Entre o medo do coronavírus e o cansaço do isolamento social

Entre o medo do coronavírus e o cansaço do isolamento social

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Publicado no Huffpost, por Davi Rocha.

Você está com a sensação de que essa situação de pandemia não vai acabar nunca? Pois é, eu também estou. Meus amigos e parentes também estão. Talvez os seus também estejam assim. A sensação de que está “todo mundo” cansado e mais ansioso pode não ser só uma impressão e coisa da sua cabeça. Claro, todo mundo é muita gente, e não há estatística que prove isso, mas faz sentido.

E pode ser um bom sinal de que você ainda está vivo e ainda tem sentimentos.

“Lendo todas essas notícias é normal uma pessoa ficar ansiosa ou até um pouco mais deprimida. E aí, em um dia ou outro a pessoa não dorme bem, mas depois volta ao normal. Até seria estranho alguém não ficar ansioso com tudo isso, não desenvolver esses sintomas”, explica o médico psiquiatra André Brunoni, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP)

O professor é um dos pesquisadores que está mapeando os efeitos da pandemia do novo coronavírus na saúde mental da população. Ele é coordenador do grupo que trabalha em uma ampla pesquisa chamada Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto – ELSA Brasil. A pesquisa é realizada desde 2008 e monitora a saúde de 15 mil funcionários públicos de seis universidades e centros de pesquisa nacionais. Por ser uma pesquisa tão longa, vai ser possível comparar os momentos pré e pós-pandemia.

O estudo ainda está em andamento, mas por sua experiência, Brunoni já consegue fazer algumas leituras do momento presente e destacar algumas possíveis complicações na saúde mental da população para o futuro.

Antes de seguir este texto, te adianto que tudo que o professor diz é negativo e motivo de pânico, trevas e tristeza. E que vale a pena entender um pouco do que ele está estudando para olharmos para nós e nos cuidarmos.

Por isso, vamos voltar a falar sobre a ansiedade do momento atual. Brunoni indica em que momento algumas mudanças ruins na rotina podem se transformar em algo que exija cuidados médicos.

Isso vira um transtorno, que é basicamente quando tem um conjunto de sintomas, quando a pessoa tem a sensação de estar no limite o tempo todo. Não dormir direito, ficar a maior parte do tempo focando só nisso, não conseguir desempenhar as atividades do dia a dia. Quando começa a limitar muito a vida isso pode ser um diagnóstico de depressão.

De acordo com a pesquisa ELSA Brasil, os dados de antes da pandemia indicavam que entre 20% e 30% dos paulistanos sofriam de ansiedade e entre 5% e 10% tinham depressão. De acordo com dados de 2019 da OMS, 9,3% da população brasileira sofre de ansiedade e 5,8%, de depressão.

Não sabemos o quanto esses percentuais mudaram. “Entre ter o sintoma e desenvolver a doença é um caminho longo, é algo acumulativo. Todo dia é uma gota d’água em um copo que vai ficando fundo”, detalha Brunoni.

O que se sabe é que quem já tinha problemas de saúde mental está sofrendo mais com essa crise. “Pessoas com depressão, ansiedade, dependência química estão sofrendo mais durante a pandemia. Já são pessoas que têm uma saúde mental mais frágil e já sofrem mais com efeitos negativos de uma maneira geral. Se a gente pensar não só na covid, mas quando tem um evento como uma morte de alguém ou uma separação, esse tipo de coisa, essas pessoas costumam sofrer mais”, explica Brunoni.

Mas o professor alerta que os pesquisadores trabalham com a hipótese de que tenhamos num futuro distante uma quarta onda de covid-19. Caso você não se lembre, as chamadas ondas se referem aos gráficos de pessoas infectadas pelo novo coronavírus em determinados países.

Quando surgiu a pandemia falou-se na possibilidade de termos uma onda de muitos casos, depois os casos diminuírem e em seguida termos uma nova onda com centenas ou milhares de casos da doença. Isso é algo que observamos em países como Espanha e Canadá.  "Casos de covid-19 na Espanha. São mais de 285 mil diagnósticos no país, que enfrenta um aumento recente no número de novos casos, o que caracteriza uma segunda onda da doença. No Canadá. São mais de 117 mil diagnósticos no país, que enfrenta um pequeno aumento recente no número de novos casos, o que caracteriza uma segunda onda da doença".

 

A quarta onda seria uma grande crise de saúde mental, com um grande número de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais.

“Começou a ser discutido em alguns grupos a ideia de uma quarta onda, uma onda que viria bem depois de uma possível segunda e terceira onda de complicações mais imediatas da covid. Seria uma onda da saúde mental, que não começa agora. Pessoas que não tinham transtornos mentais passariam a ter”, explica o professor.

Como a doença era muito nova nem mesmo os pesquisadores entendiam todas suas características e com o passar do tempo essa quarta onda teve seu conceito ampliado para outras sequelas físicas da própria covid-19. “Estamos vendo relatos da Europa de que pessoas que tem a covid ficam com sequelas de alguma maneira. Já saíram estudos mostrando que cerca de 30 dias depois do fim da covid cerca de 80% das pessoas mantém algum sintoma, entre eles a fadiga e dispnéia do sono são os mais comuns.”

Outra possibilidade é termos um aumento muito grande em complicações neuropsiquiátricas e alterações de comportamento por causa da ação do vírus no sistema nervoso central. “As principais seriam as alterações de cognição. Ou seja, alterações de memória, de atenção, de memória de trabalho, esse tipo de alteração que parece que ocorre. Mas felizmente é pequeno, cerca de 1% das pessoas apresentam essa mudança.

De qualquer forma, Brunoni alerta que qualquer número relacionado à pandemia é algo gigante. “Claro que quando a gente fala de uma pandemia, mesmo 1% é um número grande. Essas complicações de longo prazo já estão sendo percebidas”, diz.

Mesmo sendo uma hipótese e algo para o futuro, é um alerta para que você tenha um pouco mais de atenção com sua própria saúde mental. Se observe, observe seu ao redor, respeite seus limites, ouça os sinais da sua mente e corpo e, se precisar, peça ajuda. Isso vale já para a retomada de uma vida fora de casa, o que muita gente está chamando de “novo normal”.

 

Os cuidados e os sintomas para se observar no novo normal

No Brasil a sensação de “pelo amor de Deus, mas quando que isso finalmente vai acabar???” do começo deste texto está misturada com dois dados constantes e preocupantes. Um deles é a retomada gradual da vida fora do isolamento social enquanto o número de casos aumenta a cada dia e as mortes passam de mil por dia.

Parece uma combinação assustadora e que requer muita atenção. As pessoas estão cansadas de ficar em casa em isolamento social e também com medo de sair na rua e pegar o vírus.

“Tenho ouvido de pacientes relatos do tipo ‘eu não aguento mais ficar em casa’ e até ‘prefiro pegar logo covid do que ficar em casa trancado pra sempre’. Eu acho que a gente tem que tomar cuidado com a saúde mental dos dois pólos, das pessoas que estão em casa e querem sair e das pessoas que estão se expondo cada vez mais. É um período de vulnerabilidade maior para todos.” Para o professor André Brunoni, a leitura do cenário traz pontos bons e ruins.

Do ponto de vista da saúde mental, a retomada da vida tem pontos positivos e pontos negativos. Tem esse medo de sair. Quando a pessoa sai e vê todo mundo de máscara, vai num restaurante com medo de se contaminar, isso resulta em um aumento de estresse. Por outro lado, podendo sair, as pessoas estão procurando válvulas de escape e para a saúde mental isso mostra uma resiliência. Resiliência é quando a pessoa passa a saber superar de uma maneira ou de outra as adversidades com que elas estão lidando.

Ele destaca alguns pontos positivos para a rotina como poder fazer exercícios físicos fora de casa - com máscara, todos os equipamentos de segurança e distanciamento, claro - e a volta ao trabalho como uma retomada da rotina e aumento da interação social.

Mais atividades de interação social também podem acontecer em meio a um grande medo do vírus e das ações de rotina. Neste caso, Brunoni alerta para a possibilidade das pessoas desenvolverem o que a psicologia chama de agorafobia.

“É basicamente o desconforto de ficar em espaços públicos. Não é relacionado exatamente a um medo de infecção, de um contágio, nada disso. É uma insegurança de ficar fora de casa, sempre com a necessidade de voltar pra casa o tempo todo”, explica.

“Hoje em dia por conta da situação que nós vivemos é até difícil fazer este diagnóstico, ele é mais sutil. Será que ter medo de sair de casa por se contaminar seria um sintoma de transtorno mental ou não? Se a pessoa é de um grupo de risco ou porque um parente próximo faleceu por causa da covid seria justificável? É algo para se pensar caso a caso”, contextualiza Brunoni.
Neste novo cenário, de flexibilização do isolamento, Brunoni alerta para a possibilidade das pessoas desenvolverem o que a psicologia chama de agorafobia, que é basicamente o desconforto de ficar em espaços públicos.

Esse comportamento, no entanto, não pode ser naturalizado num futuro em que a doença estiver controlada no Brasil. “Se no futuro, quando desenvolverem uma vacina e as coisas já estiverem mais controladas, ou não desenvolvam uma vacina e tenhamos, sei lá, zero casos por dia em São Paulo, e mesmo assim a pessoa não continuar querendo sair de casa, aí podemos pensar em um diagnóstico psiquiátrico”, diz. “Com a pesquisa que estamos fazendo, queremos descobrir se esses medos vão virar transtornos mentais. Se aquela pessoa que não tinha nada vai se tornar uma pessoa insegura, se vai perder o prazer de fazer as coisas na vida. Isso que a gente quer ver”, detalha Brunoni.

 

A necessidade de olhar para os profissionais de saúde

Se na população saudável ainda existe a dúvida se a covid-19 vai causar mais transtornos de ansiedade, depressão e outras doenças psíquicas, nos profissionais da saúde isso é algo certeiro, devido à grande exposição ao estresse por estar na linha de frente da doença.

“São pessoas muito expostas a situação de tensão, numa analogia seria um civil convivendo numa zona de guerra, todo dia vendo mortes e destruição. Esses profissionais de saúde estão com taxas altas de ansiedade”, explica Brunoni. Como já foi assunto no Tamo Junto, esses profissionais vão precisar ter a saúde mental monitorada por muito tempo, pois sua atuação pode trazer sequelas graves para a saúde mental.

Uma das possibilidade é o aumento do alcoolismo. Em 2004, a epidemia de SARS (outro tipo de coronavírus) levou a um sério aumento no consumo de álcool um ano depois do fim do surto da doença em Hong Kong. Uma pesquisa mostrou que 4,7% dos homens e 14,8% das mulheres do país passaram a beber mais. O número é 1,5 vez maior entre profissionais de saúde que atuaram na linha de frente contra o vírus da época.

Não sabemos o que vai acontecer quando essa pandemia passar, mas é importante olhar para o passado para ficar em alerta sobre o futuro, como explicou Zila Sanchez, professora da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

“Em diversos episódios de pandemia, terremotos, desastres naturais e crises econômicas sérias, o alcoolismo persistiu após a superação desses eventos. E ainda aumentou a taxa de pessoas dependentes de álcool um ano depois. Tudo indica que o nosso sistema de saúde vai ter de enfrentar essa situação daqui a alguns anos, decorrente do que está acontecendo hoje.”