Crise de paradigmas no século 21
?Conferência de abertura do Seminário Maconha – Usos, políticas e interface com a saúde e direitos, pelo sociólogo Julio Calzada, ex-secretário geral da Junta Nacional de Drogas, durante o governo Jose Mujica, no Uruguai.
Comentários preliminares
Agradecer o convite da Fiocruz e da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, ao Fórum Permanente de Direitos Humanos e ao Fórum Permanente de Direito à Saúde e saudar o interesse e a disposição de pesquisar e debater abertamente os problemas relacionados aos usos de drogas e possíveis políticas para dar conta deles.
[Quero] explicitar de onde olho, penso e falo sobre o tema. No debate sobre drogas cruzam-se posições morais, filosóficas, acadêmicas, políticas que nem sempre se explicitam. Nenhum lugar é neutro e explicitar isso é fundamental para que debatamos com franqueza, transparência e honestidade intelectual.
Não basta dizer que falaremos a partir de um enfoque da saúde. Que enfoque da saúde? Aquele que defende a saúde como a ausência de doença ou o que defende que a saúde é um contínuo, um sistema dinâmico, que varia em função das condições sociais que operam sobre ela. Nem as pessoas, nem os grupos sociais etsão totalmente sãos ou totalmente doentes.
Vou falar da política, a partir de uma visão plantônica-aristotélica, dentro da qual se desenvolvem a ética e a moral; a política como um acordo de convivência no qual se funda a República e em cujo marco se organizam a ética e a moral, não uma política feita a partir de uma moral determinada. Nessa visão, entendo a moral como um campo da esfera privada que não deve colonizar o campo do público e entendo a ética como um campo de ação voluntária e responsável no âmbito público.
A partir dessa visão, entendo a ética pessoal como a responsabilidade da pessoa sobre seus atos, e a ética do público a responsabilidade do Estado de garantir o desenvolvimento das liberdades e o gozo pleno dos mais amplos direitos pessoais e coletivos.
O que vou comentar hoje não tem pretensão de verdade ou muito menos verdade revelada. Vou falar de meu país, sem a intenção de dar conselhos, de ditar regras. Vou apresentar-lhes o que temos feito e como creio que estamos caminhando.
Falar de drogas e de sua interface com saúde e direitos é antes de mais nada uma ação política, POLÍTICA com maiúsculas, que há se enaltecer, que reivindicar.
Entendo que a cada dia faz-se mais necessário realizar a POLÍTICA. O desprezo da política é o caldo de cultura do autoritarismo de diversos cunhos, e o autoritarismo em materia de políticas de drogas tem sido e sempre terá os piores prognósticos.
Saúde, direitos, cultura e sociedade
Para falar de saúde e direitos, temos que falar de sociedade e de cultura. Em que sociedade, de que cultura somos parte neste momento inaugural do século 21, em que estamos imersos? Podemos falar de sociedade e levar em conta a cultura do efêmero, a cultura do espetáculo, no hedonismo desenfreado, a mercantilização generalizada de todos os aspectos da vida cotidiana, entre os quais incluo a mercantilização dos afetos?
Vivemos em uma sociedade que propõe a busca e a obtenção de prazer como valor supremo. Podemos falar de saúde, de saúde mental, de drogas, sem ter isso em conta? Há momentos em que, ao fazermos reflexões sobre esses temas, parece que estamos falando de uma sociedade que nunca foi, de uma sociedade que se deseja que seja, mas em nenhum momento da sociedade que hoje é.
O slogan uma sociedade livre de drogas é difícil de catalogar para além de sua perspectiva moral, com o agravante de que implica um olhar a partir de um passado que nunca existiu, uma vez que nunca houve sociedades livres de drogas, e um futuro que nunca chegará porque nunca haverá sociedades livres de drogas.
As drogas estiveram, estão e estarão aí, e o homem as tem usado, com fins religiosos, medicinais e recreativos, ao largo da história. E as seguirá usando.
Quando explicitamos isso, quando expomos nosso posicionamento sem ambiguidades, acusam-nos de imperfeição moral. A isso respondemos com a mesma perspectiva: dar conta do tema das drogas como se vem fazendo nas últimas cinco décadas, obtendo sistematicamente resultados inversos aos buscados é uma imperfeição intelectual intorelável, inconcebível e incompatível com o desenvolvimento do conhecimento na sociedade atual.
Tenho a convicção de que outras políticas de drogas são necessárias, mas, sobretudo, que outras políticas de drogas são possíveis.
A saúde mental e o uso de drogas
A díade saúde mental/uso de drogas, que desempenha papel relevante na concepção do problema, precisa ser desconstruída e situada em outros termos, de maneira que se possa transcender o relato dos casos e ingressar na análise e na concepção de uma política em termos de saúde pública, baseada em informação confiável.
Como mencionei, tomo a saúde não como ausência de doença, mas a partir dos determinantes sociais da saúde. Os usos de drogas transcende o campo da saúde e, largamente, o campo da saúde mental. Os usos de drogas têm a ver com a cultura, com a sociedade, com a economia, com a política e a geopolítica, com a convivência.
Pensar o tema das drogas apenas a partir da saúde pública ou a partir da segurança ou a partir de quaisquer dessas ciências [separadamente] só nos põe diante de um reduccionismo esterilizante.
A análise que fazemos das drogas como um problema terá que levar em conta todos esses componentes, ou estará reduzida a uma concepção fragmentada. Será meramente uma visão ideológica, filosófica ou religiosa. Os enunciados que derivem dessa visão nada nos proporão de diferente daquilo que nos esteve proposto nas últimas cinco décadas.
Políticas sobre cannabis, políticas de drogas, políticas públicas e o marco de um modelo de desenvolvimento
As políticas sobre cannabis têm que ser parte das políticas de drogas, que necessariamente são parte das políticas sociais, e estas, das políticas públicas. Todas, por sua vez, referem-se a políticas de desenvolvimento que, está claro, devem refletir uma proposta, um modelo de desenvolvimento.
Formular políticas de drogas a partir do Estado fora do conjunto das políticas públicas, é profundamente equivocado do ponto de vista técnico e estéril, no que diz respeito aos resultados esperados, o que resultará insustentável do ponto de vista político.
As políticas sobre drogas têm que estar estreitamente relacionadas às políticas de saúde pública, que são um direito humano, e, portanto, não mercantilizáveis, e, portanto, universais. Têm que estar entrelaçadas com as políticas de inserção e coesão social, e, portanto, articuladas, com as políticas educativas, de emprego e de acesso à cultura.
Desenhar e executar políticas sobre drogas separadamente do resto das políticas sociais implica centrar a reflexão nas substâncias e deixar de lado que seu uso se dá em um contexto no qual as condicionantes sociais têm papel relevante.
Tomar o sujeito como objeto das políticas sobre drogas, retirando-se o foco das substâncias, implica que essas políticas se deem em um marco de articulação e cooperação com o conjunto das políticas públicas e das políticas sociais, em particular.
O que expus até aqui pode parecer plausível em um âmbito acadêmico, mas resulta insubstancial em termos de prática política. Na prática política, há outras coisas em jogo.
Conjuntura em que se deu a política de cannabis
Vínhamos desenvolvendo políticas públicas orientadas ao desenvolvimento, tínhamos políticas de drogas inseridas nas políticas sociais, havíamos levado à frente nas Nações Unidas resoluções no sentido de que as políticas de drogas deveriam ser conduzidas a partir da perspectiva dos direitos humanos e que a responsabilidade compartilhada incluía todos os atores sociais em seu desenho e execução.
O país crescia a taxas superiores a 4% ao ano, a pobreza passava de 40%, em março de 2005, a 11,5%, em março de 2014, o desemprego caía a valores por nós desconhecidos nos últimos 60 anos, situando-se em torno de 6%, e o índice de Ginni [XXXX] passava de 0,452 a 0,379.
A partir de 2008, inverteram-se mais de seis décadas de fluxox migratórios negativos. O Uruguai começou a ser receptor de uruguaios que retornavam, e também de migração regional, nos mais diversos espaços da cadeia produtiva.
Industriais, consultores, a população em geral dizem que o Uruguai tem futuro promisor, que vale a pena viver no país. Mas toda boa história tem seu porém: entre 2009 e 2012, dispara a taxa de criminalidade, que passa de 5,3% a 7,9%, em crimes violentos, para cada 100 mil habitantes.
A análise do fenômeno nos mostrou que esse aumento estava diretamente associado à mudança nos padrões e mecanismos de comercialização ilegal de drogas. Aprofundavam-se as ações dos grupos criminosos, em busca de controle de territórios, para monopolizar o comércio de drogas. A opinião pública estava a cada dia mais sensível ante a percepção de que a sociedade deslizava em uma espiral de violência e criminalidade sem limites. A percepção social é parte da realidade, e a política não pode ignorar isso.
Ante um problema complexo, não podíamos ensaiar uma solução simples, e nos encaminamos por uma resposta que incorporaria diferentes olhares, definindo-se uma estratégia que enfatizasse os bens a preservar e não os aspectos a controlar. Assim nasceu a Estratégia pela Vida e a Convivência, um amplo corpo conceitual que analisa diferentes formas de violência a afetar a sociedade, a fragmentação social, o desprezo pela própria vida e a dos outros, entre outros aspectos.
Dessa estratégia, surgiram quinze medidas que o governo comprometeu-se a levar adiante nos três anos de governo que restavam, entre elas, o desenvolvimento de ações para fortalecer a coesão social e o tecido urbano das cidades, particularmente na área metropolitana de Montevidéu, com incorporação de tecnologia e logística para o monitoramento dos organismos policiais e para o controle das atividades criminosas, aumento das penas aos funcionarios públicos venais, em particular aos policiais, medidas sanitárias para abordar os problemas derivados do uso da pasta base de cocaína.
Uma das medidas foi a regulação do mercado da maconha, que implicava dar conta de toda uma cadeia produtiva, da plantação, ao cultivo, produção, distribuição, dispensação e aquisição.
Poderíamos ter optado por uma estratégia de luta contra o narcotráfico e o crime organizado, como incentivam e financiam alguns organismos internacionais, mas optamos pela vida e pela convivência. A mudança de paradigma está na concepção do problema e na resposta que se dá. A regulação do mercado de maconha é uma parte, em nenhum caso é o todo.
O caminho da regulação da cannabis no Uruguai
Com essa concepção explícita do problema, o governo começa a pôr em prática um conjunto de medidas, entre as quais o envio ao Parlamento de um projeto de lei com ampla exposição de motivos e um artigo único. Esse artigo, que os parlamentares transformaram em dois, dizia, grosso modo, que o Estado, no marco de uma política sanitária, da perspectiva da redução de riscos e danos, assumia o controle da importação, exportação, plantação, produção, distribuição e dispensação da cannabis e seus derivados.
Assim, a lei regulou o mercado da maconha para uso médico, o cânhamo para uso industrial e a maconha para uso medicinal. Estabeleceu que se poderia obter a maconha não médica de maneira legal por três vias: o auto cultivo de até seis plantas, em casa; a participação em clubes canábicos, de quinze a 45 membros, com cultivo de 99 plantas; e pela aquisição no sistema de farmácias, de até 40 gramas por mês.
Criamos um instituto público de direito privado, o Instituto de Regulação e Controle da Canabis (IRCCA), para que se encarregasse do funcionamento do sistema. O instituto desenvolveu e implementou um software que permite o registro dos usuários, cuja base de dados não pode ser usada por nenhum outro organismo ou qualquer outro fim que não seja o de controlar a distribuição da cannabis.
Hoje, são mais de 2,5 mil pessoas registradas como autocultivadores ou membros de clubes. São milhares de dólares que já não vão para as mãos do narcotráfico, e os usuarios não correm riscos por terem plantas em suas casas.
O instituto selecionando as empresas que farão o plantio, a produção e a distribuição de cannabis voltados ao sistema de farmacias. Em breve teremos os resultados. Falamos no camino de regulação da cannabis no Uruguai. O conceito de caminho é chave para nós. Não somos nem queremos ser um modelo, mais ainda, estamos convencidos de que em materia de política de drogas, e mais específicamente, no que diz respeito à cannabis, não há modelos, há experiências, há buscas, caminos.
A Holanda não é um modelo, ninguém repetiu a experiencia holandesa. Portugal não é um modelo, ninguém repetiu a experiencia portuguesa. Espanha não é um modelo, ninguém repetiu a proposta dos clubes canábicos da forma como se desenvolveram lá. Nós estudamos todas essas propostas, levamos em conta aspectos de todas elas, mas não copiamos inteiramente nenhuma. Não cremos em modelos. As políticas de drogas de modelo único, impulsionadas por convenções e reforçada pela iniciativa de guerra às drogas, levada à frente por Richard Nixon fracassou estrondosamente, porque levaram a resultados inversos aos que se propunham. Advogamos por políticas flexíveis, que deem conta e respeitem as realidades nacionais e a soberanía dos Estados.
Junto a outros países da América Latina, primeiro, e da Europa e África, depois, impulsionamos a flexibilização da interpretação das Convenções das Nações Unidas sobre Drogas e reafirmamos que essas interpretações devem se dar da perspectiva dos direitos humanos. Estamos nos mobilizando regional e globalmente para que a Ungass [sigla de United Nations General Assembly Special Session ou Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas] sobre drogas, em 2016, seja um fórum de debates real, honesto, sem prejuízos ou temas proibidos. O século 21 iluminará outras políticas de drogas, que são não só necessárias como também possíveis.