Hepatite C: o direito à cura entre a saúde, o comércio e a mídia – por Jorge Bermudez
A imprensa é bombardeada permanentemente com informações que nem sempre correspondem – ou correspondem parcial e enviesadamente – à realidade, mas essas informações sempre cumprem um objetivo voltado a determinados interesses envolvidos no caso em questão, em especial quando se trata de interesses comerciais.
É nesse contexto que vemos a informação veiculada no final desta última semana, de que o TCU decidiu impedir a Fiocruz de continuar a cooperação com o Consórcio BMK para a produção de Sofosbuvir, medicamento para o tratamento da hepatite C já registrado na Anvisa, tanto pela Fiocruz como pela empresa Blanver. De acordo com a notícia, “para os ministros, a cooperação feriu as normas que regulam as contratações públicas e ignorou a importância de um produto a custo razoável para tratamentos na rede do SUS. Segundo ainda o processo, por ocasião do acordo, a Fundação sabia da existência de pedidos de patentes junto ao INPI para o medicamento Sofosbuvir – também para a doença – e das proteções legais decorrentes da concessão da patente” (IstoÉ, 24/8/2018).
Curiosamente, essa notícia é veiculada logo depois das manifestações promovidas por entidades na porta do INPI [Instituto Nacional de Propriedade Intelectual], no Rio de Janeiro, e na Gilead – fabricante do medicamento – em São Paulo (ver aqui). O material de divulgação para essas manifestações afirmava com clareza que o curso de tratamento aos preços atualmente praticados pela Gilead para as compras pelo Ministério da Saúde monta a R$ 16 mil e, com o produto desenvolvido pela parceria na versão genérica, cairia para R$ 2.750, jogando por terra o argumento do “custo razoável para tratamentos na rede do SUS”.
Desnecessário falar na ganância da indústria, que lançou o produto em escala mundial ao preço de 84 mil dólares pelo curso do tratamento, sublicenciando em seguida empresas genéricas indianas para produzi-lo a menos de mil dólares pelo curso de 12 semanas de tratamento, para um escopo geográfico predeterminado pela indústria, excluindo o Brasil e uma série de outros países de renda média com elevada prevalência da doença. A negociação do Ministério da Saúde reduziu o preço no país para cerca de 6,9 mil dólares, ainda bem acima dos preços estimados para a produção local, que o TCU pretende inviabilizar.
A moção aprovada na Abrasco demanda do INPI a rejeição imediata do pedido de patente do Sofosbuvir, com base na argumentação de falta de atividade inventiva, como foi feito em diversos países do mundo
Recentemente, a Fiocruz foi o palco do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrasco), reunindo cerca de 7.500 profissionais de saúde do Brasil e do mundo, de 26 a 29 de julho. Entre as 15 moções apresentadas e aprovadas na Plenária Final do congresso, uma delas contextualiza que, ao mesmo tempo em que se anunciou o registro das versões genéricas do Sofosbuvir no Brasil, as ações para bloquear essa iniciativa foram intensificadas, incluindo campanhas difamatórias em relação a uma política consagrada no Brasil e no mundo, a política de medicamentos genéricos, que tem mostrado a importância e seu impacto na ampliação do acesso da população aos medicamentos.
A moção aprovada na Abrasco demanda do INPI a rejeição imediata do pedido de patente do Sofosbuvir, com base na argumentação de falta de atividade inventiva, como foi feito em diversos países do mundo. Subsídios para esse indeferimento foram apresentados por diversas entidades ao INPI no Brasil, incluindo a Fiocruz. Adicionalmente, a moção demanda ao Ministério da Saúde manter o compromisso com a queda de preço do Sofosbuvir e, caso necessário, a emissão de licença compulsória (quebra de patente), iniciativa absolutamente legal, amparada por acordos internacionais, em especial o Acordo Trips, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e respaldada no último Relatório do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Acesso a Medicamentos.
Cabe, finalmente, jogar por terra o segundo argumento que supostamente municiou o TCU para bloquear a produção local do medicamento. A expectativa de patente não gera qualquer direito ao detentor, a não ser intimidar a concorrência e exercer um monopólio de fato, mas não de direito. A nossa Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) inclui a Exceção Bolar (inciso VII do Artigo 43), que permite o desenvolvimento de produtos sem a permissão do titular, antes que a patente expire. Somente o deferimento da patente legaliza o monopólio, que pode ser contestado à luz do interesse público e do direito à saúde. Em outras palavras, enquanto tentamos bloquear a patente, a indústria tenta bloquear a produção local e o acesso ao produto.
Com a palavra, nossos gestores e governantes, legítimos ou ilegítimos!
Com a palavra, a sociedade, o controle social e os usuários do nosso SUS que resiste ao desmonte!
* Médico, Doutor em Saúde Pública, pesquisador da ENSP/Fiocruz, membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas em 2016.