Especialistas contestam relatório do Banco Mundial que recomenda cobrança de mensalidades nas universidades públicas brasileiras
O artigo do jornalista Lira Neto, autor da premiada biografia "Getúlio", sintetiza a indignação gerada no meio acadêmico pelo relatório "Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil", do Banco Mundial, que recomenda a redução das verbas orçamentárias para o Sistema Público de Universidades Federais e a cobrança de mensalidades nestas unidades. O blog CEE-Fiocruz repruduz abaixo o texto de Lira Neto e elenca uma série de artigos contestando as recomendações do Banco Mundial.
Relatório sobre universidades do país parece dizer que há elefantes no céu
Por Lira Neto, publicado no jornal A Folha de São Paulo
"Se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar", observava Gabriel García Márquez. "Mas se você disser que há 425 elefantes alados, as pessoas provavelmente acreditarão."
Expoente do chamado realismo mágico, o escritor aludia ao recurso literário de construir narrativas com alto nível de detalhamento, a ponto de fazer os leitores "acreditarem" nelas. Instaurar um pacto no qual a irrealidade, apesar de manifesta, é aceita em nome da fruição e, quase sempre, da alegoria.
Para além do campo literário, amparar supostas verdades com base em números e estatísticas, manobrando dados e fontes de informação, é truque de ilusionismo político. Em vez de artifício estético, trata-se de manipulação da fé alheia.
O relatório apresentado há poucos dias pelo Banco Mundial ao governo brasileiro, no capítulo destinado a traçar o diagnóstico de nossas universidades, tenta fazer a opinião pública acreditar que há paquidermes planando no céu. É o caso de lembrarmos que elefantes, obviamente, não voam.
"Um estudante em universidade pública custa de duas a três vezes mais que um estudante em universidade privada", sustenta o relatório, sacando números da cartola: o custo médio anual por estudante em universidades privadas seria de até R$ 14,8 mil; em federais, 40,9 mil.
A comparação é escalafobética. Nas universidades públicas, ao contrário do que ocorre na maioria das instituições privadas, a vida acadêmica não se resume à sala de aula. Abrange o indissolúvel trinômio ensino, pesquisa e extensão, por meio de ações sistemáticas junto à comunidade. Daí a necessidade de investimentos sólidos em hospitais, clínicas, museus, teatros e laboratórios, entre outros equipamentos.
Além disso, professores de instituições públicas possuem maior qualificação e, assim, salário minimamente compatível com a relevância social do ofício. Como observa o físico Peter Schulz, em artigo no "Jornal da Unicamp", 39% dos docentes da rede pública têm formação de doutorado, contra 22,5% da privada. Como dado extra, 85% dos professores das universidades públicas trabalham em regime de tempo integral. Nas privadas, 22,5%.
O salário dos docentes, aliás, está na mira. "Os professores universitários brasileiros ganham muito acima dos padrões internacionais", alardeia o relatório, com astúcias de prestidigitador. Dito assim, nossos mestres e doutores parecem nababos de diploma.
Contudo, um gráfico contido no próprio documento desmente a pegadinha: mesmo o salário dos professores que atingem o topo da carreira, no Brasil, situa-se em nível bem inferior ao dos colegas estadunidenses, italianos, australianos e franceses, por exemplo.
O maior ardil do relatório procura alimentar uma lenda urbana que cerca a academia: "Embora os estudantes de universidades federais não paguem por sua educação, mais de 65% deles pertencem aos 40% mais ricos da população".
A informação não procede. Pesquisas do Fonaprace (Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis) e da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) apontam o contrário. Apenas 10,6% dos alunos das universidades públicas vêm de famílias com renda superior a dez salários mínimos. Com a democratização introduzida pelo sistema de cotas, o índice de estudantes oriundos de famílias com renda abaixo de três salários, atualmente em 51,4%, só tende a crescer.
Amparado no relatório, o Banco Mundial propôs ao governo dois caminhos: "limitar os gastos por aluno" e "introduzir tarifas escolares". Em bom português, sucatear a universidade e cobrar mensalidades.
Os que não puderem pagar pelos estudos, tratem de recorrer a empréstimos. Nos Estados Unidos, onde o modelo impera, milhões de jovens recém-formados acumulam dívidas impossíveis de serem pagas.
É sintomático: ao longo das 17 páginas do documento relativas ao tema, em nenhum momento os repasses para o setor educacional são definidos como "investimento". Em contrapartida, a palavra "gasto" aparece nada menos de 77 vezes.
Impossível dissociar a leitura do relatório e a escalada autoritária que busca criminalizar a arte e a cultura, bem como espezinhar qualquer manifestação do pensamento complexo e do espírito crítico. Virtudes que encontram na universidade pública um de seus últimos territórios de excelência.
Leia também:
Andifes publica caderno em defesa das Universidades Federais, em que sintetiza o atual contexto do Sistema Público de Universidades Federais, com 63 universidades federais e seus 328 campi, e sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social do país.
Ensino Superior: Banco Mundial e seus problemas com os dados, artigo de Carlos Frederico Rocha, publicado no site Plataforma Política Social, que contesta o relatório do Banco Mundial, dizendo que sua análise dos dados sobre a educação superior pública no Brasil é viciada, desatualizada e, algumas vezes, falsa, levando a um diagnóstico equivocado que fundamente proposta de cobrança de mensalidades, o que acabará por aumentar, em vez de reduzir, a desigualdade social no país.
Relatório do Banco Mundial distorce dados e ignora a realidade do país, alertam especialistas, em matéria publicada pelo Jornal da Unicamp.
O Banco Mundial contra-ataca . O artigo do professor Peter Schulz, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp e secretário de Comunicação da Universidade, aponta fragilidades do relatório do Banco Mundial.
Nota da Reitoria sobre a proposta do Banco Mundial, que repudia a proposta de cobrança de mensalidade na graduação e na pós-graduação scricto sensu, em qualquer universidade pública.
Banco Mundial não propôs ajuste justo
Por Laura Carvalho, professora do Departamento de Economia da FEA-USP , publicado no jornal A Folha de São Paulo
No relatório intitulado "Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil", o Banco Mundial realizou um diagnóstico do que sua equipe técnica —e os economistas de dentro e de fora do governo consultados— consideram ser os principais desafios fiscais brasileiros.
No resumo executivo das primeiras páginas do documento, um parágrafo chama a atenção:
"A princípio, a redução dos gastos não é a única estratégia para restaurar o equilíbrio fiscal, mas é uma condição necessária. (...) Certamente, há escopo para aumentar a tributação dos grupos de alta renda (por exemplo, por meio de impostos sobre a renda, patrimônio ou ganhos de capital) e reduzir a dependência dos tributos indiretos, que sobrecarregam os mais pobres. (...) Tais medidas não são discutidas em detalhe neste relatório, mas deveriam fazer parte da estratégia de ajuste fiscal".
Em outras palavras, apesar de admitir que há outros caminhos possíveis para o "ajuste justo", o estudo encomendado não desviou do que já vem dominando o debate econômico desde 2015: elencar formas variadas de conter despesas com serviços públicos e benefícios sociais.
Para justificar a exclusão, o texto afirma que, "em relação a outros países latino-americanos, o Brasil possui uma alta carga tributária e grandes gastos sociais. O rápido crescimento das receitas durante os anos 2000 camuflou um aumento igualmente rápido das despesas, impulsionado por fatores estruturais (...). Embora a receita decrescente e as altas taxas de juros entre 2014 e 2016 tenham influenciado esse resultado, o rápido crescimento das despesas primárias foi o motivador estrutural da deterioração fiscal".
Ou seja, o ajuste fiscal tem de se dar pela via do corte de gastos sociais por duas razões. Primeiro, porque o nível atual desses gastos seria alto se comparado ao de outros países da América Latina.
Além de ignorar o tamanho de nossa população, a frase sugere que a sociedade brasileira não tem a possibilidade de realizar uma escolha democrática por uma rede de serviços públicos e de proteção social mais em linha com a de países ricos e de cobrar mais impostos no topo da pirâmide, por exemplo.
Segundo, porque o crescimento mais acelerado das receitas nos anos 2000 teria apenas camuflado o crescimento estrutural das despesas.
A desaceleração teria trazido à tona a realidade: as receitas estão condenadas a crescer menos que as despesas. Em outras palavras, os anos 2000 seriam a exceção, a estagnação da economia brasileira é a regra.
É verdade que os anos 2000 foram marcados por um boom de commodities que beneficiou a arrecadação do governo e que as despesas com benefícios sociais cresceram acima do PIB ao longo das últimas décadas. Mas o que vai condenar a economia brasileira a reproduzir o desempenho pífio das receitas que teve entre 2011 e 2016 é, em parte, a estratégia analisada pelo relatório.
Afinal, o estudo prevê que, para o cumprimento do teto de gastos, seria necessário reduzir o Orçamento do governo federal em 25% na próxima década. Mesmo com a aprovação da reforma da Previdência e das demais medidas impopulares sugeridas no texto, os cortes ficariam aquém desse patamar.
Enquanto o teto não for revisto —o que as entrelinhas do relatório mostram que ocorrerá mais cedo ou mais tarde—, os investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia e outras rubricas essenciais terão de cair ainda mais, prejudicando o crescimento e o próprio sucesso do ajuste. Diante disso, é uma pena que o documento não tenha oferecido alternativas mais justas e realistas.