Gastão Wagner: ‘Precisamos construir a reforma sanitária do terceiro milênio’
Sair da postura de resistência, deixar de lado o “mau humor” que passou a caracterizar o movimento sanitário, articular a luta da Saúde com outras lutas e atuar de forma independente de governos e gestores são algumas propostas que o professor e sanitarista Gastão Wagner, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, apresenta, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, para resgatar o projeto do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.
O SUS está em risco? Por que chegamos a um momento como o atual, em que há espaço para uma iniciativa como a PEC 451 ser trazida à tona?
A PEC 451, apresentanda pelo Eduardo Cunha, é sintoma do risco que o SUS corre. Ela é possível porque estamos vivendo um contexto de disputa por qual será a política de saúde do Brasil no presente e em futuro próximo. Isso está em disputa apesar de termos uma política de saúde oficial, constitucional, legal: a Lei Orgânica da Saúde [nº 8.80 e 8.142, de 1990], que faz um desenho do sistema de saúde, de suas prioridades, do modelo de gestão, do modelo de atenção, do projeto global do SUS, como sistema nacional universal, integral de saúde, com gestão pública, orçamento público. Esse projeto está em risco. Mas o SUS, no que diz respeito a vigilância em saúde, promoção da saúde, prevenção, não está em risco.
Por quê?
Não há país no mundo, mais ou menos organizado, que não tenha esses serviços estatais. Até os Estados Unidos têm. Isso não pode ser descontruído. A vigilância em saúde não pode ser terceirizada. O SUS é atacado para se tornar mais frágil, mas vai continuar aí. Fizemos uma implementação parcial do SUS, que fica devendo muito ao que se quis da Reforma Sanitária dos anos 1980. Isso se cronificou e provocou uma crise de legimidade do sistema perante a população. Mas, Se a legitimidade está comprometida por essa implementação incompleta, o que foi feito, o que está funcionando é muito caro a boa parte da população brasileira e destruir isso seria uma barbárie sanitária. O SUS tem uma concretude, uma materialidade. São 60%, 70% dos brasileiros que usam o sistema, como política de saúde pública regularmente, no cotidiano. Então, o valor de uso é muito alto.
O que temos, hoje, nessa incompletude, é um avanço em relação ao que havia antes do SUS...
É muito melhor. E nesses vinte anos, apesar do subfinanciamento, houve expansão de cobertura muito ampla na atenção primária, no acesso a tratamento de câncer, por exemplo. A gente critica muito as filas, a degradação do atendimento de urgência e emergência, um conjunto de problemas, mas o SUS tem programas muito sofisticados, muito efetivos, como o companhamento aos diabéticos, medicação básica, insulina, equipes multiprofissionais, médicos generalistas, saúde da família, enfermeiros. No programa de saúde mental, temos quase 2 mil Caps [Centros de Atenção Psicossociais), atendendo a milhares de brasileiros. Há o tratamento para pessoas que vivem com Aids, para a hepatite. É um sistema muito forte, e ao mesmo tempo muito atacado e muito maltratado.
O SUS é um sistema muito forte, e ao mesmo tempo muito atacado e muito maltratado
De que forma o SUS é maltratado?
Chamo de mau-trato o subfinanciamento, a gestão cada vez mais patrimonialista, clientelista, cada vez menos técnica, menos sanitária. O planejamento praticamente desapareceu. Em quantos anos a gestão tripartite (por estados, municípios e União) vai expandir o acesso da atenção básica a 90% dos brasileiros? Quantos médicos será preciso formar para isso, quantos enfermeiros, quanto vai custar? Em quantos anos vamos dobrar a capacidade de qualificar o atendimento a pessoas com câncer, para completar a ampliação do acesso que iniciamos? Quando vamos chegar a 4 mil Caps, que é a estimativa que fizemos? Ninguém escreve isso, não tem plano, ninguém planeja. Na política de pessoal, que fica a cargo de cada município, há o discurso de que servidor público não é necessário, de que cada OS (organização social) pode ter a política de pessoal que quiser, a rotatividade que quiser. Fala-se em educação permanente, em humanização, mas nossa política de pessoal é abaixo da crítica, uma das piores do mundo. É muito ruim. O que me surpreende é o quanto conseguimos fazer apesar de tudo isso que chamei de mau-trato governamental, dos gestores.
Como é a gestão do SUS, hoje?
Até hoje, a gestão do SUS não foi profissionalizada. Ainda se trabalha com cargos de confiança, por indicação político-partidária. Nos hospitais públicos que a ideologia neoliberal diz que não funcionam porque são públicos, a gestão é toda entregue a grupos de interesse, da base de sustentação de cada governo. Isso não é de agora, sempre foi assim, mas vem piorando. Vem se agravando a pressão dos políticos profissionais sobre o funcionamento do Estado. É dantesco.
Até hoje, a gestão do SUS não foi profissionalizada. Ainda se trabalha com cargos de confiança, por indicação político-partidária
Como avalia a correlação de forças entre os setores público e privado?
Os sistemas nacionais de saúde, o inglês, o canadense e, mesmo, o SUS, resistiram à crise do socialismo real, ao desmonte que o neoliberalismo fez das políticas públicas, e continuam tendo efetividade, eficácia e eficiência maiores do que o setor privado. Com menos recursos, esses sistemas, com gestão regular ou boa, tratam de doenças crônicas, enfrentam epidemias, cuidam da Aids, com custo duas, três vezes menor que o do setor privado. As políticas de saúde baseadas no mercado são muito mais caras. No Brasil, para a saúde suplementar atender 25% dos brasileiros, com um mesmo padrão de efetividade, de resultados, que o SUS, gasta quatro vezes mais. Foram R$ 240 bilhões, em 2014. O SUS atendendendo a todo mundo, e fornecendo quimioterápicos, medicamento, equipe multiprofissional, atendimento médico, saúde mental, fisioterapia, etc., gastou 200 bilhões, para fazer saúde pública, vigilância, a 70% da população. O ataque à gestão pública como incompetente pode ter evidências quando se trata de produzir telefones – o mercado produz com mais efetividade telefones celulares do que as estatais –, mas isso não se aplica em relação à educação e à saúde. Esse segmento privatista, liberal radicalizado, conservador está muito incomodado com a sustentabilidade dessas políticas públicas.
Esse segmento privatista, liberal radicalizado, conservador está muito incomodado com a sustentabilidade dessas políticas públicas
O que fez sistemas universais como o canadense e o inglês se concretizarem?
Tenho comparado muito os processos implementação das reformas sanitárias portuguesa, espanhola, canadense, inglesa, com a brasileira. O discurso que defendemos na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), da saúde como direito, o movimento social logrou levar até a Constituição de 1988. Mas essa cultura sanitária não entrou no aparelho formador, nas faculdades de Medicina, no Ministério da Saúde. Ou entrou muito parcialmente. Nesses outros países, já no início da vigência do sistema, em quatro, seis anos, foi estendida a atenção básica para 80% da população. Tiveram o cuidado de planejar como, no tempo x, todo português, todo espanhol, todo inglês teria acesso a seus médicos, enfermeiros, a exames complememtares, a especialidades etc. Estabeleceram normas, prazos para o cumprimento das etapas, e divulgaram isso para a sociedade. Formarem mais profissionais, formaram enfermeiros, construíram prédios, compraram equipamentos. Enfim, foi feito um planejamento estratégico. Além disso, os hospitais e serviços especializados, nacionalizaram os serviços filantrópicos e compraram os privados, expropriaram os privados, indenizando-os.
Em vez de o mercado absorver a saúde, o Estado é que fez isso...
Não passaram esses serviços para a administração direta, mas trouxeram tudo para dentro da rede, para o sistema. A política de pessoal era a mesma dos hospitais públicos, o sistema de gestão também.
E agora, o que é necessário fazer pela defesa do sistema de saúde do país?
Aposto na construção do movimento sanitário do terceiro milênio, com defesa do SUS, desse SUS concreto, que existe como potência, pela reconstrução do movimento social, com Cebes, Abrasco, segundo uma nova forma de atuar. Não podemos ficar isolados no SUS strictu sensu. O movimento social em defesa do SUS tem que ser articulado com reforma urbana, educação pública e gratuita de qualidade, combate a violência, geral, urbana, doméstica. E precisa ser um movimento com grau de autonomia grande em relação aos governantes e gestores.
O movimento social precisa ter um grau de autonomia grande em relação aos governantes e gestores
De que forma se daria essa atuação independente?
O movimento sanitário ficou muito dependente, muito vinculado aos governos, particularmente, após a ditadura militar, assumindo cargos tanto na gestão tucana, quanto na gestão do PT e aliados. Com isso, lideranças, intelectuais orgânicos, porta-vozes desse movimento passaram a ter uma racionalidade muito reduzida, voltada a resultados, pragmática, estratégica no sentido ruim, de se manter no poder. Precisamos nos distanciar dessas pessoas, pressioná-las, impulsioná-las, influenciar para que os melhores fiquem lá. Temos que reconstruir um projeto sanitário, com base no SUS, na tradição dos sistemas nacionais de saúde, mas adaptado para o terceiro milênio e para o Brasil.
Que pontos desse novo projeto destaca?
Temos que fazer uma reforma da gestão pública. Falamos em reforma política, referindo-nos só às eleições. Precisamos pressionar por uma reforma do Estado, democratizá-lo, diminuir o patrimonialismo, o clientelismo. E, no SUS, defender a reforma da gestão, diminuir a fragmentação do sistema. O SUS não pode estar assentado na municipalidade. É preciso diminuir o poder dos prefeitos e secretários municipais e criar uma gestão por regiões, entre estados. A Itália, por exemplo, tem um sistema em que há um secretário regional, indicado por todas as comunas, o equivalente às prefeituras daqui, e pela instância federal, com critérios técnicos. Defendo uma criar uma organização pública tripartite – envolvendo municípios, estados e União – mas com organismo único, uma autarquia, ou algo assemelhado, que eu chamo de SUS Brasil, para que haja algum grau de autonomia do Executivo. Essa autarquia precisa ter um controle social, que o SUS já tem, aperfeiçoado, radicalizado, com avaliações por entidades autônomas, a cada três, cinco anos, não com recrsos do Ministério da Saúde, mas de universidades públicas, órgãos de fomento de pesquisa.
E quanto ao financiamento da saúde?
Estou defendendo, que Abrasco, Cebes, os conselhos de Saúde, que abandonemos a estratégia de lutar por mais recursos, apenas. Que a gente associe a luta por recursos a projetos estratégicos, construídos de forma participativa, à revelia (ou com a participação) dos gestores. Queremos, por exemplo, mais recursos para dobrar a cobertura da atenção básica e isso vai custar tanto de salário, tanto de construção de prédios, vai beneficiar tais regiões etc. E que esses projetos sejam utilizados como instrumentos de luta nas conferências, junto aos gestores, ao parlamento. Uma aliança mais orgância entre intelectuais, técnicos e a sociedade civil, pessoas que estejam interessadas em lutar em defesa da saúde. A sociedade contemporânea não sobrevive sem políticas públicas. Se ficarmos na mão do mercado, da indústria farmacêutica, do capital financeiro médico, do complexo médico-industrial privado, estaremos perdidos.
Nós nos afastamos do dia a dia das pessoas, da luta dos enfermeiros e dos médicos, como se houvesse uma barreira entre o interesse profissional e o interesse coletivo em saúde
Como promover essa mobilização?
Temos que criar novos atores sociais, políticos, polifônicos, um projeto muito amplo, com várias origens institucionais, de classe, gênero, religiosas, articular nossa luta com outras lutas. Os governos estão jogando a toalha, desistindo de fazer a reforma da gestão pública, de prosseguir com a reforma do modelo de atenção, de expandir a atenção básica, de sustentar o projeto de Aids como ele é. Temos um capital social para defender o SUS, para defender nosso projeto. Esse capital social precisa se concretizar em capital político. (Não gosto da palavra capital, mas estou usando agora por falta de outro termo). Quanto mais interessantes as propostas, quanto mais próximas das necessidades, quanto mais falarem ao coração, à mente e ao corpo das pessoas, mais agregação vamos conseguir.
O que é necessário mudar para isso?
O movimento sanitário, nos últimos anos, tem lutado muito na resistência, no mau humor. Nós nos afastamos do dia a dia das pessoas, da luta dos enfermeiros e dos médicos, como se houvesse uma barreira entre o interesse profissional e o interesse coletivo em saúde. Temos que criar pontes com esses interesses específicos, num projeto geral, o bloco histórico de Gramsci. Dá trabalho. E quem for se lançar nisso tem que correr riscos. Pode ser perseguido, advertido, não pegar mais cargo de confiança, em nenhum governo. Vai ser atacado da forma como se faz política hoje, com processo, com denúncia. É o preço. Mas vale a pena.