Nota de repúdio ao ataque contra a reforma psiquiátrica brasileira
Publicado no Mad in Brasil
O Ministério da Saúde (MS), por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, instituiu um grupo de trabalho no qual propôs a revisão da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a criação de uma nova proposta de modelo assistencial em Saúde Mental. O MS prepara o “revogaço”, que consiste na revogação de cerca de cem portarias sobre Saúde Mental, ameaçando diversos programas e serviços do setor de Psiquiatria e Saúde Mental.
Na reunião realizada na Câmara Técnica da Comissão Intergestores Tripartite, no dia 03/12/2020, foi apresentada a proposta de revogação de todas as portarias que embasam o processo de construção do modelo comunitário de saúde mental do SUS. Este modelo, amplamente debatido e aprovado em quatro conferências nacionais (1987, 1992, 2001 e 2010), fundamentado na Lei da Saúde Mental (10.216/2001), é orientado pela ética do cuidado em liberdade.
A proposta do governo Bolsonaro se baseia em um modelo que prima pela centralidade nas internações psiquiátricas, cujo domínio é orientado por um modelo de cuidado reducionista e exclusivamente médico-psiquiátrico.
O governo brasileiro ao propor uma política sem amplo debate e participação de usuários, familiares e trabalhadores, orientado unicamente por uma corporação médica, fere o princípio e o direito fundamental da ampla participação, que é o alicerce do Estado democrático.
Como se não fosse suficiente termos um general a frente do Ministério da Saúde em uma pandemia de Covid-19, estão ameaçando o programa de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS, as equipes de consultório de rua, os serviços de Residência Terapêutica e o programa de Volta para Casa.
Também corre risco a Rede de Atenção para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, o modelo de atendimento ambulatorial e de financiamento dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Objetivamente, estamos diante do risco de desmonte das Políticas Públicas de Saúde Mental resultantes do processo de revisão do paradigma assistencial na Saúde Mental.
Especificamente em relação à atenção das crianças e adolescentes, o documento da Associação Brasileira de Psiquiatria (2020) que inspira a proposição atual do Ministério da Saúde, propõe, dentre outras coisas: a) Criação de Hospitais-Dia, com finalidade “de observação, manipulação de condutas, e determinação de níveis de desenvolvimento […] indicado para crianças pré-escolares (ABP, 2020, p. 17); b) Interconsulta nas escolas para “detecção dos principais problemas de aprendizado ou comportamentais que dificultam o desempenho ou a inserção da criança”; c) Formação de profissionais para atendimento de crianças e adolescentes “segundo teoria e prática referendada pela ABP” (Idem, p. 18, grifo nosso).
Ora, manipular condutas, detectar problemas com finalidade de adequação e desempenho, impor a hegemonia de um único campo de conhecimento na organização do cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes, são reproduções do modelo higienista vigente nas primeiras décadas da República, responsável pela institucionalização, segregação, exclusão e silenciamento das infâncias e adolescências brasileiras.
Esse retrocesso é inaceitável posto que não é ético, não é legítimo, não está referendado em consensos amplos, participativos e fundamentados – como são as conferências nacionais do SUS.
No Brasil, vivenciávamos um importante momento histórico, no qual a loucura era sido revisitada e novas construções feitas, a partir da perspectiva da promoção da cidadania e bem-estar social para aqueles que padecem de sofrimento psíquico. A década de 80 foi marcada por um processo de redemocratização do país, após duas décadas de regime militar. Tomou forma o “Movimento pela Reforma Sanitária”, tendo em vista a abertura e livre acesso da população à assistência à saúde. A expressão foi usada para se referir ao conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor saúde, em busca da melhoria das condições de vida da população.
Tais ações culminaram na inclusão na atual Constituição Federal, promulgada em 1988, em seu artigo 196, que consagra a noção de saúde enquanto direito de todos e dever do Estado. Disposto da seguinte forma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (C.F. 1988, artigo 196).
Ainda na Constituição Federal, no artigo 199: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º – É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
Cabe indagar qual é o interesse dessa psiquiatria privada que segue o modelo biologicista medicalizante em auxiliar (embasar) mudanças estruturais nas regulamentações e na operacionalização do SUS?
Em 1990, com a aprovação da Lei 8.080, também chamada de Lei Orgânica da Saúde, a qual institui o Sistema Único de Saúde, preconizou-se a criação de uma rede pública e/ou conveniada – de caráter complementar – de serviços de saúde e atenção integral à população nos níveis de prevenção, promoção e reabilitação.
O SUS é norteado com base em princípios e diretrizes que visam balizar suas ações e contribuir para a conservação de suas bases fundamentais. Os princípios de integralidade, respeito à singularidade, diversidade de abordagens, territorialidade, humanização e reintegração social, estão na base do paradigma de Atenção Psicossocial da Reforma Psiquiátrica brasileira e são garantidos pela lei 10.216, de 06 de abril de 2001.
Sendo assim, violar estes princípios significa também violar o que dispõe a constituição brasileira sobre o assunto. Na prática, a proposta do MS decreta a extinção da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ao atingi-la em seus alicerces, e cria um retrocesso institucional de décadas. O tipo de psiquiatria que sustenta esse discurso atroz não tem condições de estabelecer políticas de cuidado que não sejam excludentes, segregatórias, desumanas.
É pela imprescindível necessidade de um atendimento ao sofrimento psíquico em liberdade, dispondo de múltiplas abordagens teóricas, trabalho inter/transdisciplinar, e diferentes dispositivos de assistência, que precisamos nos posicionar com firmeza contra essa proposta descabida de mudança do modelo assistencial em Saúde Mental do Ministério da Saúde do (des)governo Bolsonaro. Trata-se de mais um descalabro, um crime contra a saúde pública e a humanização do atendimento, proposto por um governo que vem mergulhando o país nas trevas do atraso, do obscurantismo e do negacionismo. Desta vez, com o retorno do modelo de exclusão manicomial.
Concluo enfatizando que não podemos tolerar tamanho retrocesso nas conquistas civilizatórias, humanitárias e democráticas, que foram duramente conquistadas em nosso país.
Agradeço especialmente ao psiquiatra Manoel Olavo Loureiro Teixeira pelas conversas que contribuíram para a formulação deste texto.