Um mundo sem patentes (ou com patentes?) para curar a Covid-19

Um mundo sem patentes (ou com patentes?) para curar a Covid-19

Já leu
vidros de vacina enfileirados, com o rótulo indicando Covid-19

Nunca, desde o início da pandemia, ficou tão clara a desigualdade mundial e o verdadeiro apartheid que vem sendo promovido entre os países do Norte e do Sul, chamados de desenvolvidos e em desenvolvimento, do Primeiro ou do Terceiro Mundo! As discussões durante a reunião em Paris na semana que passou trouxeram à tona a necessidade de suspender temporariamente as patentes de vacinas para permitir que o continente africano tenha acesso aos imunizantes. A reunião da União Europeia realizada no Porto, Portugal, embora reconhecendo a importância da pandemia, não levantou a questão da propriedade intelectual como barreira a ser superada para assegurar acesso a novas ou antigas tecnologias para enfrentá-la. Da mesma maneira, a reunião do G-20 em Roma, embora apoiando as iniciativas implementadas pela OMS, também deixa de mencionar a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual em discussão atualmente na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Nesses confrontos de ideias, percebemos com clareza que, novamente, se encontram em discussão os mecanismos voluntários em contraposição ao licenciamento compulsório para assegurar acesso das nossas populações às tecnologias necessárias. Já abordamos anteriormente essa discussão em curso na OMC e a polarização entre o apoio à suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual ou os licenciamentos voluntários, que na nossa maneira de ver, nunca são suficientes nem abrangentes. Depois da proposta apresentada em outubro de 2020 pela Índia e África do Sul, e hoje patrocinada por um grupo de 62 países, esses mesmos países reiteraram na OMC seus compromissos, e, pela abrangência da proposta, minimizando as versões de que, com o apoio dos EUA, a suspensão temporária deveria se limitar a vacinas (ver aqui).

 

Gordon Brown [ex-primeiro ministro britânico) anuncia com estardalhaço que o G7 deve abastecer a vacinação do mundo. Não deixa de ser uma atitude colonialista, mantendo e perpetuando o monopólio das empresas transnacionais e, portanto, a financeirização e precificação de seus produtos

O artigo assinado pelo ex-primeiro ministro do Reino Unido Gordon Brown, no Financial Times (21/05/2021) deixa claro que os interesses dos países do G7 não correspondem aos  interesses e necessidades expressos pelo grupo de 62 países na OMC, de suspender temporariamente a propriedade intelectual para permitir e assegurar uma expansão na capacidade de produção mundial de vacinas para abastecer o mundo. Mais nos parece que os países do G7 expressam o objetivo de manter o conhecimento e o monopólio da produção entre os países ricos, aumentando sua capacidade de produção, mas, certamente, mantendo o controle da produção mundial. Gordon Brown anuncia com estardalhaço que o G7 deve abastecer a vacinação do mundo. Não deixa de ser uma atitude colonialista, mantendo e perpetuando o monopólio das empresas transnacionais e, portanto, a financeirização e precificação de seus produtos.

Depositamos nossa confiança em que a Assembleia Mundial da Saúde, que começa hoje, 24 de maio de 2021, e vai até 1º de junho, venha reforçar nossas lutas e convicções, sempre na busca de um mundo melhor

Os anúncios de promover doações de vacinas pelos países que adquiriram excedentes às suas necessidades, a eliminação de barreiras comerciais e regulatórias para a exportação de insumos necessários à produção, mas sem menção aos mecanismos de transparência há muito tempo preconizados e buscados, fazendo-se ainda a apologia aos mecanismos de licenciamento voluntário e transferência de tecnologia, deixam clara a busca de legitimar a terceira via proposta pela diretora-geral da OMC, consistente em incentivar mecanismos de transferência de tecnologia, assumindo mecanismos voluntários que em nenhum momento deixaram de atender a interesses específicos, inclusive definindo escopo geográfico que sempre excluiu os países de renda média, exemplos muito claros no passado recente.

Sabemos que não haveremos de encontrar uma única solução para assegurar o acesso a tecnologias para toda a população mundial, mas temos que levar em consideração que nossas populações sofrem discriminações que a sociedade e, em especial, os governos ultraliberais, vêm impondo, com aumento de iniquidade e desemprego, que vem gerando maior pobreza.

Vamos lembrar que as propostas hoje em curso na OMS e que também se refletem no Brasil, propondo a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual, não se referem especificamente às vacinas, mas a todas as tecnologias relacionadas com a pandemia, assegurando o compromisso com a saúde como direito de todos e dever do Estado, conforme afirma nossa Constituição.

Nesse sentido, propomos apoiar, no Brasil e no mundo, as propostas que pretendem promover alterações legislativas que nos permitam agilizar as medidas necessárias para assegurar o acesso a tecnologias e medicamentos às nossas populações como direito humano fundamental! Assim, depositamos nossa confiança em que a Assembleia Mundial da Saúde, que começa hoje, 24 de maio de 2021, e vai até 1º de junho, venha reforçar nossas lutas e convicções, sempre na busca de um mundo melhor!

Jorge Bermudez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas e pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz.

 

 

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