Relações entre médicos e indústria – hora de outro olhar?
Em artigo publicado no jornal da American Medical Association (Jama), a médica Carolyn Becker, do Brigham and Women’s Hospital, de Boston (EUA), traz à tona a recorrente disputa entre os interesses do mercado – e, nesse caso, pessoais – e a garantia do direito à saúde às populações, bem como a imbricação entre médicos e indústria farmacêutica e interesses nada sociais envolvidos na produção de vacina contra a Covid-19. A médica, que relata ter participado como voluntária de ensaio clínico de fase 3 – de avaliação de eficácia e confirmação de segurança – da vacina no hospital em que trabalha, observou que executivos da empresa fabricante venderam ações extras no momento em que os primeiros comunicados à imprensa positivos foram publicados e, em seguida, venderam ações adicionais após a publicação do estudo de fase 2.
“À medida que os preços das ações disparavam, esses executivos ganharam pessoalmente milhões de dólares”, escreve Becker, acrescentando que as vendas não foram consideradas negociações privilegiadas porque haviam sido planejadas com antecedência, mas que ficara surpresa com o fato de os executivos poderem colher “lucros extravagantes de uma vacina não comprovada e não testada, especialmente durante uma pandemia global”. Ela destaca, ainda, que a presidente do hospital no qual trabalha e que realiza os testes para a vacina era membro do conselho de administração da empresa fabricante e não renunciou ao conselho, mesmo depois de o hospital ser definido como principal local de teste para o ensaio da vacina da empresa. “A mera aparência de um conflito de interesses era bastante perturbadora para mim e outras pessoas que trabalham no hospital”, considera.
A presidente do hospital acabou renunciando ao conselho de diretores da empresa, relata Carolyn Becker, o que não explica por que se manteve inicialmente nessa função. "Como presidente de um grande centro médico acadêmico sem fins lucrativos (AMC), pelo qual é bem remunerada, seu trabalho é defender a saúde do hospital e das pessoas que atende, enquanto a responsabilidade fiduciária de um membro do conselho dos diretores de uma empresa é defender os acionistas, o crescimento e os lucros da empresa”, pondera.
Ainda como membro do conselho de administração da empresa, relata também Carolyn Becker, a presidente do hospital recebeu um “pacote de remuneração” que incluía pagamento anual e opções de ações, a partir de dezembro de 2018 (após a abertura do capital da empresa). “Quando o valor das ações quadruplicou durante o pandemia, ela conseguiu ativar duas vendas de ações “pré-programadas” avaliadas em mais de US $ 8 milhões. Mais tarde, se a vacina se mostrasse segura e eficaz, ela poderia vender ações adicionais e obter benefícios financeiros adicionais”, escreve.
Carolyn destaca que essa não se trata de uma situação única. Os laços entre líderes de centros acadêmicos de pesquisa sem fins lucrativos e empresas biomédicas com fins lucrativos vêm aumentando há anos. Ela cita pesquisa de 2015, com 446 empresas de saúde americanas de capital aberto, que descobriu que quase 10% das diretorias dessas empresas eram ocupadas por “líderes acadêmicos”, enquanto 41% das empresas tinham pelo menos um diretor acadêmico em seu conselho. “Membros dos conselhos de administração dessas empresas vieram dos mais altos escalões da academia”.
Esse tipo de relação entre indústria e acadêmicos, observa a médica, não só traz “prestígio, credibilidade, maior investimento de capitalistas de risco e oportunidades de colaboração científica”, como garantem acesso das empresas a “defensores poderosos”. Ela apresenta como exemplo artigo publicado pela mencionada presidente do hospital no qual trabalha, posicionada contra a redução dos preços dos medicamentos, sob a justificativa de que isso representa uma ameaça ao ecossistema de inovação e poderiam eliminar os incentivos financeiros que permitem cientistas de pesquisa explorar novos tratamentos. “No artigo, ela [a presidente do hospital] também se referiu ao processo de desenvolvimento de medicamentos como repleto de falhas e, portanto, incrivelmente arriscado e caro, para justificar preços excessivamente altos dos medicamentos”, observa, ainda, Carolyn.
Para a médica, um olhar mais atento sobre o desenvolvimento de vacinas pela empresa em que a presidente do hospital atuou como conselheira mostra o oposto. “Grande parte da pesquisa básica e pré-clínica para a vacina Sars-CoV-2 da empresa foi feita por cientistas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e outras instituições acadêmicas com dólares do contribuinte”, escreve Carolyn. “Os executivos da empresa já haviam ganhado milhões de dólares com a alta dos preços das ações antes de a vacina entrar no teste final; e o governo dos EUA, sob a Operação Warp Speed, comprometeu US$ 2,4 bilhões de dólares do contribuinte para apoiar o ensaio de fase 3 e a produção de vacinas. É uma situação sem perdas para a empresa e dificilmente um negócio arriscado”, considera.
O caso ilustra como atuar no conselho de diretores da indústria pode ser percebido como uma distorção do julgamento e das prioridades dos líderes dos AMCs. Ele também ilustra em microcosmo a tremenda transferência de riqueza do público (dólares do contribuinte) para os cofres corporativos privados, mesmo quando a infraestrutura de saúde pública continua subfinanciada. Ao adicionar líderes influentes de centros médicos de prestígio a seus conselhos de administração, a indústria coopta e desvia esses líderes de se tornarem críticos da indústria ou progressistas, agentes vocais de mudança para um sistema de saúde mais justo.
Para a médica, a única maneira de evitar esses conflitos em potencial talvez seja proibir completamente os líderes de Associações médicas acadêmicas sem fins lucrativos de ocupar cargos de diretoria fora do setor com fins lucrativos.
“A pandemia Covid-19 puxou a cortina sobre as incríveis desigualdades raciais, socioeconômicas e de saúde nos EUA. É hora de perguntar quais valores os indivíduos nos Estados Unidos têm como sociedade e quais valores devem ser esperados de seus líderes”, defende. “Acredito que os líderes dos centros médicos acadêmicos deveriam encerrar relações de interesse próprio com a indústria e, em vez disso, se tornar defensores francos e descomprometidos do atendimento universal à saúde, preços acessíveis de medicamentos e saúde pública acima do lucro”.
Leia a íntegra do artigo publicado no Jama (em inglês)