Jorge Bermudez: Brasil refém da indústria farmacêutica?

Jorge Bermudez: Brasil refém da indústria farmacêutica?

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Foto: Wikimedia

Na data de ontem, 31/5/2017, vinte entidades da sociedade civil divulgaram nota acusando o Ministério da Saúde de ceder a pressões e adquirir um produto voltado a programa recém-lançado no SUS (o PrEP, profilaxia pré-exposição ao HIV) a preços superiores aos valores conhecidos no mercado mundial. A incorporação da profilaxia pré-exposição é louvável e vem sendo pleiteada há vários anos no Brasil, mas é necessário que seja acompanhada de medidas que assegurem sua sustentabilidade e racionalidade. Não é cabível admitir o pagamento de valores monopólicos por produtos para os quais a proteção patentária foi rejeitada pelo INPI [Instituto Nacional de Propriedade Intelectual], como é o caso da combinação tenofovir/emtricitabina (o medicamento Truvada, da empresa Gilead).

Inicialmente, cabe ressaltar que as vinte entidades que assinam a nota são da mais absoluta respeitabilidade e reconhecimento e vêm contribuindo ano após ano para a consolidação do nosso Sistema Único de Saúde, o acesso universal a medicamentos e a Saúde como direito de todos e dever do Estado. São entidades que honram nossa Constituição que, hoje, vem sendo violentada por políticas reducionistas.

 Não é cabível admitir o pagamento de valores monopólicos por produtos para os quais a proteção patentária foi rejeitada pelo INPI

Como admitir que, ao mesmo tempo em que se incorporam novas tecnologias, se atualizam protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, se aumenta o elenco de produtos estratégicos para o SUS, simultaneamente, congela-se o teto dos gastos públicos, eliminam-se programas como a Farmácia Popular do Brasil e deixam-se estoques de medicamentos produzidos pelos laboratórios oficiais a perder seus prazos de validade, substituídos pelos mesmos produtos adquiridos do setor privado, como recentemente denunciado na Câmara dos Deputados?

O episódio da compra monopólica do produto a ser distribuído para PrEP nos traz de volta à mesma empresa que no final de 2013 anunciou mundialmente o lançamento do primeiro AAD (antiviral de ação direta) para o tratamento da Hepatite C, com evidências da possibilidade real de cura dessa doença, o Sofosbuvir. Esse lançamento, entretanto, se deu a um preço que consideramos extorsivo, de US$ 84 mil, pelo curso de tratamento de doze semanas. Esse preço monopólico – o produto vinha acompanhado de proteção patentária – motivou queixas no mundo inteiro, pois não havia por trás dele, nenhum investimento em Pesquisa & Desenvolvimento. A empresa sublicenciou 11 companhias genéricas indianas para fornecer o mesmo produto (sofosbuvir) a um escopo de 91 países, a preços inferiores a US$ 1 mil, pelo mesmo curso de tratamento de doze semanas, ou seja, uma redução de 84 vezes do preço original. Neste elenco de 91 países, o Brasil se encontra excluído [ver aqui]

Inicialmente adquirido a partir de demandas judiciais a preços mais extorsivos ainda, o sofosbuvir foi registrado e licenciado no Brasil e incorporado nas diretrizes terapêuticas para o tratamento de hepatite C. Negociação de preços do Ministério da Saúde com a empresa Gilead faz com que, hoje, esse medicamento venha sendo adquirido no país a um preço próximo dos US$ 7 mil, por curso de tratamento de doze semanas.

Uma empresa farmacêutica, dois produtos sendo questionados e denúncias que precisam ser investigadas e esclarecidas! Nosso complexo econômico e industrial da saúde, modelo para outros países e que conjuga tecnologia, inovação e desenvolvimento, precisa ser fortalecido com políticas públicas solidárias e inclusivas. O acesso a medicamentos tem que ser compreendido no contexto do direito à saúde como direito humano fundamental.

 

* Pesquisador da ENSP/Fiocruz; membro do Painel de Alto Nível em acesso a medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas