Julio Calzada: ‘As políticas de cannabis devem refletir um modelo de desenvolvimento’
Contra o avanço da criminalidade e o tráfico de drogas como pano de fundo, uma Estratégia pela vida e pela convivência. Foi assim, com foco nas pessoas, não nas substâncias a serem controladas, que o Uruguai tornou-se o primeiro país a construir uma política de drogas, dando conta não só da descriminalização do uso (quem usa adquire onde e como?), mas de toda a cadeia, do cultivo à aquisição. O relato dessa experiência foi apresentado pelo ex-secretário geral da Junta Nacional de Drogas, do Uruguai, durante o governo Jose Mujica, Julio Calzada, na conferência de abertura do seminário Maconha – Usos, políticas e interface com a sociedade e direitos, realizado pela Fiocruz e pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, de 1 a 3 de julho de 2015. Não é um modelo a ser copiado, como afirma o próprio Calzada. Mas deixa claro que outras políticas de drogas, baseadas em direitos, são possíveis.
Abaixo o blog do CEE destaca alguns trechos da conferência. Acesse a íntegra [com livre tradução nossa] aqui.
“Que enfoque da saúde? Aquele que defende a saúde como a ausência de doença ou o que defende que a saúde é um contínuo, um sistema dinâmico, que varia em função das condições sociais que operam sobre ela? Nem as pessoas, nem os grupos sociais são totalmente sãos ou totalmente doentes”.
“O que vou comentar hoje não tem pretensão de verdade ou muito menos verdade revelada. Vou falar de meu país, sem a intenção de dar conselhos, de ditar regras. Vou apresentar-lhes o que temos feito e como creio que estamos caminhando”.
“O slogan uma sociedade livre de drogas é difícil de catalogar para além de sua perspectiva moral, com o agravante de que implica um olhar a partir de um passado que nunca existiu, uma vez que nunca houve sociedades livres de drogas, e um futuro que nunca chegará porque nunca haverá sociedades livres de drogas”.
“As políticas sobre cannabis têm que ser parte das políticas de drogas, que necessariamente são parte das políticas sociais, e estas, das políticas públicas. Todas, por sua vez, referem-se a políticas de desenvolvimento que, está claro, devem refletir uma proposta, um modelo de desenvolvimento”.
“As políticas sobre drogas têm que estar estreitamente relacionadas às políticas de saúde pública, que são um direito humano, e, portanto, não mercantilizáveis, e, portanto, universais. Têm que estar entrelaçadas com as políticas de inserção e coesão social, e, portanto, articuladas, com as políticas educativas, de emprego e de acesso à cultura”.
“Desenhar e executar políticas sobre drogas separadamente do resto das políticas sociais implica centrar a reflexão nas substâncias e deixar de lado que seu uso se dá em um contexto no qual as condicionantes sociais têm papel relevante”.
“O país crescia a taxas superiores a 4% ao ano, a pobreza passava de 40%, em março de 2005, a 11,5%, em março de 2014, o desemprego caía a valores por nós desconhecidos nos últimos 60 anos, situando-se em torno de 6% [...], inverteram-se mais de seis décadas de fluxos migratórios negativos [...] Mas toda boa história tem seu porém: entre 2009 e 2012, dispara a taxa de criminalidade, que passa de 5,3% a 7,9%, em crimes violentos, para cada 100 mil habitantes [...]Aprofundavam-se as ações dos grupos criminosos, em busca de controle de territórios, para monopolizar o comércio de drogas”.
“E nos encaminamos por uma resposta que incorporaria diferentes olhares, definindo-se uma estratégia que enfatizasse os bens a preservar e não os aspectos a controlar. Assim nasceu a Estratégia pela vida e a convivência, um amplo corpo conceitual que analisa diferentes formas de violência a afetar a sociedade, a fragmentação social, o desprezo pela própria vida e a dos outros, entre outros aspectos. Dessa estratégia, surgiram quinze medidas que o governo comprometeu-se a levar adiante nos três anos que restavam”.
“Entre as medidas [estava] o desenvolvimento de ações para fortalecer a coesão social e o tecido urbano das cidades, particularmente na área metropolitana de Montevidéu, com incorporação de tecnologia e logística para o monitoramento dos organismos policiais e para o controle das atividades criminosas, aumento das penas aos funcionarios públicos venais, em particular aos policiais, e medidas sanitárias para abordar os problemas derivados do uso da pasta base de cocaína”.
“[Entre as quize medidas estava] a regulação do mercado da maconha, que implicava dar conta de toda uma cadeia produtiva, da plantação, ao cultivo, produção, distribuição, dispensação e aquisição”.
“[O governo enviou ao Parlamento] um projeto de lei com ampla exposição de motivos e um artigo único [...]: o Estado, no marco de uma política sanitária, da perspectiva da redução de riscos e danos, assumia o controle da importação, exportação, plantação, produção, distribuição e dispensação da cannabis e seus derivados”.
“ [A lei Lei 19.172] estabeleceu que se poderia obter a maconha não médica de maneira legal por três vias: o autocultivo de até seis plantas, em casa; participação em clubes canábicos, de quinze a 45 membros, com cultivo de 99 plantas; e aquisição no sistema de farmácias, de até 40 gramas por mês”.
“Hoje, são mais de 2,5 mil pessoas registradas como autocultivadores ou membros de clubes. São milhares de dólares que já não vão para as mãos do narcotráfico”.
“Nós estudamos todas essas propostas [da Holanda, Espanha, Portugal], levamos em conta aspectos de todas elas, mas não copiamos inteiramente nenhuma. Não cremos em modelos”.
“Estamos nos mobilizando regional e globalmente para que a Ungass [sigla de United Nations General Assembly Special Session ou Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas] sobre drogas, em 2016, seja um fórum de debates real, honesto, sem prejuízos ou temas proibidos. O século 21 iluminará outras políticas de drogas, que são não só necessárias como também possíveis”.