Entre extremos de vinculação e discricionariedade, o SUS (des)caminha
Por Élida Graziane Pinto e Francisco Funcia
Para Alice que não sabia onde desejava ir, qualquer caminho serviria, bem alertara o Gato de Cheshire. Ainda que a obra de Lewis Carroll seja uma notável ficção dedicada ao público infantil, a trajetória do Sistema Único de Saúde (SUS) no nosso país de maravilhas, por ora, submersas, em muito se assemelha à indecisão de rumos e aos passos errantes da menina.
Enquanto Alice havia sido instigada a refletir sobre a primordial e inaugural decisão de para onde ir, o SUS tem sido levado a um falseado problema sobre o modo como serão aplicados os escassos recursos públicos na federação, independentemente de para onde o planejamento da saúde indica ser necessário.
Gastar mais com despesas de pessoal e assistência ambulatorial e hospitalar é uma demanda típica do curto prazo dos mandatários políticos, mas isso não é propriamente condizente com as necessidades de saúde da população em cada região, com base no seu perfil epidemiológico, demográfico e socioeconômico.
Paradoxalmente, se quisermos uma real e consistente mudança de rumos no SUS, deveremos fazer com que a política pública siga estritamente o caminho das suas metas intertemporais de atenção integral à saúde e respectivos custos já fixados no planejamento que a rege, na forma dos artigos 36 da Lei 8.080/1990 e 30 da LC 141/2012.
Desde 26 de janeiro deste ano, contudo, tem havido um profundo debate sobre o modo de financiamento das ações e serviços públicos de saúde em nosso arranjo federativo, com a revisão do modelo até então vigente de transferência dos recursos da União para os entes subnacionais.
A despeito de ser necessária uma melhor definição (nos moldes já assinalados pelo Tribunal de Contas da União[1] e do Conselho Nacional de Saúde[2]) dos repasses fundo-a-fundo e dos critérios de rateio para as transferências intergovernamentais no âmbito da política pública de saúde, o perigo mora em mudanças abruptas que oscilam de um extremo ao outro.
Tal como um pêndulo bipolar, o que está em discussão é a busca de ampliar a discricionariedade dos gestores municipais e estaduais em face da metodologia vigente de repasses que os condiciona a contas e finalidades específicas, para os devidos propósitos de prestação de contas junto à União.
A mudança pretendida pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) — instância de governança federativa do SUS de que participam gestores dos três níveis da federação — seria a simplificação do regime de repasses para apenas duas grandes e genéricas categorias: despesas correntes e despesas de capital. Ou seja, repasses federais que superam a casa de R$65 bilhões ao ano seriam feitos para Estados e Municípios apenas e tão somente com esse filtro: custeio ou investimento/inversão financeira, sem que as instâncias federais de controle e os conselhos de saúde consigam rastrear devidamente o caminho do dinheiro.
Ora, considerando que a responsabilidade é solidária, a descentralização da responsabilidade de gasto por parte do governo federal jamais lhe permitiria abdicar do dever de fiscalizar o regular emprego dos recursos públicos pelos entes subnacionais para que os devidos fins previstos no planejamento setorial da saúde sejam alcançados. Esse, aliás, é o comando do artigo, 36, parágrafo 2º da Lei Orgânica do SUS: “É vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área de saúde.”
Nessa empreitada da CIT, vemos um espaço significativo e deveras temerário de ampliação da discricionariedade alocativa dos prefeitos e governadores, bem como uma postura omissa do governo federal, que se comporta como quem apenas empurra o problema para outrem, quase como um mero agente financeiro.
Ao nosso sentir, o risco é de que os gestores subnacionais, ao poder gastar mais livremente os recursos da saúde, tenderão a aplicá-los quase integralmente em despesas de pessoal e repasses ao terceiro setor no âmbito da assistência ambulatorial e hospitalar. Com isso, tememos que se instaure um paulatino desarranjo na atenção básica e na vigilância em saúde, assim como não saberemos muito bem para quais fins estruturantes aqueles gastos operacionais de pessoal e repasses ao terceiro setor serão destinados.
A fragilidade do processo de flexibilização em comento se insere no contexto de crônico subfinanciamento[3] da saúde, onde as prioridades alocativas certamente tenderão a esvaziar as ações de prevenção, proteção e promoção da saúde, em favor das ações e serviços assistenciais que visam tão somente à sua recuperação.
Atualmente, a Portaria do Ministério da Saúde nº 204, de 29 de janeiro de 2007, prevê regras delimitadas de repasses em seis blocos de financiamento (atenção básica; atenção de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar; vigilância em saúde; assistência farmacêutica; gestão do SUS e investimentos na rede de serviços de saúde). Sabemos que é necessário aprimorar tal metodologia, mas aqui questionamos: qual mudança é necessária para chegarmos ao melhor destino escolhido pela e em prol da sociedade? Refutamos, pois, a tese de que basta flexibilizar a utilização dos recursos, de que qualquer caminho serve...
No âmbito das transferências da União para os entes subnacionais (sobretudo para os municípios), vinculadas ao Sistema Único de Saúde, a modalidade fundo-a-fundo seria aquela pela qual os recursos seriam repassados de forma ágil e sem as exigências que caracterizam a modalidade convenial (transferências voluntárias). É muito interessante ainda observar o elevado número de contas bancárias abertas para a movimentação financeira dos recursos que constituem o Fundo Municipal de Saúde, a maioria delas envolvendo ações vinculadas a uma mesma política, promovendo uma verdadeira irracionalidade administrativa e financeira no atendimento às necessidades da população. Em várias situações, a abertura de contas bancárias atende somente o objetivo de facilitar o processo de prestação de contas pelos profissionais da área contábil nos municípios – vincula a prestação de contas do recurso recebido com documentos que evidenciam o processo de conciliação bancária.
Mas, desde que não sejam recursos de natureza convenial, cujas regras firmadas anteriormente precisam ser seguidas para a adequada prestação de contas, tais valores existentes nessas contas deveriam ser integralmente repassados para um “caixa único” do SUS (materializado pela abertura de uma conta única), para utilização em ações e serviços públicos de saúde, sempre em respeito aos critérios pactuados na CIT e deliberados pelo Conselho Nacional de Saúde (para o caso de transferências estaduais para os municípios, pactuados na Comissão Intergestores Bipartite e deliberados pelo Conselho Estadual de Saúde).
Em outros termos, o poder discricionário do gestor municipal na condução da política de saúde local deve ser condicionado a esses critérios estabelecidos para a transferência de recursos, que, por sua vez, hão de estar em consonância com as diretrizes aprovadas na Conferência Nacional de Saúde, nas Conferências Estaduais de Saúde e nas Conferências Municipais, uma das instâncias máximas de deliberação do SUS nos termos da Lei 8142/90, da Lei Complementar nº 141/2012, bem como em obediência aos princípios constitucionais da participação da comunidade e da gestão tripartite no SUS. Nesses termos, a 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro/2015, foi organizada em respeito ao princípio legal do planejamento ascendente no âmbito do SUS e é o grande norte do caminho que a política pública de saúde deve seguir no Brasil.
Em face de tais questões, perguntamo-nos: o que ocorrerá se a flexibilização de critérios para as transferências fundo-a-fundo (cuja metodologia é fundada apenas na bifurcada classificação por categoria econômica das despesas: correntes e de capital) se efetivar? Há ainda muita coisa a ser feita para que a Atenção Básica seja prioridade em termos de organização dos serviços na rede de atenção à saúde, o mesmo ocorre nas ações de vigilância em saúde. Como estabelecer e operacionalizar a relação necessária para a formulação dos planos municipais de saúde (que estão sendo elaborados neste ano) com as diretrizes estabelecidas pela 15ª Conferência Nacional de Saúde e, nessa perspectiva, com os objetivos e metas fixadas no Plano Nacional de Saúde aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde para o período 2016-2019?
Ao invés de avançarmos em tal linha de reflexões, corremos o risco de entregar volumosas quantias de dinheiro de forma “livre” para Prefeitos e Governadores pagarem despesas de pessoal ou contratarem entidades do terceiro setor, sem qualquer compromisso mensurável e, portanto, suscetível de monitoramento com as necessidades de saúde da população, à luz das dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica e espacial e da capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde, observada a necessidade de reduzir as desigualdades regionais.
O que está em debate na forma mais ou menos vinculada dos repasses federativos não é a qualidade do planejamento governamental para a política pública de saúde. Diferentemente do fortalecimento da relação instrumental entre os orçamentos públicos e o planejamento setorial da saúde, na forma do art. 30 da Lei Complementar nº 141/2012, tememos que haja uma flexibilização que tenderá a fortalecer o financiamento do modelo atualmente baseado na Média e Alta Complexidade, que gera demanda por recursos adicionais e de forma organizada e um tanto quanto oligopolista pelos hospitais privados e filantrópicos contratados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Nessa evidente tensão entre discricionariedade e vinculação dos repasses federativos na política pública de saúde, o que reclama profunda reflexão é a própria fixação do caminho para o SUS. Sem nos orientarmos pelo seu planejamento setorial, sinceramente tememos o risco de, no limite, faltarem vacinas e insumos básicos em face da tendência de inchaço da folha de pessoal e de repasses ao terceiro setor apenas no âmbito da média e alta complexidade. Não podemos negligenciar a raiz dos nossos problemas, tratando apenas alguns dos seus sintomas de forma distorcida.
O controle da discricionariedade pressupõe, por definição, que haja finalidades suficientemente claras e estruturantes que lhe orientam intertemporalmente a razão de existir. Descentralizar a responsabilidade de fixação da justa distribuição dos recursos da saúde entre as diversas áreas que lhe concernem, sem o aprofundamento real da relação entre planejamento e execução, é literalmente jogar a imensa pressão do mercado da saúde e de eventuais interesses corporativos para o curto prazo dos mandatários políticos subnacionais. Mas isso significaria admitir qualquer caminho para chegar a lugar distinto do que foi traçado nos artigos 196 e 198 da nossa Constituição.
[1] Os Acórdãos nº 2888/2015 e 316/2017, ambos proferidos pelo Plenário do TCU, bem evidenciam a falta de atendimento pela União do art. 17, §1º da LC 141/2012, para fins de consolidação dos critérios de rateio pactuados federativamente na Comissão Intergestores Tripartite e homologada pelo Conselho Nacional de Saúde.
[2] Como se pode ler na Recomendação CNS nº 06, de 10 de março de 2017, disponível em www.conselho.saude.gov.br/recomendacoes/2017/Reco006.pdf e na Recomendação CNS nº 29, de 7 de julho de 2017, disponível em www.conselho.saude.gov.br/recomendacoes/2017/Reco029.pdf
[3] Sem prejuízo do debate ainda pendente de apreciação no Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 5595, consideramos que o maior exemplo de criticidade do subfinanciamento do SUS pode ser encontrado na rejeição do Relatório Anual de Gestão de 2016 do Ministério da Saúde pelo Conselho Nacional de Saúde, dentre outros motivos, por déficit de aplicação federal no setor e também por falta de compensação dos restos a pagar cancelados que haviam sido computados no piso federal em saúde em anos anteriores, como se pode ler em www.conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso551.pdf
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Francisco Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP, consultor da FGV e do Conselho Nacional de Saúde e professor do curso de Economia da USCS.
Publicado originalmente no site da conjur