'Rombo da Previdência' e a Constituição não cumprida

'Rombo da Previdência' e a Constituição não cumprida

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*Do boletim informativo do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) e do Centro de Documentação Virtual (CDV)

Em 2016, mais uma reforma da Previdência Social tem sido discutida no país. Pouco tempo após assumir como presidente interino, Michel Temer (PDMB) criou um grupo de trabalho para discutir alterações nas regras previdenciárias. O rombo na Previdência, com previsão de R$ 146,3 bilhões em 2016 e aumento para R$ 183 bilhões em 2017, é alardeado para justificar outra reforma no país e a adoção de regras mais duras, como aumento da idade mínima para aposentadoria e instituição de um regime único para trabalhadores/as do setor público e privado. Mesmo antes da formulação do projeto que será enviado ao Congresso, a reforma tem gerado reação de movimentos sindicais, entidades e pesquisadores/as. Além de contra-argumentar medidas e premissas específicas do governo, as análises vão de encontro ao cerne da justificativa central: não há rombo.

Rombo da Previdência x contabilização inconstitucional

O orçamento da Seguridade Social – sistema de proteção social do qual fazem parte Previdência, Saúde e Assistência Social – está descrito no artigo 195 da Constituição Federal. Ele é tripartite: trabalhadores/as, empresários e governo devem financiar a Seguridade e, consequentemente, a Previdência. “Um conjunto de fontes próprias, exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência. Copiamos o modelo tripartite clássico”, explica Eduardo Fagnani, Doutor em Ciência Econômica e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ainda que falar de Previdência Social signifique falar também de Seguridade, na prática, na organização e no financiamento, ambas estão separadas. “As premissas constitucionais não foram cumpridas. Nem a da montagem do sistema de seguridade e muito menos a do financiamento compartilhado das áreas que comporiam o sistema”, afirma Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna, professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para quem o Sistema de Seguridade Social começou a ser desmontado com a aprovação das leis orgânicas – da Saúde (1990), Previdência Social (1991) e Assistência Social (1993) – em vez de uma única Lei Orgânica da Seguridade.

Ainda segundo Werneck, emendas posteriores funcionaram como uma armadilha para a Previdência. “Os benefícios ditos previdenciários (aposentadorias urbanas e rurais, pensões, benefícios acidentários, e outros) só podem ser pagos com receitas advindas de contribuições de empregados e empregadores. Posto que, pela nova legislação, somente tais receitas são arrecadadas pelo INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] para compor o fundo da Previdência; as demais são arrecadadas pela Receita Federal. Essa é a falácia do rombo da Previdência. Argumenta-se que o Tesouro é ‘forçado’ a cobrir o déficit previdenciário com seus próprios recursos quando, na verdade, ele o faz com recursos da Seguridade, que são, pela Lei Maior, recursos da Previdência, uma vez que ela é parte da Seguridade. É só verificar os quantitativos arrecadados e repassados”, explica.

A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) tem realizado estudos apresentando o orçamento da Seguridade Social, segundo as determinações da Constituição Federal, que mostram que a Seguridade, logo a Previdência, é superavitária. Em 2013, houve superávit de R$ 76,2 bilhões. Em 2014, dados mais recentes, o superávit foi de R$ 53,9 bilhões – receitas e despesas foram, respectivamente, R$ 686,1 bilhões e R$ 632,2 bilhões. (Confira os relatórios de 2014  e 2013). 

Disputa social
    
Coordenador da Plataforma Política Social, Fagnani acredita que as conquistas sociais garantidas pelo movimento popular na Constituição de 88 jamais foram aceitas por alguns segmentos da sociedade, que apontam os gastos sociais assegurados constitucionalmente como o principal fator de desestabilização do equilíbrio fiscal. Para estes setores, a solução para a estabilidade da dívida pública passa, necessariamente, pela revisão do pacto social da democratização. Assim, difunde-se a Previdência Social como causa de problemas nas contas públicas e a tentativa de recuperação de recursos é feita com o descumprimento de dispositivos constitucionais e a construção de mitos sobre o rombo. “Esta deterioração das contas públicas é funcional para a implantação do projeto ultraliberal, pois, ‘não existem alternativas’ senão a ‘responsabilidade fiscal’ que implica em cortes severos nas políticas sociais”, afirma.

Maria Lucia Werneck acredita que a reforma da Previdência em formatação pelo governo interino “não tem o menor compromisso com o enfrentamento dos desafios que virão, no médio e no longo prazo, para a Previdência Social e para o Sistema de Seguridade Social. Está também longe de resolver os problemas fiscais do Estado brasileiro. Seu objetivo é ‘mostrar serviço’ para o mercado e para as agências internacionais de crédito e de monitoramento de riscos”. Para a pesquisadora, cortes em benefícios com valores próximos ao do salário mínimo são “figuração simbólica, que desacredita a Previdência Social junto à população e abre espaço para a previdência privada”.  

Incorporação da Previdência à Fazenda: jabuticaba ou abacaxi?

Em maio deste ano o governo interino de Michel Temer decidiu incorporar o Ministério da Previdência à pasta da Fazenda, com a criação da Secretaria de Previdência Social, submetida ao Ministério da Fazenda e sob o comando do economista Marcelo Abi-Ramia Caetano. A partir da Medida Provisória (MP) 726, de 12/05/16, o Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) passou a ser somente Ministério do Trabalho. A decisão provocou uma onda de críticas e protestos.

Mais de 40 emendas parlamentares foram apresentadas à Câmara e ao Senado, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social foi relançada e entidades como a Associação Nacional dos Servidores da Previdência e da Seguridade Social (Anasps), Confederação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas (Cobap), Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) e Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP) se manifestaram contra a extinção do Ministério.

A nova configuração causou estranheza e também foi alvo de críticas por parte de pesquisadores que estudam Previdência e Seguridade Social. Para o Doutor em Ciência Econômica, Eduardo Fagnani, “trata-se de uma nova jabuticaba”. “Não existe em nenhum lugar do planeta. Talvez, foram buscar inspiração com extraterrestes. Como dissemos na Cartilha do Sindicato dos Bancários, que recomendo ampla divulgação, ao fundir o Ministério da Fazenda com o Ministério da Previdência Social, o governo federal deixou claro que não precisa mais de intermediários. Não há mais sequer a necessidade de um ministro ou Ministério da Previdência Social. A própria Fazenda vai tentar completar o serviço que as elites endinheiradas vêm tentando desde a promulgação da Constituição de 1988. O objetivo é recapturar cerca de 8% do PIB que foi conquistado pela maioria da população”, avaliou.

Para Maria Lucia Werneck, a Medida Provisória (MP) 726/2016 “não apenas derrogou o estatuto ministerial da Previdência. Promoveu, de fato, seu esquartejamento”. Entre as mudanças estão a transferência da estrutura administrativa da Previdência do MTPS para a Fazenda; a transferência da Dataprev e do Conselho Nacional de Previdência Social, que passou a se chamar Conselho Nacional de Previdência (o “Social” foi eliminado); a transferência do INSS e do Conselho de Recursos da Previdência Social, que passou a se chamar Conselho de Recursos do Seguro Social, para o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), transformado em Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.

“Essas alterações não são triviais. Quebram a rotina institucional do órgão, segmentam o espírito de corpo dos servidores de carreira e, sobretudo, obscurecem o caráter social da Previdência (agora ela está oficialmente ligada à ‘área econômica’), facilitando o caminho para reformas mais ao gosto do mercado – aquelas que precisarão de emendas constitucionais –, como a desvinculação do piso dos benefícios ao salário mínimo. No entanto, essas medidas passam quase desapercebidas pela maioria das pessoas. A mídia as trata como parte da redução do número de ministérios, vendida aos leigos como urgente para o ajuste fiscal”, avalia Maria Lucia Werneck.

Ela relembra que o Ministério da Previdência Social foi criado em 1974, como Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e extinto em 1990, quando o presidente Fernando Collor realocou a Previdência no Ministério do Trabalho. Em 1995 o presidente Fernando Henrique Cardoso recriou o MPAS e, em 2003, Lula completou a setorialização da seguridade social, subdividindo-o em Ministério da Previdência Social (MPS) e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), no qual foi alojada a Assistência Social. Em novembro de 2015, a então presidenta Dilma Rousseff fundiu o MPS com o Ministério do Trabalho, que passou a chamar-se Ministério do Trabalho e Previdência Social.

A professora alerta que “mudanças administrativas (ou que se apresentam enquanto tal), como a ocorrida recentemente no Brasil, não são facilmente perceptíveis e, menos ainda, comparáveis. As estruturas de administração e governança variam bastante de país para país. Assim, é difícil afirmar que a subordinação da Previdência Social à Fazenda represente uma jabuticaba, embora não seja improvável que seu esquartejamento configure, ao menos, um abacaxi tropical”. E complementa: “A discussão é perversa e intencionalmente conduzida para supostas iniquidades do sistema (aposentadorias precoces, benefícios milionários, bondades indevidas) e para a antecipação de catástrofes incertas, do tipo insolvência do Estado (que só valeria, claro, para o pagamento das aposentadorias e pensões públicas)”.

Experiências internacionais

Maria Lucia Werneck conta que, em 2007, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), nos Estados Unidos, anunciou, com números e argumentos, que os sistemas previdenciários alemão, espanhol e italiano faliriam em dez anos, tornando-se incapazes de honrar o pagamento de aposentadorias e pensões. “Os dez anos se passaram e aposentados e pensionistas continuam a receber seus proventos. Reformas pontuais têm sido introduzidas, com efeito, em todos os países. Em geral, com muita negociação e vários atritos (protestos e greves na França, por exemplo). Em geral, também, voltadas para a elevação da idade mínima para solicitação de aposentadorias, mudanças nos cálculos dos valores dos benefícios e introdução de critérios mais rígidos de elegibilidade”, explica.

Na Inglaterra, exemplifica, reformas mercadorizantes foram progressivamente inseridas no sistema de bem-estar social a partir do governo de Margaret Thatcher. E, desde 2012, está em curso uma reforma do Civil Service – a administração pública – com supressão de órgãos e centralização de ações. “De certo, a Fazenda e o Tesouro adquiriram maiores poderes decisórios. Mas a eliminação na estrutura institucional de um ministério especificamente destinado a administrar benefícios previdenciários não ocorreu. Como não parece ter ocorrido, pelas informações disponíveis, em qualquer país do que se costuma identificar como primeiro mundo”, afirma.

Maria Lucia alerta que é importante investigar mais a fundo as trajetórias recentes nas estruturas administrativas dos sistemas de seguridade social, já que alterações aparentemente superficiais, e/ou sob pretexto da eficiência na gestão, podem ter introduzido modificações de peso nas relações de poder subjacentes à tensa convivência entre economia de mercado e justiça social. “Mesmo que a originalidade do esquartejamento da previdência social brasileira possa ser contestada em comparações internacionais, a reforma ministerial do governo interino contém, em si, graves consequências. Trata-se de uma ameaça real – e não de mera figuração – aos direitos sociais duramente conquistados no país. Mais um golpe (mortal?) na concepção de Seguridade Social estabelecida pela Constituição de 88”, critica.