Estratégia Federal de Desenvolvimento: contradições e o necessário engajamento de governo e sociedade
Muitos estranharam a recente publicação do Decreto nº 10.531/2020, que instituiu a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031. Trata-se de uma versão mais enxuta e adaptada da Estratégia Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Endes), elaborada em 2017/2018 para atender a uma recomendação do Tribunal de Contas da União quanto à necessidade de um documento de planejamento de médio/longo prazo que oriente o planejamento de curto prazo consolidado nos Planos Plurianuais (PPA).
A troca do termo Nacional por Federal teve a intenção de evitar questionamentos sobre a opção por publicar o documento como decreto (ao invés de lei), sem debatê-lo com o Congresso Nacional, os entes subnacionais e a sociedade civil. Para além das controvérsias jurídicas que essa opção possa suscitar, dois aspectos precisam ser ressaltados.
O primeiro é que a troca do Nacional por Federal não é uma questão meramente semântica. Quem ler o decreto notará que quase nada do que lá está escrito é de responsabilidade exclusiva ou principal do Poder Executivo Federal. Desde a sua origem, a Endes foi concebida como documento de abrangência nacional, exigindo para tanto a pactuação de atores indispensáveis para a sua implementação. Qual engajamento podemos esperar dos governos e da sociedade brasileira para colocarem em prática orientações estratégicas divulgadas por meio de um decreto que não conta com a assinatura de nenhum dos ministros palacianos e que sequer motivou a realização de uma solenidade pública com participação dos chefes de poderes e ministros (sem falar nos governadores e representantes da sociedade civil)?
O segundo aspecto a ser observado diz respeito às contradições internas ao próprio Decreto nº 10.531/2020. Dele constam formulações interessantes, como a Diretriz Principal (“Elevar a renda e a qualidade de vida da população brasileira com redução das desigualdades sociais e regionais”) e diversas orientações delas decorrentes, tais como: “ampliar redes de proteção social às famílias e aos indivíduos”, “prover melhor infraestrutura nas regiões menos desenvolvidas”, “incentivar atividades econômicas de uso sustentável da floresta e da biodiversidade”, “induzir cadeias produtivas estratégicas orientadas à agregação de valor e à diversificação econômica”, “incentivar o desenvolvimento da indústria 4.0” e “melhorar a competitividade da indústria da saúde, reduzindo a dependência externa, com o desenvolvimento e a produção de vacinas, medicamentos, insumos e equipamentos médicos”.
Iniciativas recentes de planejamento de médio/longo prazo, como o Brasil 3 Tempos, o Estudo da Dimensão Territorial para o Planejamento, o Brasil 2022 e o Brasil 2035, também apresentaram formulações semelhantes, o que reflete um importante acúmulo de experiências na área de planejamento no país. Todas essas tentativas de orientar o planejamento governamental em escala nacional foram prejudicadas, no entanto, pela subordinação dos objetivos de médio/longo prazo aos objetivos de curtíssimo prazo da gestão macroeconômica. Com a Estratégia Federal recém anunciada dificilmente será diferente.
A alternativa de ampliar os gastos públicos para colocar em prática as orientações estratégicas de médio/longo prazo, dinamizando a economia, gerando empregos e promovendo a inclusão social, simplesmente é descartada
Como o próprio Decreto nº 10.531/2020 informa, todos os três cenários que referenciaram a elaboração da Estratégia Federal partem da mesma premissa: se o Brasil não aprofundar a agenda de corte dos gastos públicos será punido pelo mercado, a dívida pública entrará numa trajetória explosiva etc. A alternativa de ampliar os gastos públicos para colocar em prática as orientações estratégicas de médio/longo prazo, dinamizando a economia, gerando empregos e promovendo a inclusão social, simplesmente é descartada. Tais cenários foram concebidos em 2017/2018 para justificar reformas como a trabalhista e previdenciária. Acontece que tais reformas já foram feitas, assim como já tinha sido aprovada a emenda constitucional que instituiu o teto de gastos primários da União, e o Brasil continua apresentando baixo crescimento econômico, alto desemprego e todos os demais problemas que os defensores dessas reformas diziam que seriam por elas mitigados ou sanados. Qual a solução sugerida por esses cenários? Continuar fazendo tudo que agrada o mercado financeiro para, quem sabe um dia, os agentes privados ampliarem seus investimentos e o Brasil voltar a crescer e gerar empregos.
Não há, contudo, evidência empírica ou histórica de que isso irá acontecer. O que a experiência brasileira e mundial demonstra é que os agentes privados só investem em atividades produtivas quando têm expectativas concretas de encontrar quem compre os bens e serviços por eles ofertados. Estados Unidos, China e todas as demais grandes economias nacionais mobilizaram e continuam mobilizando a iniciativa privada a partir de encomendas e demais incentivos governamentais orientados pelas respectivas estratégias nacionais de desenvolvimento. Enquanto isso, o Brasil segue preso a restrições fiscais autoimpostas (regra de ouro, meta de resultado primário e teto de gastos) que impedem na prática a implementação de qualquer estratégia de desenvolvimento de fato comprometida com os objetivos fundamentais da República, expressos no art. 3º da Constituição Federal.
Em suma, o que há de positivo na Estratégia Federal recém-anunciada não tem risco de ser alcançado até 2031, ou qualquer outro horizonte temporal, enquanto o planejamento de médio/longo prazo seguir subordinado aos objetivos de curtíssimo prazo impostos por regras fiscais anacrônicas e disfuncionais como as vigentes no Brasil.
* Analista de Planejamento e Orçamento do Governo Federal desde 2004. Economista (UFRJ), mestre em Geografia (UnB) e doutor em Geografia (UFRJ).