoextrativismo; território e processos de territorialização; conflitos territoriais ou ambientais; movimentos por justiça ambiental, dentre outros.
Com relação às práticas de pesquisa e produção de conhecimentos, incorporam-se crescentemente conceitos e propostas metodológicas como ciência engajada, pesquisa-ação, ecologia e diálogo de saberes, produção compartilhada de conhecimentos, todos envolvendo um maior envolvimento com movimentos comunitários e sociais através de diagnósticos participativos de problemas e a construção coletiva de processos de mobilização, resistência e produção de alternativas.
Nos últimos anos, este enfoque tem privilegiado os territórios mais atingidos pela expansão de setores como o agronegócio, a mineração, geração de energia e outros grandes empreendimentos (como as rodovias, complexos portuários e siderúrgicos, transposição do São Francisco etc.), que afetam mais as populações dos campos florestas e águas.
Um exemplo de especial relevância são as inúmeras atividades acadêmicas e políticas em torno do enfrentamento dos problemas decorrentes do aumento do consumo de agrotóxicos (o Brasil é o maior consumidor do mundo desde 2008). O enfoque socioambiental crítico tem contribuído para compreender o problema no contexto mais amplo do papel do agronegócio no Brasil e seu papel na divisão internacional do trabalho enquanto exportador de commodities agrícolas. Além disso, direciona as análises e investigações para reduzir o ocultamento acerca dos impactos socioambientais e à saúde dos agrotóxicos, e articula produção acadêmica com processos engajados de mobilização social em conjunto com inúmeros movimentos sociais, entidades e instituições. Referências atuais dessa articulação acadêmico-política são a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida; a produção do Dossiê Abrasco Impactos dos Agrotóxicos na Saúde; e a realização de um curso de mestrado para militantes da via campesina sobre trabalho, saúde, ambiente e movimentos sociais ministrado ENSP/FIOCRUZ. Contudo, o mais importante dessas articulações talvez seja ir além da visão biomédica centrada nos processos saúde-doença, para completar o círculo virtuoso saúde-doença-saúde, através da articulação com os movimentos pela reforma agrária, pela produção agroecológica, e pela segurança e soberania alimentar, em articulação com processos emancipatórios como o feminismo, o ambientalismo popular e as inúmeras frentes de luta pelos direitos humanos e contra o racismo.
Como seria, então, olhar a questão do saneamento básico, da água e do esgotamento sanitário a partir de um enfoque socioambiental crítico? São inúmeras as possibilidades, e aqui comentarei brevemente algumas questões que poderão nortear análises e processos acadêmico-políticos que produzam futuras sinergias.
Um tema central da ecologia política: quem consome mais água, como, para quê? Ou seja, como se realiza o metabolismo social da água?
Com relação à água, a atual crise hídrica e os desastres provenientes das mudanças climáticas vêm priorizando este tema não só pelos governos e a mídia, mas também por inúmeros movimentos sociais. Uma questão central é relacionar a água como direito humano. Além de aspectos legais e institucionais, isso nos remete a um tema central da ecologia política: quem consome mais água, como, para quê? Ou seja, como se realiza o metabolismo social da água? Nos próximos anos caberá à sociedade brasileira aprofundar este diagnóstico e caminhar para ferramentas como a pegada hídrica e movimentos como a justiça hídrica.
Do ponto de vista da ecologia política, da mudança do modelo de desenvolvimento e mesmo de uma transição civilizatória, a discussão de fundo aponta para o debate da água (e outros bens naturais) enquanto um bem comum da humanidade, o qual deve ser usado para o bem estar humano e a sustentabilidade dos ecossistemas, e não (infelizmente tal qual a saúde) a serviço do lucro e lógicas privadas de mercado.
Com relação ao saneamento básico, existem discussões de fundo que a saúde coletiva e a engenharia sanitária podem aprofundar. Por exemplo, o debate sobre as favelas não apenas a partir da necessidade de projetos urbanísticos que desconsiderem a memória e a cultura local, e acabem por gerar processos de gentrificação pela especulação imobiliária pós-intervenções, aliás frequentemente de baixa qualidade e atreladas à lógicas clientelistas e eleitorais. Este debate democrático precisa estar relacionado a outro, mais amplo, sobre o futuro da cidades: queremos um modelo inclusivo, plural, democrático e sustentável, ou um projeto modernizador excludente e gerador de zonas de sacrifício[1], orientado por lógicas empresariais atreladas aos grandes empreendimentos, sejam eles de eventos internacionais como a copa do mundo e as olímpiadas, ou a modernização de áreas históricas ou regiões portuárias, novamente expulsando comunidades e suas histórias?
Este debate democrático precisa estar relacionado a outro, mais amplo, sobre o futuro da cidades
Portanto, questões como esgotamento sanitário, lixo e qualidade da água potável precisam estar conectadas não apenas à ampliação dos serviços de saneamento, mas às discussões sobre os direitos à moradia, ao transporte público de qualidade, ao trabalho digno, bem como à educação e serviços de saúde de qualidade. Assim como no campo os movimentos sociais e a academia construíram a proposta da agroecologia, um enfoque socioambiental crítico, junto com os movimentos sociais urbanos, precisam reinventar o sentido da cidade e das lutas sociais que emergem, sem rumos e alianças ainda claros, no enfrentamento do preço e qualidade dos transportes públicos, de projetos como o teleférico na Rocinha, dos movimentos contra a poluição e contra a violência. Estabelecer conexões é um papel estratégico da saúde coletiva, junto com outros campos e movimentos, em direção a uma promoção emancipatória da saúde.
* Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz)
[1] Trata-se de um conceito da justiça ambiental desenvolvido inicialmente pelo sociólogo norteamericano Robert Bullard, significando regiões com as piores condições de vida onde vivem as populações mais discriminadas em sociedades desiguais e com a presença do racismo ambiental.