Impotência e projeto de futuro: o Brasil para além do neopatrimonialismo e do neoliberalismo
Olhando a situação do Brasil um ano depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff o cenário é de devastação. Uma mistura de crise econômica que não para de se aprofundar, acoplada a concessão de benefícios infinitos ao rentismo financeiro, combinada a um mal disfarçado projeto de destruição de tudo que foi conquistado desde os anos 1980, e a sobrevivência de um sistema político totalmente apodrecido estão levando o país a um cenário tétrico. Frente a isso a população se encontra paralisada, incapaz de responder com sua mobilização.
Desde de 2013, multitudinariamente ainda que de maneira atabalhoada, passando pela eleição de 2014 – de grande intensidade – e pela campanha a favor e contra o impeachment, até as grandes manifestações e a greve geral contra as reformas neoliberais do governo Temer, a mobilização popular foi massiva. Não levaram a nada de positivo: falsas e maliciosas respostas do sistema político apenas vêm conduzindo a uma situação cada vez pior, garantindo que a soberania popular seja desconsiderada – pelo impeachment primeiro e pelo total desprezo em relação à visão e sentimentos da população, sem falar em seu bem estar. Ao mesmo tempo em que há nesse sentido uma desmoralização da população, cuja impotência frente ao sistema político se revelou absoluta, as forças políticas estão todas deslegitimadas e as de oposição ao governo oriundo do golpe parlamentar de 2016 se mostram incapazes (ou não têm interesse), seja no mundo da política institucional, seja no plano da sociedade, de uma movimentação consistente e mobilizadora (ou não têm força para fazê-lo).
Mais que um projeto de reformas neoliberais, o que vem se desenhando é um novo Brasil. O fim do ciclo democratizador veio junto com a autodestruição da esquerda, pelos erros na condução política e econômica e por seu envolvimento profundo com o neopatrimonialismo que assola o país
Mais que um projeto de reformas neoliberais, o que vem se desenhando é um novo Brasil. O fim do ciclo democratizador veio junto com a autodestruição da esquerda, pelos erros na condução política e econômica e por seu envolvimento profundo com o neopatrimonialismo que assola o país, além de no fundo uma concepção estratégica equivocada, exclusivista, e uma soberba difícil de acreditar. Enquanto o PT aparecia como possibilidade de poder, as forças da direita foram cautelosas em sua movimentação e comeram pela beirada as conquistas daquele ciclo, implementando um neoliberalismo matizado (o qual o PT não combateu, jogando tudo no mercado e no consumo, arroubos nacionalistas e neodesenvolvimentistas não obstante).
Empresários como Jorge Lemann agora festejam o fato de estarmos na véspera da emergência de um novo Brasil, totalmente dirigido pelo mercado, na verdade ultraneoliberal em todos os seus pilares e em suas ramificações. Obviamente a rearticulação de todo o funcionamento estatal é uma questão básica. Isso toca em particular a política social, com a redução de tudo a um mínimo, seja no SUS, seja na educação, em particular superior, ciência e tecnologia. Isso sem falar no Bolsa Família, que pode passar em médio prazo a se definir não pela clientela em si – sem falar em ser um direito, o qual nunca chegou a ser, de todo modo –, mas pelas possibilidades do orçamento do governo federal. Provavelmente essa ofensiva chegará a outras áreas, como a própria estrutura e volume da carga tributária. Mas irá mais longe, pois um projeto social neoliberal encontra-se pronto para ser deslanchando, aqui como em outras partes da América Latina.
A rearticulação de todo o funcionamento estatal é uma questão básica. Isso toca em particular a política social, com a redução de tudo a um mínimo, seja no SUS, seja na educação, em particular superior, ciência e tecnologia
Não quer dizer que será vitorioso. Mas bloqueá-lo dependerá de uma aliança da esquerda com forças de centro democráticas que ainda não se constituíram plenamente e talvez tenham muita dificuldade em consegui-lo. Desde os anos 1980 uma polarização política – que nunca correspondeu à realidade social – foi se impondo: PT pela esquerda, de um lado, e centro-direita capitaneada pelo PSDB, de outro. O centro converteu-se em uma monstruosidade fisiológica e na verdade profundamente conservadora que despontou na verdade já durante a Assembleia Constituinte de 1987-88, com o lema do é dando que se recebe, e teve no PMDB, mas não só nele, seu principal aglutinador. Isso foi cultivado pelas outras forças políticas, que acabaram partícipes do fisiologismo neopatrimonialista que é um traço fundamental do Estado brasileiro.
Hoje esse centrão se vincula totalmente ao projeto neoliberal em processo de implementação. Em alguns momentos teria sido possível jogar com um centro menos oportunista – enquanto esteve Itamar Franco na presidência, na primeira e na segunda candidatura de Marina Silva à presidência, na ascensão do PSB e na candidatura de Eduardo Campos. Em nome de uma mal disfarçada sede de poder – justificada em nome de sua suposta capacidade e vocação para mudar o Brasil –, o PT recusou todas essas possibilidades. Parece pronto a cometer o mesmo erro, com a diferença de que agora está isolado e desmoralizado, não importa o quanto neste momento Lula ainda exiba aparentemente um alto grau de popularidade. O PSOL cultiva o mesmo equívoco, como se fosse possível crescer e governar o Brasil nas próximas décadas contando apenas com forças de esquerda e um programa que sequer tem claramente definido – e que seria a base para alianças consistentes.
Uma aliança de centro-esquerda é a única maneira viável de se contrapor ao fechamento em curso do sistema político, com a consecução do projeto do impeachment, do que a ofensiva atual contra o procurador-geral da República e a operação Lava-Jato são apenas o elemento mais saliente. O neopatrimonialismo continuaria intacto – produzindo-se uma contrarrevolução contra o Judiciário e o MPF – e o poder de um empresariado conservador e radicalmente neoliberal cresceria ainda mais nesse novo sistema político liberal-oligárquico avançado que se desenha, falsificando de alguma maneira a vontade expressa no voto popular. Tentar resolver isso com uma esquerda que se autoisolará mais uma vez será risível, se não for, e certamente será, trágico. Retomar o processo de democratização que estancou e retrocede velozmente é a nossa tarefa fundamental hoje.
Dificilmente o Brasil engolirá por muito tempo o processo em curso, conduzido por criminosos profissionais que atuam no âmbito da política e alguns mesmo no STF. A questão da corrupção continuará na agenda e, a exemplo do que aconteceu nos anos 1920, com o fim da República Velha em 1930 varrendo sua oligarquia tradicional, mais adiante modificações mais ou menos explosivas e profundas podem vir a ocorrer. Oxalá que sim. Todavia, isso pode levar bastante tempo ou mesmo ser muito limitado, dada a possível consolidação dessa nova oligarquia. De fato, o problema é mais profundo.
O liberalismo como projeto econômico e social mais amplo manteve-se durante todo este período subordinado, ainda que fornecesse os pilares da própria conformação em grande medida do Estado e da sociedade civil
Desde os anos 1920 – há quase um século, portanto –, o Brasil conformou, expressando-se ele com muitas variações, um projeto nacional em que o Estado de uma maneira ou de outra estava no centro da articulação da vida nacional. O liberalismo como projeto econômico e social mais amplo manteve-se durante todo este período subordinado, ainda que fornecesse os pilares da própria conformação em grande medida do Estado e da sociedade civil. Mais que isso, uma forma de estruturar a sociedade, em que mal ou bem os intelectuais progressistas tinham papel fundamental, foi responsável pela evolução da produção cultural e por uma maneira de pensar o Brasil integradora e democratizadora, muito rica, em que se projetava o que alguns gostavam mesmo de definir como uma civilização brasileira, cheia de esperanças e alegre. O futebol e a música exprimiam isso de maneira extraordinária. Além do mais, o Brasil ainda era o país do futuro. A vitória da democracia, liberal mas com muita mobilização e criatividade popular, deram mais colorido e completaram aquele desenho de país.
O futuro chegou e mudanças muito profundas ocorreram, entretanto, na sociedade brasileira e no mundo em geral. Deram fim a essas duas grandes linhas que forneceram a espinhal dorsal do desenvolvimento brasileiro. A primeira mal ou bem se democratizou, a despeito da desigualdade e da violência que a assolam, assim como se fragmentou e fez vir à tona um mundo de uma crueza implacável, com uma desvalorização radical do papel dos intelectuais e uma radical mercantilização; a segunda lançou sobre nós o projeto do neoliberalismo como maneira de reconfigurar totalmente o mundo em que vivemos – chegando mesmo ao âmago da conformação da subjetividade.
Ou seremos capazes de reestruturar um projeto muito amplo, com incidência naquele campo cultural e subjetivo, ou nossas dificuldades serão ainda maiores. Teremos de ser capazes de superar as limitações de uma cultura popular vigorosa, mas crua e altamente mercantilizada tal qual impera hoje, sem recusar a positiva democratização que sua emergência implica, assim como a falta de imaginação e viço que hoje visivelmente caracteriza a produção oriunda das classes médias. É preciso configurar um novo projeto de civilização, libertária e solidária entre nós e com a natureza. Nisso os intelectuais têm papel decisivo. Do contrário será muito difícil combater a expansão do neoliberalismo – a quem a crueza e a falta de imaginação não são em absoluto estranhas – e ter força política para implementar mudanças que nos retirem da direção em que sua presente radicalização nos levará.
Como fazê-lo não está claro, mas está na ordem do dia. É o único caminho para sair da depressão em que nos encontramos com efetivamente condições de virar o jogo neoliberal-oligárquico que está aí, aos olhos de todos, sendo jogado.