‘Os três poderes estão na clandestinidade; um não reconhece no outro o que o outro finge que é’
A democracia representativa, seus instrumentos e instituições vivem, em âmbito mundial, um momento de destituição e desmoralização devido, em parte, à dificuldade que vêm encontrando para lidar com a evolução do capitalismo contemporâneo. A observação, do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, sustentou a análise que fez do atual cenário mundial e brasileiro, durante a conferência Democracia: qual futuro?, realizada pelo Centro de Estudos Estratégicos em 07/12/2016, no auditório térreo da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). “O momento é ameaçador e ao mesmo tempo imprevisível. E tem dado a oportunidade ao surgimento de correntes de pensamento e de reflexão que já se imaginava definitivamente superadas”, afirma.
Wanderley Guilherme fez um resgate histórico sobre as formas de organização social democráticas no mundo, atentando para a utilização do termo democracia. “Estamos mais ou menos acostumados com a ideia de que democracia é uma coisa antiga, natural e seria o estado natural de existência das sociedades. Nada mais longe da verdade”, diz o cientista político. “Chamamos de democracia diversas formas de organização política que passaram longe dos requisitos mínimos para se classificar uma sociedade como vivendo uma democracia representativa”. “O mundo só passou a ter sistemas de democracia representativa em grandes números depois da Segunda Guerra Mundial. A democracia plena não tem um século de vida”
Estamos mais ou menos acostumados com a ideia de que democracia é uma coisa antiga, natural e seria o estado natural de existência das sociedades. Nada mais longe da verdade
Segundo Wanderley Guilherme, existem duas exigências mínimas para se classificar uma sociedade como uma democracia representativa. “A primeira é a existência de eleições a prazos regulares com competição livre entre candidatos diferentes e com os resultados aceitos pelos perdedores. A outra diz respeito a todos os membros adultos da comunidade terem direito de participar na eleição daqueles que vão ser os administradores e líderes da sociedade”, elenca.
“Este tipo de sociedade é extremamente recente na história da espécie”, afirma Wanderley Guilherme. Dirigindo a análise para as formas mais arcaicas de organização social, o cientista político questiona a ideia de Atenas como berço da democracia. “Na verdade, Atenas estava muito longe de poder ser considerada em qualquer critério mais rigoroso como uma democracia”, afirma, referindo-se à restrita participação dos cidadãos na política ateniense. “Da escolha da liderança não participavam os escravos, não participavam as mulheres e não participavam os metecos (imigrantes)”.
“Evidentemente que depois que o Império Romano e toda a Idade Média não discutiu a democracia. O Renascimento foi o surgimento e a construção do Estado nacional e das monarquias absolutas. As monarquias absolutas dominaram a vida, a parte civilizada da espécie humana até o início do século XIX”, continua o cientista político, afirmando em seguida que, embora a literatura e os discursos destaquem o surgimento da democracia clássica inglesa, o que havia na Inglaterra era, na verdade, uma oligarquia estável devido às discriminações de renda, idade, gênero e raça. “Havia já as instituições representativas, porém a participação da população, quer como candidatos à representantes, quer como eleitores correspondia a 3% da população inglesa”, aponta. “Só votava um número bem restrito de inglês – homens, casados, com certa disposição de renda, educados e com uma certa idade. São esses impedimentos que fazem com que a representação da sociedade fosse oligárquica”.
O voto censitário, que era o voto por renda, só termina para os homens na Inglaterra depois da Primeira Guerra Mundial, em 1919, para aqueles que tinham 25 anos de idade participarem. Até meados do século XIX, para ser aceita voto era indireto. O voto direto foi conquistado com muita luta, assim como o fim do voto censitário, que no Brasil existiu até o fim do Império. As mulheres só adquiriram direito de voto na Inglaterra em 1923. Na Suíça foi concedido em 1971 e na França e na Itália, só após a Segunda Guerra Mundial. Apenas dois países com sufrágio universal no final do século XIX: Nova Zelândia e Austrália. Somente durante o século XX que se inicia a expansão lenta da universalização do sufrágio. “No entanto, de maneira maliciosa ou disfarçada, o voto censitário se encontra ainda em algumas Constituições contemporâneas. A Constituição argentina prevê uma cota de renda para ser Senador e Presidente da República. No Chile, analfabetos podem votar, mas não podem ser eleitos, isto é, há um requisito de educação”.
A universalização da democracia – excluindo-se parte da África e do mundo árabe – ocorre principalmente após 1989, com a queda do muro de Berlim. “Não foi só uma parede. A queda do Muro de Berlim é a metonímia do fim do primeiro experimento de organização de uma sociedade fundada no altruísmo, na simpatia e na cooperação, e não na maximização de interesses”, diz Wanderley Guilherme referindo-se ao socialismo. “Historicamente e civilizacionalmente, foi o primeiro experimento, em grande escala de organizar uma sociedade fora da tradição política e econômica da democracia clássica, que tinha e sempre teve por direitos fundamentais a vida, a liberdade e a propriedade”. A queda do Muro de Berlim significou, segundo o cientista político, a hegemonia mundial da versão capitalista da democracia representativa. “O mundo socialista foi uma tentativa de construir uma sociedade fundada não sobre a competição de interesses, mas sobre a cooperação de projetos. Fracassou”.
O mundo socialista foi uma tentativa de construir uma sociedade fundada não sobre a competição de interesses, mas sobre a cooperação de projetos. Fracassou
“Contudo, a menos de duas décadas do seu acme, do seu florescer, essa democracia representativa começa a entrar em crise”, afirma Wanderley Guilherme. A prática recorrente de eventuais suspensões de direitos políticos e civis garantidos pela Constituição foi um dos fatores que provocaram a crise do modelo de democracia representativa. “A partir da crise de 2001 por conta das Torres Gêmeas, iniciou-se no mundo inteiro a reformulação das relações entre poder e o cidadão”, afirma, se referindo ao ato patriótico aprovado pelo governo Bush após o atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. “Foi a mais extraordinária, eficaz e aceita subversão da Constituição americana. Prisão sem aviso a advogados por tempo indeterminado, espionagem, violação de correspondências... O cardápio colocava em xeque, sempre que necessário, para defesa da nação americana, a suspensão da Constituição americana”.
Outro fator apontado por Wanderley Guilherme é uma herança das Revoluções Industriais, que implicou na intensificação da divisão social do trabalho. “A criação de uma fragmentação dos interesses existentes na sociedade que exige técnicas, capacidades, habilidades, para torná-los compatíveis de conviver produtivamente. Este é um grande desafio das sociedades capitalistas contemporâneas”, considera. “Não tem sido fácil encontrar fórmulas que absorvam essa problemática contemporânea de maneira satisfatória. Uma das consequências tem sido o retorno a formas autoritárias de organização social”.
A criação de uma fragmentação dos interesses existentes na sociedade que exigem técnicas, capacidades, habilidades, para torná-los compatíveis de conviver produtivamente. Este é um grande desafio das sociedades capitalistas contemporâneas
Segundo Wanderley Guilherme, O Brasil não está vivendo – nem vive há uns 20 ou 30 anos – uma experiência peculiar. “O Brasil sempre esteve, e agora mais do que nunca na medida em que se tornou cada vez mais parecido com a concepção prevalecente, faz parte desta onda em que a democracia representativa não está sabendo administrar os problemas da evolução do capitalismo contemporâneo sob forma democrática”. Ele reafirma que não se trata de um fenômeno isolado. “Isso está ocorrendo em todos os países europeus. Está ocorrendo na América Latina. Está ocorrendo no Brasil”.
Especulando sobre as possíveis causas da crise das instituições políticas vivida pelo Brasil nos dias de hoje, Wanderley Guilherme retorna ao século XIX, às lutas pelo voto universal. “A esperança era de que o exercício dos direitos democráticos clássicos – o voto, organização e opinião - fossem suficientes para conquistar e preservar direitos que fossem expandidos para a população. Por isso é a democracia o ideal de organização social, porque era a única forma que permitia que isso ocorresse sem custos de violência excessivos ou expressivos”.
No entanto, estes instrumentos começaram a ser percebidos como insuficientes e até mesmo maliciosos para a preservação dos direitos já conquistados. Wanderley Guilherme aponta que as nossas instituições representativas vêm sendo desmoralizadas sistematicamente pelos órgãos de comunicação, de representação corporativa, bem como de vários dos constituintes, depois de 1988. “Nós temos disponível o voto, a Câmara dos Deputados, o Senado, regras de representação e decisão, e uma Constituição que diz o que pode e não pode ser feito, que aparentemente não é compatível com nenhuma agenda de demandas”, aponta. “No momento aparentemente a Constituição não serve a ninguém. Todos falam mal dela. Há uma unanimidade no eleitorado mundial em relação à absoluta insuficiência e incapacidade dos órgãos de representação. É nesse contexto que está o Brasil”.
No momento, aparentemente, a Constituição não serve a ninguém. Todos falam mal dela
Wanderley Guilherme afirma que durante o governo Lula, houve uma conjunção de circunstâncias favoráveis internas e externas. “As circunstâncias externas permitiram cerca de 6 ou 7 anos de uma política de soma e expansão. Havia um conhecimento que permitia que todos se beneficiarem”, diz. “O governo Lula decidido reduzir a taxa de conflito, mantendo a redistribuição – os pobres ganharam mais do que proporcionalmente – e a taxa de progresso no limite que não provocasse a oposição e dificuldade de outros agentes econômicos”.
O governo Dilma, entretanto, não contou com circunstâncias externas tão favoráveis. “O que aconteceu foi uma crise internacional, que se acirrou e chegou até aqui. Foi neste contexto, que o governo Dilma tentou, no seu primeiro mandato, continuar uma política de expansão dos ganhos das classes trabalhadoras. Aí foi demais para a oposição”, afirma o cientista político. “Se a presidente Dilma tinha pouco jogo político, se não conversava com as pessoas... Eu não sou o [Jürgen] Habermas para achar que conversando as coisas se revolvem. Ela poderia conversar o que quisesse. O problema era saber se os juros iriam ficar, quem iria receber financiamento do BNDES e quem não iria, porque não dava mais para todo mundo”. “Isto fez o Brasil ingressar na problemática internacional. Não há recurso para todo mundo. Não há como manter – dizem os conservadores – não há como manter nem mesmo o Estado de Bem-estar social que foi alcançado antes”.
Segundo Wanderley Guilherme, o governo Dilma também foi afetado por uma dupla oposição do eleitorado durante o início do segundo mandato. “De um lado, os perdedores disseram que o governo era ilegítimo e pediram a recontagem dos votos. De outro, os vencedores, que repudiaram e rejeitaram as iniciativas de governo da presidente eleita. Imediatamente, os dois campos se opuseram ao governo recém-eleito”.
O cientista político diz acreditar que houve um golpe no Brasil em 2016. “Houve um sequestro do poder constituinte do povo por parte do aparamento para dizer o que a Constituição é. Reinterpretaram a Constituição, no sentido de dizer que um capítulo era constitucional, quando não era”, afirma. “Foi um consenso entre uma maioria esmagadora da Câmara dos Deputados e do Senado, com a cumplicidade de todos os órgãos de elite e representação empresarial, do Judiciário e de órgãos da imprensa, legitimando esse ato de sequestro e autorizando ao parlamento reinterpretar a constituição e transformar eventuais crimes eleitores e crimes constitucionais”. “Quem diz o que a Constituição é, é o poder constituinte do povo através de seus representantes, e não através de interpretações que as instituições da Câmara, do Senado e do Judiciário vem fazendo”, diz Wanderley Guilherme.
Houve um sequestro do poder constituinte do povo para dizer o que a Constituição é. Reinterpretaram a Constituição, no sentido de dizer que um capítulo era constitucional, quando não era
Esse pacto entre esses poderes tornou-os ilegítimos, segundo o cientista político. “Todos sabiam o que estavam fazendo e por isso os poderes hoje estão na clandestinidade. Um não reconhece no outro aquilo que o outro finge que é. Todos fingem desempenhar os papeis para os quais foram eleitos, mas por este pecado original de sequestro do poder constituinte, tornaram-se todos ilegítimos”, afirma. “O drama é que o que fazem é irrevogável. As consequências existem. Talvez algumas sejam reversíveis, mas grande parte não”.
“Acredito que houve um golpe que torna esse universo sem rotinas políticas claras. Não só o Presidente, mas os ministros do Supremo, senadores, deputados, empresários, desdizem amanhã o que disseram hoje”, diz Wanderley Guilherme, que diz não ter capacidade de previsão exata sobre o que acontecerá a seguir. “Não vejo nenhuma das propostas circulando como capazes de retornar à rotina institucional. Nem através de eleição direta. Seja quem for, eleito através do congresso, não terá condições de governar”. “Na verdade, eu aceitei trazer a mensagem do Nostradamus: o fim do mundo vem aí”. (Por Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)