Os dragões da maldade e os santos guerreiros: indústria da doença na pandemia – por Jorge Bermudez

Os dragões da maldade e os santos guerreiros: indústria da doença na pandemia – por Jorge Bermudez

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Com a crise desencadeada pela pandemia em escala mundial e a impossibilidade de eventos de massa presenciais, está  sendo realizada pela primeira vez de maneira virtual, a partir de San Francisco e Oakland, Califórnia, EUA, a 23ª Conferência Internacional de Aids, programada para 5 a 10 de julho de 2020 (AIDS 2020), evento que sempre reuniu representantes da academia, governos, sociedade civil, grupos de interesse, indústria farmacêutica, imprensa e tantos outros da nossa sociedade, organizados em função da Aids e suas comorbidades, mas hoje acrescentada de hepatites virais e a Covid-19. Nesse evento, sempre entraram em discussão as conquistas científicas mais recentes, normas e esquemas de tratamento, medicamentos e abordagens  inovadoras com um envolvimento mágico, a cada dois anos, de consensos e dissensos, críticas, campanhas e debates.

Acertadamente, o tema central em discussão na conferência de 2020 é RESILIÊNCIA, considerando ainda o momento crucial que o mundo atravessa e a capacidade de resposta às mudanças impostas pela pandemia de Covid-19, que chega próximo à marca dos 12 milhões de casos conhecidos no mundo e nos impondo severas restrições e vidas perdidas.

Enquanto no mundo inteiro se fortalecem as iniciativas de solidariedade e as tentativas de lidar com eventuais medicamentos e vacinas como bens públicos globais, essa discussão tem estado permanentemente presente nos foros do G-20, das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e até na Organização Mundial do Comércio. A esse respeito já nos referimos anteriormente (ver aqui e aqui), e convencionamos o título deste artigo reverenciando esses que podemos considerar como os santos guerreiros. Temos mantido uma postura crítica aos mecanismos de caráter voluntário, que acabam excluindo os países de renda média do acesso a tecnologias de enfrentamento da pandemia, direcionando seus esforços aos países de baixa renda, atitude louvável, mas não suficiente e, muitas vezes, não relacionada com critérios epidemiológicos, excluindo, portanto, parcelas de populações. Nossos países na região das Américas têm sido permanentemente excluídos em iniciativas voluntárias, salvo raras exceções.

Por não haver ainda medicamentos efetivamente capazes para tratar a Covid-19, surgem especulações e pressões de toda ordem – como autoridades no Brasil têm sido pródigas em anunciar despudoradamente. Já mencionamos em artigo anterior que, respaldado pelo fato dos EUA terem autorizado o Remdesivir para uso emergencial no tratamento da Covid-19, o detentor da patente, a empresa Gilead Sciences, de capital norte-americano, além de estar pleiteando proteção patentária em cerca de 70 países, autorizou a produção genérica e definiu um escopo geográfico de 127 países a adquirirem esse produto a preços reduzidos, excluindo o Brasil e a maioria dos países da América Latina dessa possibilidade.

Em nítida contraposição à solidariedade buscada nas iniciativas discutidas mundialmente em todos os grandes foros, a volúpia da Gilead, que aqui podemos considerar como o dragão da maldade, e a nítida ruptura na relação entre custos e preços, agride o momento dramático que o mundo enfrenta, as populações mais necessitadas e menos favorecidas, muitas delas negligenciadas e vulneráveis. Agride desnecessariamente um movimento que tenta buscar um rumo uníssono e proteger vidas humanas e a saúde pública, novamente contrapondo saúde aos interesses comerciais imediatos. Agride também pela reincidência em fixar arbitrariamente preços abusivos descolados dos custos de produção efetivos.

A Gilead já foi alvo de críticas no passado, nos EUA, pelos preços elevados que cobrou para o Truvada, medicamento utilizado em profilaxia pré-exposição (PrEP) em HIV/Aids. Enquanto as versões genéricas custam menos de 6 dólares mensais em outros países, os EUA pagam 1,6 mil dólares mensalmente, tornando o produto muito menos capaz de ser utilizado. Sem falar na alegação de que a pesquisa clínica para seu desenvolvimento foi financiado por recursos outros que não da empresa farmacêutica.

De maneira também considerada desrespeitosa, ao lançar o Sofosbuvir como tratamento efetivo levando à cura da hepatite C no final de 2013, houve especulações com relação aos preços pretendidos e a Gilead acabou fixando arbitrariamente o preço de 84 mil dólares pelo curso de tratamento, em nítido descompasso entre custo e preço. A esse respeito e nas polêmicas envolvendo a proteção patentária do Sofosbuvir no Brasil, já nos manifestamos em diversas oportunidades, apenas lembrando que, utilizando manobras jurídicas, a Gilead mantém o monopólio do fornecimento desse produtos ao SUS.

Mais recentemente e de maneira insólita, já na vigência da pandemia de Covid-19, o CEO da Gilead justificou que a redução de quatro dias de hospitalização, efeito aparente do Remdesivir nos casos de Covid-19, economizaria cerca de 12 mil dólares por paciente, portanto, mais do que o preço anunciado para a comercialização do produto nos países não cobertos pelo sublicenciamento (3.120 dólares pelo curso de tratamento). Para os 127 países incluídos no escopo geográfico definido unilateralmente pela empresa, os valores devem ficar em torno de 600 dólares pelo curso de tratamento.

Cabe lembrar que, desde março 2020, mais de 150  organizações e ativistas no mundo inteiro solicitam que a Gilead abra mão dos direitos exclusivos deste produto. Uma grande campanha também foi evidenciada nos espaços virtuais da Conferência Internacional de Aids, criticando severamente o monopólio pretendido e praticado pela Gilead.

Como avaliar esse comportamento dos dragões da maldade, nos tempos em que o mundo clama por solidariedade e por alternativas emergenciais ao lidar com uma excepcionalidade? Volúpia? O confronto entre saúde e comércio...

Cada vez mais presentes, vemos os termos de bens públicos globais sendo pronunciados e consensuados nos tempos de pandemia, considerados aqueles que têm que restringir os direitos de propriedade, revendo os conceitos de propriedade intelectual, monopólios, proteção patentária e propriedade individual e transformando os medicamentos, as vacinas, as tecnologias e dispositivos para a resposta ao coronavírus e a Covid-19 como bens e utilidades de interesse público, como direitos coletivos e, p