Clemente Ganz Lúcio: ‘As locomotivas que podem puxar a economia estão com o pé no freio’

Clemente Ganz Lúcio: ‘As locomotivas que podem puxar a economia estão com o pé no freio’

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Homem de paletó e camisa sem gravata, sentado à mesa de debates fala ao microfone e segura uma caneta em uma das mãos
Clemente Ganz Lúcio (Foto: Revista Fórum)

"O Brasil vive uma das mais severas crises econômicas de sua história", atesta o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, Clemente aponta os erros que levaram o país até esse cenário, como o de não terem sido aproveitados “os tempos de bonança” para programar uma “folga fiscal futura”, e os erros que estão sendo cometidos hoje para enfrentar o problema, ao se imobilizar a economia. “Há uma distorção entre o problema diagnosticado e a terapia usada. E quem está pagando por isso é a sociedade”, observa.

Clemente é um dos fundadores do Fórum 21, coletivo que reúne ativistas, organizações populares, entidades da sociedade civil e cidadãos voltados a construir uma plataforma comum a serviço dos avanços das conquistas sociais, e está certo de que só o debate público qualificado pode levar a que se encontre uma saída para os impasses que se apresentam. Nada, no entanto, parecido com as medidas que vêm sendo adotadas pelo atual governo. “É uma insanidade o congelamento de vinte anos que estão propondo”.  Neste momento de crise, considera Clemente, cabe ao Estado, não à iniciativa privada, fazer a economia girar. “O Estado brasileiro é o agente que tem que puxar a economia, e não restringir sua intervenção. Em um cenário em que o mercado externo não compra, as famílias desempregadas não compram, as empresas estão quebrando e não produzem e o governo não compra, quem é que compra? Ninguém. Se ninguém compra, não se produz; se não se produz há recessão”.

Leia a íntegra da entrevista abaixo.

Como está vendo o Brasil deste final de 2016?
O Brasil vive uma das mais severas recessões econômicas de sua história, uma das mais intensas do último século. Essa crise tem uma dinâmica muito rápida, começa em 2015 e é agravada fortemente por uma crise política. Estamos há seis bimestres em recessão, e, muito provavelmente, teremos mais dois trimestres de PIB negativo, portanto uma série de longa recessão. É um cenário extremamente perverso, com aumento intenso do desemprego, arrocho salarial, precarização e dificuldade estrutural de dar tração à economia, para que volte a crescer. Os vetores, as locomotivas que podem puxar a economia estão com o pé no freio. Isso cria uma série de problemas para que a economia possa girar, para que se tenha uma dinâmica e se consiga gerar emprego, estimular a atividade das empresas e, assim, gerar a receita tributária necessária para tocar o Estado brasileiro em todas as suas esferas. O que se vê é um travamento.

De que forma a crise política relaciona-se a esse cenário da economia? E até que ponto a crise brasileira é localizada ou inserida em um contexto mais amplo, de âmbito mundial?
Essa crise situa-se em um contexto mundial de extrema restrição. O Brasil já enfrentaria muita dificuldade para manter o nível de atividade econômica que mantinha até 2010, porque a crise econômica internacional é severa. Nossa capacidade de exportação está limitada porque o mundo está consumindo menos e, portanto, comprando menos e vendendo menos. Há mais vendedor do que comprador. Mas nós temos nossos problemas internos. O combate à corrupção no Brasil tem levado a uma restrição na atividade do setor da construção que é dramática para o país. Uma das principais locomotivas do crescimento econômico é o investimento em infraestrutura, e, portanto, calcado no setor de construção. No entanto, nós estamos levando à frente uma ação que está destruindo esse setor no Brasil.

O senhor se refere à operação Lava Jato?
À Lava Jato e a outras operações que afetam diretamente o setor da construção. Não temos tido capacidade institucional de separar o que é coibir a corrupção penalizando as pessoas que praticaram esses atos, do que é atingir uma empresa, um ativo do país que precisa ser preservado. É necessário corrigir todas as distorções que levaram à pratica de corrupção, mas as empresas precisam continuar existindo, não podem parar de produzir, porque representam um investimento, algo que levamos décadas para obter. Brinco sempre dizendo que é como um médico, que, ao constatar a fratura na perna do paciente, adota como terapia amputá-la e, ainda, para prevenir nova fratura, amputa a outra perna também. Há uma distorção entre o problema diagnosticado e a terapia usada. E quem está pagando por isso é a sociedade. Mas estamos acabando não só com o setor da construção. Por muitos anos mantivemos o câmbio valorizado, e isso afetou gravemente a capacidade competitiva do setor industrial. Estamos voltando a cometer o mesmo erro do passado, com uma valorização cambial que destrói a indústria. Que setor da economia vai sustentar nosso crescimento? Essa é a pergunta.

Não temos tido capacidade institucional de separar o que é coibir a corrupção penalizando as pessoas que praticaram esses atos, do que é atingir uma empresa, um ativo do país que precisa ser preservado

 

Em que nós erramos, como país, para chegarmos até esse cenário?
Durante o período positivo que o país viveu, em 2004, com dinamização do mercado interno, deixamos de colocar em movimento três locomotivas importantes da nossa economia. Primeiro, não engatamos naquela dinâmica uma política de desenvolvimento industrial coerente com esse crescimento. Se tínhamos emprego e salário crescendo, e, portanto, aumento de consumo, devia fazer parte da nossa estratégia que esse consumo fosse atendido por uma produção industrial interna. E não fizemos isso, deixamos nossa indústria desprotegida, para competir em condição de igualdade com os exportadores. Sendo mais claro, nossa indústria não tinha capacidade de concorrer, por exemplo, com o produto chinês, com o câmbio tal qual deixamos. Fizemos uma política que tornou mais vantajoso para o chinês vender para o Brasil, do que um industrial brasileiro produzir para nossa economia interna. Foi um erro estratégico. Desmobilizamos uma parte da economia, o setor industrial. Segundo: não demos a atenção devida, no processo de investimento, à questão da corrupção, às boas práticas de governança, e deu no que deu, como a operação Lava Jato mostra. Foram tomadas várias iniciativas legislativas pelo Governo Federal, aprovadas no Legislativo, mas não demos sequência, de modo que isso não levasse a restrição e paralisia de um setor dramaticamente estratégico como o da infraestrutura. A terceira locomotiva refere-se à reforma tributária. Não fizemos uma reforma tributária para dar ao Estado brasileiro no momento de bonança a folga fiscal futura para continuar sustentando aquele investimento. Não mexemos na estrutura tributária, na indexação da economia, na dívida pública e seu alto custo. Não fizemos mudanças estruturais importantes que alavancariam uma próxima etapa do nosso desenvolvimento.

Se tínhamos emprego e salário crescendo, e, portanto, aumento de consumo, devia fazer parte da nossa estratégia que esse consumo fosse atendido por uma produção industrial interna. E não fizemos isso

 

Erros estratégicos...
Sim. E houve, ainda, as desonerações tributárias que não foram compensatórias. Desoneramos impostos das empresas, mas elas não vieram investir. Diziam que com aquele câmbio não investiriam, que com aquela taxa de juros era melhor investir no mercado financeiro. Bem, fato é que o Estado abriu mão de uma parte importante da receita tributária para incentivar as empresas a investir, e elas não investiram. Deixamos de fazer o trabalho preventivo fundamental para que o paciente tivesse qualidade de vida para enfrentar o futuro, e ainda tiramos dele o medicamento que estava usando. O paciente tombou. Quando vem a crise econômica, o governo, no início do segundo mandato de Dilma, tenta fazer um ajuste que foi um desastre. Um tipo de ajuste que joga a economia no buraco de vez. Era o momento de fazer o contrário do que foi feito, de o Estado aportar recursos para movimentar a economia. Talvez, voltar a onerar o que havia desonerado, dizendo às empresas: “agora chega!, vão pagar impostos e vamos usar os recursos para outras coisas”. Mas o governo fez cortes e, com isso, animou a recessão econômica. Veio junto a crise política, que animou a crise econômica, e entramos em uma espiral, que veio dar no que deu. Os vetores que movimentam a economia tinham que ter sido trazidos à tona no momento de bonança. Fazer agora é um problemaço.

Por que isso não foi facilmente entendido – e não é ainda hoje?
Primeiro, porque há diagnósticos diferentes; dependendo de quem faz o diagnóstico, a compreensão do problema muda. Segundo, a terapia pensada para o tratamento do problema, que muitas vezes pode ter até o diagnóstico compartilhado, não é a mesma. Tem gente que acha que a indústria não é um elemento importante e que, em economia, vem perdendo importância. Isso é verdadeiro em economias que já atingiram determinado padrão de desenvolvimento. Não é o caso do brasileiro. Há, ainda, determinados setores da esfera pública que atuam diretamente na corrupção, que não estão preocupados com a dinâmica econômica, mas com o problema que estão enfrentando. E não temos um Executivo e um Legislativo capazes de se colocar à frente desse problema, exercendo sua tarefa central que é garantir que se coloque no Judiciário o poder de atuar em determinada esfera, apenas, deixando para o Estado brasileiro garantir a dinâmica econômica. E um problema dificílimo de resolver, mas se não se partir para essa solução compartilhada, o risco é que a terapia leve ao falecimento do paciente, com a justificativa de que, assim, acabou-se com o problema. O “eu fiz a minha parte”, apenas, não adianta. O país está precisando de que todos façam a sua parte. Para se sair da crise econômica, é necessário um conjunto de políticas que neste momento não estão presentes. “O Estado brasileiro é o agente que tem que puxar a economia, e não restringir sua intervenção. Em um cenário em que o mercado externo não compra, as famílias desempregadas não compram, as empresas estão quebrando e não produzem e o governo não compra, quem é que compra? Ninguém. Se ninguém compra, não se produz; se não se produz, há recessão”.

O país está precisando de que todos façam a sua parte. Para se sair da crise econômica, é necessário um conjunto de políticas que neste momento não estão presentes

Há uma rejeição quanto a um protagonismo do Estado, no sentido de fazer seu papel e intervir em cenários adversos...
Foi isso que os Estados Unidos fizeram na crise de 2008. O que o governo Obama fez? Veio e disse: vou colocar dinheiro na economia, vou me endividar e vou girar essa economia. Os Estados Unidos fazerem é normal; aqui no Brasil é um escândalo. O que o Estado fez? No momento da crise, atuou anticiclicamente. Se crise joga a economia no buraco, vem o Estado e joga a economia para cima. Quando a economia estiver crescendo, o Estado sai, deixa o setor privado com mais espaço, e, aí, é o momento de cortes, redução de gastos, para cobrir o que se gastou. Agora, no Brasil, é o Estado que tem que ocupar o espaço. Mas acha-se, ao contrário, que o setor privado. Só que o setor privado não vem, ou vem em uma intensidade muito menor do que a que nós precisamos para que a economia volta a crescer. Sem crescimento econômico não tem emprego, não tem salário, não tem imposto.

Constatada essa situação, o que se vislumbra como saídas?
Bem, estamos falando de uma das maiores economias do planeta, que tem um volume de ativos naturais inigualáveis. Poucos países têm o que temos de ativos, recursos minerais, água, mar, sol. E temos uma base industrial muito importante. Temos que olhar para isso e dizer: isso nos gera condição econômica de produzir para o Brasil e para o mundo. E vamos comprar do mundo o que nós não produzimos. Para isso, precisamos voltar a investir. Em quê? Em infraestrutura econômica, portos, estradas, aeroportos, energia; e em infraestrutura social, saúde, saneamento, educação, transporte público, habitação. Esse investimento utiliza fortemente, por três, quatro, cinco décadas, o setor de construção, que mobiliza uma base industrial para conduzir tudo isso. E vamos definir que faremos isso com predominância de capital nacional, buscando poupança internamente para fazer esse investimento. Os gastos sociais, vamos segurar – não vamos diminuir, mas não vamos aumentar por dois ou três anos. Mas vamos pôr a economia para rodar. A economia rodando, voltamos a investir mais em saúde, educação. Isso é um acordo a ser feito com a sociedade. É uma insanidade o congelamento de vinte anos que estão propondo. Mas é razoável dizer para a sociedade, que os servidores públicos não vão ter reajuste salarial porque vamos tentar preservar empregos; a iniciativa privada perdeu o emprego. Enfim, temos que dizer para a sociedade como vamos sair dessa crise, fazer um acordo com a sociedade para ela não agir contra. Mas para isso não podemos ter uma economia indexada do jeito que está, não podemos ter um gasto com a dívida pública como agora.

Estamos falando de uma das maiores economias do planeta, que tem um volume de ativos naturais inigualáveis. Poucos países têm o que temos de ativos, recursos minerais, água, mar, sol. E temos uma base industrial muito importante. Temos que olhar para isso e dizer: isso nos gera condição econômica de produzir para o Brasil e para o mundo.

A grande saída é política. A saída é a construção de um acordo. Mas o que estamos fazendo agora é eleger que a sociedade mais pobre pague a conta que é o ajuste de vinte anos, com queda na qualidade da saúde, da educação. São eles que vão pagar. E outra é que vamos vender o Brasil. Vamos vender nossos ativos. Os chineses virão comprar nossas empresas construtoras e vão construir aqui. A empresa chinesa é menos corrupta que a brasileira? A empresa brasileira, com tudo o que fez, deve ser dez vezes menos corrupta do que a chinesa, mas vamos deixar a empresa chinesa vir aqui fazer nossas obras. Vamos vender o pré-sal aos americanos, a terra, a água que está debaixo dela. Em curto prazo, equilibra? Equilibra. Mas vamos voltar a ser exportadores de pau-brasil. Se é esse o nosso projeto de desenvolvimento, estamos fadados ao fracasso como país. Vamos ser um grande negócio para o mundo, que vai comprar tudo a preço de banana. Não há saídas que não tenham ônus para os trabalhadores, empresários, servidores públicos. Todo mundo vai pagar uma parte dessa conta, mas isso tem que ser feito de forma equilibrada. E tem que demonstrar a sociedade que o preço que ela está pagando vai reverter para ela. O risco é que não consigamos um acordo para fazer escolhas que são extremamente difíceis.

A saída é a construção de um acordo. Mas o que estamos fazendo agora é eleger que a sociedade mais pobre pague a conta, com o ajuste de vinte anos e queda na qualidade da saúde, da educação. E outra é que vamos vender o Brasil

 

Como trilhar esse caminho que o senhor propõe? Como estabelecer um debate na sociedade?
A sociedade tem que fazer um esforço para dar qualidade ao debate público. Não há outro caminho na democracia, no nosso campo, dos movimentos sociais, trabalhadores, sociedade civil, enfim, os que não estão à frente do comando produtivo (por sinal, até esperava que os empresários estivessem conosco nesse debate) senão um debate sobre o sentido do nosso desenvolvimento e as escolhas que faremos para materializar isso. Há uma distância grande entre organizações da sociedade, governo e Congresso Nacional para esse debate. Falta qualidade no debate público acerca dessas questões, complicadas, mas muitas delas superficialmente debatidas. É papel das lideranças promover um debate aberto. E estamos longe de fazer isso, não só no Brasil, mas no mundo todo. O que os neoliberais hoje hegemônicos no mundo propuseram-se a entregar à sociedade com sua estratégia não entregaram, pelo contrário, estão entregando mais desigualdade, queda no crescimento econômico. E as sociedades estão demonstrando pelo voto que estão profundamente satisfeitas com essa forma de atuar.

O senhor se refere à vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos?
Sim, mas também à vitória do Brexit, na Inglaterra, à votação que houve na Colômbia em relação às Farc. São coisas diferentes, mas o que as sociedades estão dizendo é que estão insatisfeitas, inclusive votando por aquilo que é contra elas. As políticas escolhidas, na verdade, penalizam essas sociedades, mas elas querem votar contra o a política dominante.

Como analisaria, nesse sentido o impeachment da presidente Dilma?
Diria que está em uma outra ordem, de uma grave crise política entre o Executivo e o Legislativo no caso brasileiro. O impeachment mostrou que a forma como levamos o presidencialismo é muito frágil. Mas não se deu porque queríamos, com isso, mudar o regime econômico, o processo de desenvolvimento. A crise que gera o impeachment é de cunho político. Os efeitos da operação Lava Jato, essa confusão toda, mostraram que tínhamos problemas. É diferente da eleição do Trump nos Estados Unidos. São mudanças radicais, por motivos distintos.

O que os neoliberais hoje hegemônicos no mundo propuseram-se a entregar à sociedade com sua estratégia não entregaram, pelo contrário, estão entregando mais desigualdade, queda no crescimento econômico. E as sociedades estão demonstrando pelo voto que estão profundamente satisfeitas com essa forma de atuar

 

Quais seriam os próximos passos e estratégias para uma mobilização da sociedade em prol de iniciativas que a favoreçam?
O enfrentamento ao impeachment agora está em cima dessas novas questões econômicas e políticas, com a dificuldade de sustentar esse debate público sem ter o mesmo espaço que a grande mídia dá para a outra agenda. Isso não é simples de ser feito. O próximo grande momento de fazer esse debate girar refere-se ao processo eleitoral de 2018. Temos que garantir o processo democrático à frente, e espero que até lá consigamos qualificar o debate concretamente. Neste exato momento, poucas pessoas se dão conta da importância de se falar da PEC 241 [agora, PEC 55, no Senado]. A mudança no pré-sal não é uma derrota qualquer, é muito grave. Devemos fazer girar imediatamente o debate sobre a reforma da Previdência, algo de que as pessoas têm mais clareza e, assim, podem se mobilizar e se posicionar. Cada frente dessa será uma frente de luta. É muito provável que uma agenda que mobilize uma estratégia de desenvolvimento nacional tenha derrotas importantes. Se há consenso de que o brasil tem que construir um equilíbrio fiscal, não há acordo algum quanto à forma. Como construir esse equilíbrio em meio a uma recessão deste tamanho? Há divergência quanto a como fazer. Sairemos da recessão, mas o custo dessa saída pode ser muito alto para a sociedade. Em um primeiro momento, é resistir e qualificar o debate para que alternativas possam aparecer.  

* Do CEE-Fiocruz