O que esperar da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2021? – por Santiago Alcázar e Paulo Buss

O que esperar da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2021? – por Santiago Alcázar e Paulo Buss

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Começa amanhã, dia 14 de setembro de 2021, a 76ª Sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (AGNU, no seu acrônimo em português), como ocorre anualmente na sede principal da ONU, em Nova York. O tema da Assembleia deste ano é Construindo resiliência por meio da esperança: Para se recuperar do Covid-19, reconstruir a sustentabilidade, responder às necessidades do planeta, respeitar os direitos das pessoas e revitalizar as Nações Unidas. A agenda a ser cumprida pela AGNU é ampla e complexa[1]. Será presidida pelo embaixador Abdulla Shahib, ministro de Negócios Estrangeiros das Maldivas.

Na terça-feira da próxima semana, 21 de setembro, terá início o debate geral propriamente dito, que é a parte da sessão dedicada aos discursos de chefes de Estado ou de Governo ou altas autoridades. Por tradição, cabe ao Brasil, seguido dos EUA, dar início à série de pronunciamentos oficiais. O presidente Jair Bolsonaro diz que irá à Nova York fazer o discurso.

Certamente o debate vai conferir importante prioridade à questão do Afeganistão, mas não menor será o foco na pandemia de Covid-19, ainda que não haja um tema exclusivo na agenda com este título. São poucos os documentos de informação, vindos de todas as instâncias, agências, programas e fundos, que não mencionem a pandemia e suas circunstâncias. Contudo, são muito poucas as resoluções que esperam sua adoção final.

Há, também, outro cruzamento importante: a Agenda 2030 e seus ODS e a pandemia. Já se sabe que a Covid-19 afetou o andamento da implementação dos ODS, em muitos casos voltando para trás o relógio. É como se houvéssemos voltado para anos ou décadas atrás em termos de realizações. Sabe-se também que, em geral, as metas estavam fora de alcance bem antes da enfermidade pandêmica. Mas sigamos por etapas.

Em 23 de setembro, no âmbito da AGNU, vai se realizar a Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares[2], na qual já se prenuncia um confronto entre as estratégias agronegócios X agroecologia, com resultados imprevisíveis, dados os pesos do setor privado, mas também dos movimentos sociais envolvidos nos debates[3]

A agenda substantiva da AGNU divide-se em blocos alfabéticos. Assim, o bloco A se intitula Promoção do crescimento econômico sustentável e desenvolvimento sustentável em seguimento às resoluções relevantes da Assembleia Geral e de Conferências recentes das Nações Unidas. Esse bloco contém 20 itens e 34 subitens. À guisa de exemplo, cabe mencionar o item 9, Relatório do Conselho Econômico e Social (Ecosoc). O item 18, Questões de políticas macroeconômicas, contém sete subitens, entre os quais caberia registrar Comércio internacional e desenvolvimento, que nada mais é que o exame de resoluções relevantes sobre o tema, de que é exemplo a 75/203, ou seja, a resolução 203 da 75ª sessão da AGNU.

Aquela resolução é importante porque resgata resoluções anteriores sobre o tema; reafirma o compromisso com a resolução 70/1, Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, bem como com a Agenda de Ação de Adis Abeba sobre Financiamento para o Desenvolvimento, que deveria tornar-se operacional sob o signo da solidariedade internacional; e reitera, inter alia, a promessa de que ninguém será deixado para trás, reafirmando que a dignidade da pessoa humana é fundamental.

É inegável a importância de recordar, manifesta no resgate de resoluções históricas, que sempre são aquelas que deixam alguns com menos cabelos e outros, com espumas de esperança. Mas, infelizmente, a necessidade de recordar geralmente se faz premente quando os compromissos acordados deixam de ser levados a efeito. Não é essa a única resolução que traz de volta à memória aquela histórica resolução sobre a Agenda 2030, de 2015. Deixam de lado, contudo, o que nela é crucial, pacientemente redigido no parágrafo resolutivo 30: “Exortamos firmemente os Estados a se absterem de promulgar e aplicar qualquer medida unilateral econômica, financeira ou comercial que violem o direito internacional e a Carta das Nações Unidas e que impeçam o pleno desenvolvimento econômico e social, particularmente em países em desenvolvimento”. Se ao menos houvesse boa vontade!

Os itens 19 e 20, respectivamente Seguimento e implementação das conferências internacionais para o desenvolvimento e Desenvolvimento sustentável reiteram que os Estados não alcançarão os objetivos e as metas da Agenda 2030 sem uma parceria global, revitalizada e ampliada, e meios ambiciosos de implementação, de modo a cumprir a promessa de não deixar ninguém para trás, sobretudo os mais vulneráveis. O relatório 2021 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do secretário-geral, António Guterres, deixa constância de que até há poucos dias atrás mais de 70 vacinas haviam sido administradas para cada 100 pessoas na Europa e EUA e Canadá, enquanto aquela proporção é menor que 2 na região subsaariana. Não há dúvida de que a pandemia da Covid-19 é um stress test do material de que é feito a vontade política.

Entre os subitens de Desenvolvimento sustentável, caberia mencionar Alcançando o desenvolvimento sustentável: implementação da Agenda 2030, incluindo por meio de consumo e produção sustentável; Proteção do clima global para gerações presentes e futuras; Convenção sobre Diversidade Biológica, entre outros.

O bloco B Manutenção da paz e da segurança internaciona contém 38 itens sobre diversos aspectos do tema. O bloco C Desenvolvimento da África contém apenas dois subitens: Nova parceria para o desenvolvimento da África e Causas de conflito e promoção da paz duradoura e desenvolvimento sustentável, respectivamente.

Os blocos D - Promoção de direitos humanos; E - Coordenação efetiva dos esforços de assistência humanitária; e F - Promoção da justiça e da lei internacional contêm ao todo 22 itens e 15 subitens. O bloco G - Desarmamento contém 17 itens, e 48 subitens. Nenhum outro item específico da agenda da AGNU é tão rico. Nenhum é tão eloquente sobre o estado do mundo, nem sequer o que promete um mundo melhor a partir da consecução da Agenda 2030 e dos ODS.

O bloco H Controle de drogas, prevenção e combate ao crime e ao terrorismo internacional em todas as suas formas e manifestações” contém 4 itens. O bloco I Assuntos de organização, administração e outros contém um total de 63 itens e 40 subitens. Este bloco contém o tema Fortalecimento do Sistema Nações Unidas, sob o qual foram incluídas as primeiras resoluções sobre Covid-19, em abril de 2020; o tema Reforma das Nações Unidas: medidas e propostas; e Saúde global e política exterior, a principal referência da AGNU com respeito aos temas de saúde, com destaque especial à Covid-19.

Todos os blocos, com a exceção do de Desarmamento fazem referência a um ou outro aspecto da Covid-19. O tratamento mais amplo do tema, no entanto, está nos blocos I – Saúde global e política exterior, D – Promoção dos Direitos Humanos, e A – Promoção do crescimento econômico sustentável e desenvolvimento sustentável em seguimento às resoluções relevantes da Assembleia Geral e de Conferências recentes das Nações Unidas. Em todos aqueles blocos, a principal referência para o tratamento do tema é a Agenda 2030.

Um afluxo enorme de informes e recomendações das mais variadas instâncias das Nações Unidas chegou às mãos dos Chefes de Estado e de Governo, todas tendo em comum referências à pandemia e à Agenda 2030, e a importância da solidariedade, inclusão e equidade.

Na resolução 70/1 intitulada Transformando o nosso mundo destacam-se os parágrafos finais reunidos sob o signo da ‘chamada à ação’. Talvez não haja em toda a produção onusiana palavras tão inspiradoras e fortes, que merecem ser recordadas uma vez mais: “Há 75 anos, líderes de uma geração anterior se uniram para criar as Nações Unidas. Das cinzas e divisões e dos valores de paz, diálogo e cooperação internacional urdiram esta Organização. Hoje, tomamos uma decisão de enorme significado histórico. Resolvemos criar um futuro melhor para todos, incluindo os que foram privados de levar uma vida decente, digna e gratificante para cumprir o potencial humano. Podemos ser a primeira geração a acabar com a pobreza, assim como podemos ser os últimos que terão a chance de salvar o planeta. O que anunciamos hoje é um mapa de caminho. ‘Nós, os povos’ marcam as palavras iniciais da Carta das Nações Unidas. Hoje, ‘Nós, os povos’ estamos embarcando no caminho para 2030 – Governos, parlamentos, o sistema Nações Unidas e outras instituições internacionais, autoridades locais, povos autóctones, sociedade civil, setor empresarial e privado, comunidade científica e acadêmica, todos enfim. Esta é uma agenda dos povos, pelos povos e para os povos. O futuro da humanidade está em nossas mãos. Cada um de nós deverá assegurar que a jornada seja exitosa e que os seus ganhos sejam irreversíveis”.

Mais de ano e meio após o anúncio de que estávamos em pandemia, o que se tem? O que há daquela visão generosa e promissora da Agenda 2030, que ganhou todas as manchetes no ano mágico de 2015?

Milhões de vidas perdidas. Economia e comércio derretendo, como camadas polares ante o aquecimento global. Empregos esfumados, como florestas queimadas. Solidões e vazios, como o avanço da desertificação. Frustração, raiva, intolerância, discriminação, racismo, xenofobia, violência, negacionismo, como na realidade do dia a dia, tão incompreensível como um mistério divino. E, não obstante a vontade, talvez sincera, de transformar o mundo conforme expressada naquele documento histórico – uma falta de solidariedade que revela a grandeza d’alma dos líderes, ou de seus representantes, ou dos que impediram ou impedem avançar na realização da Agenda 2030, como o avanço incontinente de Pantagruel no festim das vacinas.

É com toda esta complexidade que a 76ª. AGNU terá que tratar. Um afluxo enorme de informes e recomendações das mais variadas instâncias das Nações Unidas chegou às mãos dos Chefes de Estado e de Governo, todas tendo em comum referências à pandemia e à Agenda 2030, e a importância da solidariedade, inclusão e equidade. Esperamos que eles estejam à altura de enfrentar esta complexidade não apenas com intenções, pois há que encurtar ‘a distância entre intenção e gesto’, como nos recorda nosso poeta maior no seu Fado Tropical. E contemos também com o sonho do: Ai esta Terra ainda vai cumprir seu ideal!

Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz).

O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

 

 

[1] Ver: https://undocs.org/en/A/76/150

[2] Ver: https://www.un.org/en/food-systems-summit

[3] Ver: https://agroecologia.org.br/2021/08/07/uma-cupula-em-perigo-a-cupula-de-sistemas-alimentares-da-onu-de-2021/