Os impactos das mudanças demográficas na Seguridade Social e o ajuste fiscal

Os impactos das mudanças demográficas na Seguridade Social e o ajuste fiscal

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A Reforma da Previdência, que prevê ajustes regressivos – com redução de direitos –, fundamenta-se equivocadamente no argumento do “envelhecimento populacional” e seus impactos sobre o orçamento do sistema previdenciário. É o que mostra o economista Frederico Melo, neste artigo da série #Governo sem Voto, em que a Plataforma Política Social e o Le Monde Diplomatique Brasil, em conjunto com outros parceiros, analisam criticamente as ações do governo federal interino e do Congresso Nacional, de modo a subsidiar tecnicamente ações de resistência política contra o retrocesso.

“A redução de benefícios da Seguridade associada à garantia de sustentação de pagamentos de juros, acrescidos por altas taxas de juros e baixa tributação, significa intensificar ainda mais a concentração de renda e riqueza no país”, observa Frederico. “Em contexto de profundas desigualdades entre setores da população brasileira, reformas regressivas da Previdência, em específico, e da Seguridade aparecem, então, como medidas de ajuste fiscal sem imposição de ônus aos mais ricos”.

Realçando que, ao contrário do que comumente se pensa, o envelhecimento populacional é deflagrado e intensificado por uma redução dos nascimentos de filhos por mulher e não pelo fato de as pessoas estarem vivendo por mais tempo, o economista analisa “O envelhecimento demográfico é brandido como o grande argumento a impor a reforma da Previdência por ter um caráter quase natural, contra o qual não há contra-argumentos. Mas, na verdade, no que diz respeito à Previdência e à Seguridade, os fenômenos demográficos são “filtrados” pelas relações sociais e econômicas.

Leia o artigo na íntegra abaixo.

 

Frederico Melo*

De forma bem sintética, pode se definir Demografia como o estudo de populações humanas. Já a Seguridade Social, conforme estabelecido no art. 194 da Constituição Federal, compreende as ações voltadas para atender os direitos referentes à saúde, à previdência e à assistência social. Quando se relaciona Demografia à Seguridade Social ou, mais especificamente, quando se associam previdência social e fenômeno demográfico, normalmente se pensa no envelhecimento populacional. A força da associação entre previdência e envelhecimento populacional decorre da frequência e intensidade com que se defende a necessidade de reforma da Previdência em função dos impactos do envelhecimento sobre o orçamento do sistema previdenciário. A dinâmica demográfica, no entanto, traz impactos de diversas ordens para o sistema de proteção social, para as políticas públicas em geral e para a sociedade. Demografia é um vasto campo do saber, de caráter multidisciplinar, que apresenta outras relações com a Seguridade Social, para além apenas da questão do envelhecimento demográfico. Os dois argumentos principais para se defender a necessidade de reforma da Previdência referem-se ao envelhecimento populacional e à questão fiscal. Analisam-se, neste artigo, alguns fenômenos demográficos e fiscais inter-relacionados que geram impactos relevantes para a Seguridade e a sociedade.

O envelhecimento populacional e as políticas públicas

A análise do tamanho e da composição (por sexo e grupos etários) de uma população humana específica e de sua evolução no tempo deve necessariamente considerar os fenômenos da fecundidade, mortalidade e migrações. Ou seja, o tamanho e a composição de uma população e suas mudanças no tempo derivam de como os bebês nascem (com que intensidade e com qual proporção de sexos), como as pessoas vivas de cada sexo morrem (a que ritmo em cada idade) e se ocorre migração (para fora do território ou para seu interior), também segundo idade e sexo. Estudos demográficos, no entanto, abrangem muitas outras dimensões resultantes das experiências das populações humanas, como questões referentes a educação, saúde, comportamento familiar e reprodutivo, relações entre homens e mulheres, mercado de trabalho, migrações, relações da população com o meio ambiente, entre outras.

O envelhecimento populacional corresponde ao processo de a população ficar mais envelhecida e pode ser definido como uma mudança na composição etária de uma população, decorrente do aumento da proporção dos segmentos mais idosos e diminuição dos mais jovens. Ao contrário do que comumente se pensa, o envelhecimento populacional é deflagrado e intensificado por uma redução dos nascimentos de filhos por mulher[1] e não pelo fato de as pessoas estarem vivendo por mais tempo, que corresponde ao envelhecimento individual. O processo do envelhecimento populacional é gerado pela queda da fecundidade (que diminui a proporção de bebês e crianças da população) e não pela extensão da longevidade. Num momento mais avançado do envelhecimento demográfico, em que as taxas de fecundidade já forem bem baixas e estiverem diminuindo mais lentamente, e quando a mortalidade entre crianças e jovens for residual, é possível que o envelhecimento populacional venha a ser impulsionado pela maior longevidade[2]. Mas, até o presente, no Brasil, o envelhecimento populacional foi impulsionado principalmente pela queda da fecundidade.

A queda da fecundidade no Brasil foi muito rápida e intensa, caindo de aproximadamente 6 filhos em média por mulher em idade reprodutiva, em meados da década de 1960, para aproximadamente 1,8 filho no presente. O patamar atual, portanto, está abaixo do chamado nível de reposição da população, estimado em torno de 2,1 nascidos vivos por mulher, que seria a taxa de fecundidade necessária para que a população se reponha no longo prazo, sem aumentar nem diminuir de tamanho[3]. Em função da queda da fecundidade, estima-se que a população brasileira vá passar a diminuir de tamanho em meados da década de 2040[4], uma vez que não se prevê uma imigração para o país capaz de compensar os efeitos da redução dos nascimentos.

Fazer uma apreciação valorativa do envelhecimento populacional, ou seja, afirmar se ele é bom ou ruim em si, é difícil e controverso. A queda da mortalidade, que é a causa motriz da maior longevidade, é claramente um fenômeno positivo. O aumento da expectativa de vida resulta da melhoria da qualidade de vida da população e dos avanços científicos. Tanto para os indivíduos quanto para a sociedade, é bom que as pessoas estejam vivendo por mais tempo. Por outro lado, na perspectiva social e na pessoal, a avaliação da queda da fecundidade é mais controversa. É bom que os casais tenham um filho? Ou é melhor que tenham três? Ou que não tenham? Ou depende da situação? De todo modo, a diminuição do tamanho da população no longo prazo pode ser algo positivo, na medida em que pode abrir espaço para menor pressão sobre os recursos naturais e econômicos, desde que a humanidade consiga frear a ambição de ampliação do consumo.

Do ponto de vista da gestão das políticas públicas, o ideal talvez fosse conseguir alcançar uma população sempre de mesmo tamanho e sempre com a mesma composição por grupos etários ao longo do tempo[5]. A realidade, entretanto, é outra. O tamanho e a estrutura etária da população mudam constantemente, o que exige mudança das políticas públicas em geral. A transformação do perfil populacional impõe mudanças nas políticas de educação, habitação, mobilidade urbana, cultura etc. Particularmente no que diz respeito à Seguridade Social, o envelhecimento demográfico requer que se tomem medidas nas políticas de Previdência, de Assistência e de Saúde para se adequarem a essa transformação social. Os processos de envelhecimento populacional e individual impõem fortes pressões no sistema de saúde. As doenças entre os idosos tendem a ser mais crônicas e incapacitantes e o tratamento, mais caro.

Se é verdade que o envelhecimento populacional tende a onerar o financiamento de um sistema previdenciário, há outros fatores e dinâmicas que podem contribuir para aliviar o peso do envelhecimento. Esse ônus é mais direto nos sistemas previdenciários que funcionam com base no modelo de repartição, no qual o conjunto de contribuições (recolhidas de trabalhadores, empresas e sociedade) financia o conjunto de benefícios pagos no mesmo período. No modelo alternativo, chamado de capitalização, cada indivíduo possui uma conta e seus benefícios futuros vão depender, fundamentalmente, das apostas financeiras feitas no período em que se acumulava o fundo, ou seja, basicamente durante a vida de trabalho e contribuição do indivíduo[6]. O Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende os trabalhadores da iniciativa privada e os servidores que não contam com regimes próprios de previdência, estrutura-se no modelo de repartição. Nesse modelo, em uma população mais envelhecida, relativamente menos pessoas (correspondentes aos adultos que trabalham e contribuem) geram os recursos para pagar os benefícios dos que já estão em gozo de aposentadoria ou pensão, contingente que tende a ser maior do que antes.

É interessante notar que o “argumento do envelhecimento”, que é utilizado para defender ajustes regressivos (isto é, de redução de direitos) na Previdência, não é usado por seus defensores para argumentar a favor de ajustes progressivos (ou seja, de ampliação de direitos) nas políticas públicas de Saúde e de Assistência. O envelhecimento demográfico é brandido como o grande argumento a impor a reforma da Previdência por ter um caráter quase “natural”, contra o qual não há contra-argumentos. Mas, na verdade, no que diz respeito à Previdência e à Seguridade, os fenômenos demográficos são “filtrados” pelas relações sociais e econômicas.

As interações entre o sistema de proteção social e as relações econômicas e sociais

A Seguridade Social brasileira, conforme estabelecido na Constituição Federal, em especial nos artigos 193 a 202, compõe o nosso sistema público de proteção social. Em que pesem as especificidades de cada país e de sua trajetória histórica, a instituição de um sistema de proteção social visa suprir as faltas de recursos e de meios de proteção de indivíduos e famílias frente às vicissitudes da vida, bem como compensar falhas do sistema econômico. Assim, as relações sociais e as relações econômicas influenciam o sistema de proteção social e, por sua vez, são por ele afetadas. Além disso, as disputas políticas entre os grupos sociais e a resultante desses embates concorrem para configurar, ao longo do tempo, a organização do sistema. Esses sistemas envolvem, em maior ou menor medida, a transferência de recursos entre segmentos da sociedade e, por isso, a disputa política deriva, muitas vezes, do interesse em ser coberto pelo sistema e/ou em não ser onerado com o seu custeio. Normalmente, os sistemas são financiados em base tripartite, na forma de contribuições dos trabalhadores, contribuições das empresas e tributos gerais, arcados pela sociedade.

  1. a) Seguridade e relações econômicas: mercado de trabalho e evolução econômica

De todo modo, o envelhecimento demográfico por si só não é motivo suficiente e inexorável para a instituição de condições mais difíceis para ter acesso ao gozo do benefício. No que diz respeito ao financiamento do sistema previdenciário, as variáveis demográficas são “filtradas”, por exemplo, pelas características e pela dinâmica do mercado de trabalho. E o mercado de trabalho brasileiro tem características que reduzem o potencial de arrecadação advinda das contribuições propriamente previdenciárias, isto é, aquelas que recaem sobre a remuneração do trabalho, pagas pelas empresas e pelos trabalhadores.

Uma primeira restrição do mercado de trabalho brasileiro ao financiamento da Previdência decorre dos desempregados. Quanto maior o número de pessoas desempregadas, maior o impacto redutor sobre as receitas previdenciárias. Entre aquelas pessoas que trabalham, um segmento expressivo, composto por autônomos não contribuintes da Previdência e assalariados sem carteira assinada, inclusive domésticas, não fazem parte do esforço social de sustentação da Previdência. E pode-se supor que, futuramente, vão onerar a Assistência Social. Mas também as pessoas adultas que estão fora do mercado de trabalho (ou seja, a população economicamente não ativa) representam uma restrição ao financiamento pleno da Previdência. Nesse grupo, se destacam as mulheres, que participam do mercado de trabalho em proporção ainda muito inferior à dos homens.

Há ainda outras especificidades no caso brasileiro. No caso dos produtores rurais, se constituídos na forma de pessoa jurídica, a contribuição previdenciária incide sobre o faturamento, mas há isenção de contribuição sobre o faturamento referente à parcela exportada da produção. Isso faz com que o agronegócio seja amplamente isento de financiar a Seguridade, na medida em que exporta boa parte de sua produção.

Aparentemente, no período recente, aumentou o caso de empregados de alta remuneração que abrem empresas e passam a ser contratados por seus antigos empregadores por meio de “pessoa jurídica” (PJ). Supõe-se que esses trabalhadores contribuam como autônomos para a Previdência. O problema para o financiamento da Previdência é que as empresas que contratam PJ de alta renda deixam de recolher a contribuição de 20% incidente sobre a folha de salários na parcela referente à remuneração desses trabalhadores.

A instabilidade ocupacional também fragiliza o financiamento do sistema e dificulta o cumprimento, pela pessoa trabalhadora, da carência de 15 anos de contribuição para alcançar o direito à aposentadoria. As sucessivas mudanças de estados ocupacionais (entre trabalhador ocupado, desempregado e inativo), de tipo de inserção (empregado com carteira, sem carteira, autônomo) e entre contribuinte e não contribuinte tornam as contribuições previdenciárias instáveis e o orçamento pró-cíclico, fazendo com que as contas piorem na recessão e melhorem no crescimento econômico.

Do ponto de vista dinâmico, ou seja, considerando o desenvolvimento da economia e do sistema de proteção, o maior peso sobre os trabalhadores ativos para sustentação dos inativos pode ser compensado pela evolução mais acelerada de suas remunerações em comparação com a evolução do valor dos benefícios. Em outras palavras, em um contexto de processo de crescimento dos salários à frente da evolução do valor dos benefícios, a piora da relação entre contribuintes e beneficiários pode ser aliviada. Assim, se o sistema econômico tiver uma trajetória favorável do crescimento da produtividade, do emprego e da remuneração do trabalho, alivia-se a carga de se manterem relativamente mais aposentados e pensionistas.

De toda forma, é difícil imaginar que somente as contribuições previdenciárias vão dar conta de cobrir o total de benefícios previdenciários pagos pelo Regime Geral da Previdência Social. Do ponto de vista financeiro e de mais longo prazo, a Previdência Social sustenta-se no interior da Seguridade Social, que conta com base ampla e diversificada de financiamento. A proposta do arcabouço da Seguridade Social com base ampla de financiamento revela a prudência dos deputados e senadores constituintes de 1988 ao formular o sistema de proteção social do país e seu financiamento, capaz de incorporar trabalhadores até então marginalizados (como os trabalhadores rurais) e garantir sua sustentação no longo prazo.

  1. b) Seguridade e relações sociais: as mulheres como cuidadoras

Mas a Seguridade também guarda inter-relações intensas com o mundo social, para além das relações mais especificamente econômicas. E essas inter-relações são significativas no caso das mulheres, dados os encargos sociais que foram historicamente atribuídos a elas, como os cuidados com os membros da família (tanto os que têm autonomia quanto os que não têm) e a realização das tarefas domésticas. Esses encargos impedem ou, no mínimo, dificultam a trajetória ocupacional feminina, o que é agravado pela falta de serviços públicos que auxiliem as famílias nessas atividades e pela pouca dedicação dos homens às tarefas domésticas e familiares.

No caso de algumas mulheres, em especial as de classe média alta, a tensão entre trabalho para a família e trabalho para o mercado foi, pelo menos em parte, resolvido com a contratação de outras mulheres para fazer parte do trabalho – as empregadas domésticas. O emprego doméstico, por sua vez, garantia muito menos direitos trabalhistas do que as demais relações de emprego, o que foi parcialmente corrigido com a Constituição de 1988 e, já na década de 2010, com a “PEC das Domésticas” e sua regulamentação. Entretanto, formas ilegais de contratação ainda são muito frequentes no setor. Em que pese seu papel de garantir alternativa de ocupação remunerada em momentos de crise e opção para as mais velhas, as mulheres das classes pobres, especialmente as jovens, passaram a preterir esse tipo de ocupação, em função do estigma social e da submissão pessoal na relação com a família dos contratantes. O processo de encarecimento do trabalho doméstico remunerado, de um lado, e as mudanças de expectativas e de alternativas das mulheres pobres, de outro, fazem com que o emprego doméstico esteja em transformação e deixando de ser válvula de escape para as tensões das relações entre “marido” e “esposa” e entre mãe e filhos.

Com a crescente aspiração por maior autonomia e diante da falta de serviços públicos de educação infantil, executados nas creches, as mulheres responderam à pressão social para os cuidados em relação às crianças com o controle da fecundidade e reduziram, intensamente e em curto período de tempo, o número de filhos. O processo de disseminação e aguçamento desse comportamento levou, então, ao envelhecimento populacional, que trouxe impactos ao conjunto das políticas públicas. Em outras palavras, a redução do número de filhos por mulher e o consequente envelhecimento populacional deve-se, pelo menos em parte, à falta de políticas públicas voltadas para os cuidados com as crianças pequenas.

As mulheres, no entanto, já estão sendo surpreendidas pelo retorno sobre elas do processo de envelhecimento demográfico e, no futuro, poderão ser ainda mais sobrecarregadas. Tornam se cada vez mais comuns as experiências de idosos com doenças crônicas e em processo de senilidade e demência sendo cuidados por mulheres da família. Com a expansão da longevidade, as mulheres poderão vir a sofrer com a responsabilidade de cuidar dos idosos com pouca autonomia individual. A sobrecarga feminina tende a ser maior em função da redução do tamanho das famílias, também causada pela diminuição do número de filhos. Isso só não ocorrerá se as relações entre mulheres e homens e as expectativas sociais sobre as mulheres se alterarem até lá e/ou se o Estado criar um aparato de atenção aos idosos. Assim, o Estado brasileiro que tem sido, há décadas, muito lento em construir uma política de atenção à primeira infância, teria que ser extremamente ágil na formulação e implantação de uma política de atenção aos idosos para que as mulheres não viessem a ser penalizadas.

Sem que se tenham sido superados os obstáculos enfrentados por elas no mercado de trabalho e no âmbito familiar e doméstico, a proposição de elevação da idade de aposentadoria das mulheres, convergindo para o limite masculino, é uma “ideia fora do lugar”. Os dois fenômenos demográficos relacionados – o envelhecimento demográfico e o envelhecimento individual –, que servem de argumento para defender a elevação do limite de idade para acesso ao benefício por parte das mulheres, pesam sobre elas e não são utilizados para justificar a construção de uma política que alivie o ônus que elas enfrentam.

E o problema da queda da fecundidade pode não ter terminado ainda. As mulheres podem continuar a reduzir o número de filhos que têm, pressionadas por diversos fatores: o lento avanço dos serviços públicos de educação infantil; o ônus dos cuidados com os familiares, em especial com os que têm pouca autonomia; as trajetórias ocupacionais precarizadas, intermitentes e mais longas (com a elevação da idade de aposentadoria); além do avanço e consolidação do desejo por independência, realização pessoal e consumo. A falta ou a limitação de políticas públicas voltadas para a família e para a mulher pode redundar em agravamento do processo de envelhecimento populacional, com impactos ainda mais sérios sobre a economia e as políticas públicas.

A demografia da desigualdade no Brasil[7]

As desigualdades na distribuição de recursos e direitos no interior de uma população também configuram temas de interesse da Demografia. E o Brasil é um país farto em desigualdades extremas dos mais diversos tipos, que dificultam até mesmo a criação de regras gerais e justas para a previdência social. As diferenças de trajetória ocupacional, devido às condições de exercício do trabalho e à duração dos vínculos empregatícios, por exemplo, tornam difícil compatibilizar o critério de justiça com a formulação de regras gerais de limite de idade e de carência contributiva para aposentadoria. A heterogeneidade das condições de vida e, mais especificamente, de trabalho reflete-se também no tempo e na qualidade de sobrevida de que a pessoa irá usufruir.

Outros exemplos de desigualdades no país referem-se às distribuições de renda e de riqueza e à incidência tributária. Recentemente a Receita Federal do Brasil disponibilizou o acesso aos dados (não identificados) das declarações do imposto de renda das pessoas físicas, o que permite algumas investigações sobre concentração de renda e riqueza entre os que prestam declarações à Receita. E alguns estudos com base nesses dados já foram realizados e publicados[8]. Todos os estudos convergem à conclusão sobre o elevadíssimo grau de concentração de renda e de riqueza no topo da distribuição, ou seja, entre os muito ricos.

A análise da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda (BRASIL, 2016) mostra que, em 2013, os 8,4% mais ricos declarantes do imposto de renda respondiam por 30,4% da renda tributável, 46,4% da renda total e 59,4% dos bens e direitos do conjunto de todos os 26, 5 milhões indivíduos que prestaram declarações à Receita referentes àquele ano. Esses 8,4% mais ricos auferiram renda mensal média de mais de 20 salários mínimos e correspondiam a 2,2 milhões de pessoas. O fato de esse grupo mais rico deter uma parcela maior da renda total do que da renda tributável significa que boa parte de sua renda é composta por rendimentos não tributáveis ou com tributação exclusivamente na fonte. Isso é um primeiro indício de que eles pagam menos impostos relativamente ao volume de sua renda, o que é especialmente verdadeiro para aqueles “super ricos”, na expressão de Gobetti e Orair (2015). As 71 mil pessoas que tiveram renda média superior a 160 salários mínimos (grupo equivalente a 0,3% do total de declarantes) pagaram alíquota média sobre seus rendimentos tributáveis e isentos de apenas 3,3%[9]. Para fins de comparação, lembra-se que sobre a parcela do salário acima de R$ 4,7 mil mensais já incide uma alíquota de 27,5% de tributação. Para Gobetti e Orair (2015), essa baixa alíquota média de imposto dos “super ricos” decorre do fato de serem beneficiados por terem rendimentos em grande medida isentos (como os resultantes da distribuição de lucros e dividendos) ou pouco tributados (como os ganhos financeiros). Gobetti e Orair (2015, p. 1) concluem:

Em resumo, os dados revelam que o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos, combinando baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física.

Assim, além da brutal concentração de renda e de riqueza no Brasil, esses dados das declarações do imposto de renda escancaram a injustiça do sistema tributário brasileiro. Em um momento em que se propõem medidas de ajuste fiscal baseadas em redução do alcance das políticas públicas e de limitações adicionais aos benefícios da seguridade, os dados da injustiça tributária no país colocam na ordem do dia a discussão sobre a capacidade dos diferentes segmentos sociodemográficos em contribuir para o financiamento público e para a redinamização da economia. Os dados alertam, porém, para a capacidade de alguns setores de altíssima renda em evadir desse esforço e preservar sua renda e riqueza. Os grupos sociais mais ricos, arregimentando seguidores nas classes médias, têm demonstrado forte resistência à maior tributação de sua renda, patrimônio e sua movimentação. Seguidamente, têm-se frustrado as tentativas de instituir ou recriar tributos (tais como sobre grandes fortunas, movimentação financeira, distribuição de dividendos, sobre exportações do agronegócio) ou de elevar outros (como sobre heranças, sobre ganhos financeiros, sobre propriedades rurais).

Do ponto de vista da gestão pública, os benefícios pecuniários da Seguridade Social, tanto da Previdência quanto da Assistência, são transferências diretas ao cidadão e à cidadã. O Portal da Transparência define

Transferências Diretas ao Cidadão:

São os recursos financeiros repassados pela União diretamente ao cidadão que participa de programas específicos. A União concede benefício monetário mensal, sob a forma de transferência de renda diretamente à população-alvo do programa. [10]

Ou seja, o Estado, por meio de tributos, arrecada recursos da sociedade e, entre outros fins, devolve parte desses recursos diretamente a indivíduos ou famílias, que fazem jus a essa transferência por participarem de programas públicos. No caso da Seguridade, recebem recursos pecuniários os beneficiários dos programas da Previdência e da Assistência.

Na essência do processo, o pagamento de juros da dívida pública também pode ser considerado “transferências de recursos”, na medida em que o Estado arrecada recursos da sociedade em geral, por meio de tributos, e repassa parte desses recursos, em forma líquida, para indivíduos (nacionais e estrangeiros) ou empresas que detêm títulos da dívida interna.

No ano de 2015, as despesas com os benefícios previdenciários alcançaram 7,4% do PIB e com os assistenciais (do BPC/LOAS), 0,7%. Já os pagamento de juros, segundo a contabilidade oficial, equivaleram a 8,5% do PIB(11)[11]. Portanto, em 2015, gastou-se mais com o serviço da dívida pública interna do que com a Previdência Social.

Conforme declarações do atual governo, o ajuste fiscal que se pretende visa impedir o crescimento acelerado da dívida pública. Embora as medidas de ajuste não estejam definidas e divulgadas, as declarações do governo envolvem, no mínimo, contenção de gastos com as políticas públicas de educação e saúde e mudanças nas políticas de Previdência e Assistência, dificultando o acesso ao gozo de benefícios ou reduzindo os valores deles. Caso essa intenção do governo se concretize, as transferências de recursos aos cidadãos que contam com a Proteção Social irão ser reduzidas para garantir a transferência de recursos aos detentores de títulos da dívida pública, que já contam com altas taxas de remuneração. Ademais, as famílias que dependem das políticas de saúde e de educação deverão sofrer com a restrição desses serviços públicos. Com isso, o governo estará preservando a renda dos ricos e muito ricos em detrimento dos serviços e da transferência de renda para os mais pobres. E, portanto, o governo estará aprofundando a concentração da renda no país, ao invés de construir políticas para seu enfrentamento. Ademais, como a renda dos mais pobres tenda a ser totalmente dispendida para consumo, enquanto a dos mais ricos tende a ser reaplicada no sistema financeiro, o governo estará, com essas medidas, retardando a retomada da atividade econômica interna.

Considerações finais

As inter-relações da Demografia com a Seguridade envolvem mais do que apenas o processo de envelhecimento populacional e são permeadas por diversas relações e interações sociais e econômicas. As mudanças trazidas pelo envelhecimento demográfico, entendido como uma mudança no perfil etário da população decorrente da elevação da proporção dos segmentos mais idosos, atingem toda a sociedade e o sistema econômico. Em consequência, virtualmente todas as políticas públicas tendem a ser afetadas. O envelhecimento demográfico deve ser incorporado à análise dos impactos sobre a Seguridade junto com outras dimensões sociais e econômicas, que permeiam as inter-relações dos fenômenos demográficos com o sistema de proteção social. Assim, o envelhecimento populacional não deve ser álibi ou argumento apenas para a defesa de mudanças redutoras de direitos na Previdência e deve implicar também em reforço de outras políticas, em particular de saúde e assistência, com elaboração de programas de atendimento integral à população idosa. Além de materializar um direito, essa política liberará as mulheres do encargo dos cuidados com os idosos da família e viabilizará sua inserção mais efetiva no mercado de trabalho e sua autonomia.

O argumento do processo de envelhecimento populacional tem fundamentado a defesa da necessidade urgente da reforma da Previdência, no sentido de elevar as condições mínimas para acesso aos benefícios. Ou seja, a defesa da urgência da reforma da Previdência retira sua força do caráter “quase natural”, porque dado e inexorável, do envelhecimento populacional. Mas os impactos das variáveis demográficas sobre a sustentação da Previdência são mediados por variáveis econômicas. Ademais, em função dos desafios impostos para a inclusão de segmentos até então marginalizados e efetivação do direito social à proteção, a Previdência foi inserida, por preceitos constitucionais, no interior da Seguridade Social, dotada de base ampla de financiamento.

De todo modo, para que as contribuições propriamente previdenciárias (isto é, aquelas baseadas na remuneração do trabalho aportadas por empresas e por trabalhadores) não se descolem muito dos dispêndios previdenciários, é fundamental que a remuneração do trabalho avance em ritmo maior do que o do crescimento dos benefícios. Também é importante reforçar a fiscalização sobre as relações de trabalho. A liberação da terceirização, inclusive com possibilidade de “terceirização em cadeia” e intensificação da rotatividade, e a prevalência do negociado sobre o legislado apontam no sentido contrário, de enfraquecimento da remuneração do trabalho, e, assim, fragilizam a sustentação da Seguridade Social.

Os sistemas de proteção social objetivam suprir vulnerabilidades individuais ou familiares e falhas do sistema econômico. Eles constituem instituições sociais e, portanto, resultam de processos históricos conflituosos. Na medida em que envolvem a transferência de recursos na sociedade, ou seja, grupos sociais e etários contribuem com recursos para o financiamento dos benefícios de outros grupos, a disputa política se dá em torno do acesso aos benefícios e da redução sobre si do ônus do financiamento. Além disso, a disputa também é acirrada por interesses de empresas em um promissor mercado de seguros privado e por interesses de governantes em liberar recursos para consecução de seus projetos políticos. No entanto, a Constituição Federal estabelece que saúde, assistência e previdência, entre outros, constituem direitos sociais e, por isso, concepções privatistas e puramente financistas da Seguridade estão em desacordo com a Constituição.

Ainda assim, de tempos em tempos, ressurgem propostas de reformas da Previdência ou, em termos mais gerais, da Seguridade. Essas propostas ganham ímpeto especialmente em contextos de ajuste fiscal. No entanto, o fato de o sistema tributário brasileiro incidir relativamente mais sobre as famílias de renda menor, ou seja, a aguda regressividade do sistema, mina a legitimidade de propostas de ajuste fiscal baseada no corte de benefícios voltados para a população trabalhadora e os pobres. Estudos com os dados das declarações do imposto de renda revelam a extrema concentração da renda e da riqueza no topo mais rico da distribuição e a capacidade dos “super ricos” em proteger seus ativos da incidência tributária. Isso torna injustas as propostas de mudanças nas regras e benefícios da Seguridade.

E, por fim, a discrepância de tratamento entre duas formas de transferências sociais de recursos também prejudica a legitimidade social de propostas de ajuste fiscal baseadas em redução de benefícios e serviços da Seguridade. Tanto o pagamento de benefícios da Previdência e da Assistência quanto o pagamento de juros configuram, em última instância, mecanismos de transferências de recursos no interior da sociedade. Redução de benefícios da Seguridade associada à garantia de sustentação de pagamentos de juros, acrescidos por altas taxas de juros e baixa tributação, significa intensificar ainda mais a concentração de renda e riqueza no país. Em contexto de profundas desigualdades entre setores da população brasileira, reformas regressivas da Previdência, em específico, e da Seguridade aparecem, então, como medidas de ajuste fiscal sem imposição de ônus aos mais ricos.

* Frederico é economista, doutor em Demografia e técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Artigo publicado em 28/6/2016, na Plataforma Política Social.

 

Bibliografia

BRASIL. Relatório da distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira – dados do IRPF 2015/2014. Secretaria de Política Econômica Ministério da Fazenda. Maio de 2016. (disponível em: http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/relatorio-sobre-a-distribuicao-da-renda-e-da-riqueza-da-populacao-brasileira/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf , acesso em 13 de junho de 2016).

DIEESE. A situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000. São Paulo: DIEESE, 2012. (disponível em:http://www.dieese.org.br/livro/2012/livroSituacaoTrabalhoBrasil.pdf, acesso em 15 de junho de 2016).

GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Tributação e distribuição da renda no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias das pessoas físicas. Brasília: Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG). Dezembro 2015. (One Pager 312) (disponível em: http://www.ipc-undp.org/pub/port/OP312PT_Tributacao_e_distribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas_fisicas.pdf, acesso em 13 de junho de 2016).

MEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro; CASTRO, Fábio. O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006-2012. In: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, nº 1, p. 7-36, 2015.

MEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro; ÁVILA, Fábio. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012 – Estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. In: Ciência & Saúde Coletiva, 20(4):971-986, 2015.

Notas:

* Técnico do DIEESE na subseção da CUT-Minas, graduado em economia (na UFMG) e doutor em demografia (no Cedeplar-UFMG). Agradeço a leitura atenta e os comentários de Maria de Fátima Lage Guerra, Clóvis Scherer e Juliano Sander Musse, todos também técnicos do DIEESE.

[1] O número médio de crianças nascidas vivas em um ano por mulher em idade reprodutiva (considerada dos 15 aos 49 anos) fornece a taxa de fecundidade geral.

[2] O Brasil se destaca, no cenário internacional, pela relativamente alta taxa de mortalidade de jovens, principalmente do sexo masculino, por “causas externas”, isto é, por acidentes e violência. Esses fenômenos também geram impactos significativos no sistema de saúde no país.

[3