As interfaces e as ‘balas de prata’: tecnologias e políticas
m 1970, como parte do currículo da escola médica, frequentei a disciplina que tratava das doenças respiratórias. Seu nome era Tisiologia e Pneumologia. Apesar de estar homenageada no nome da disciplina, numa das primeiras aulas foi declarado com solenidade que ‘a tuberculose estava deixando de ser um problema de saúde pública’, e que a ênfase do curso seria o câncer de pulmão. A superação da tuberculose sustentava-se na descoberta de medicamentos eficazes contra ela e na implantação no Brasil, na década de 1950, do esquema duplo (estreptomicina e PAS) e depois triplo, sendo acrescentada a isoniazida. Eram as balas de prata que derrotariam a doença. Quanto ao câncer de pulmão, o crescimento do interesse derivava dos resultados espetaculares dos estudos epidemiológicos britânicos pioneiros (Doll e Bradford-Hill), também do início dos anos 1950, que associavam o hábito de fumar a esse tipo de câncer. Identificado o fator de risco, o caminho do controle estava aberto. Mais uma bala de prata.
O engano dos meus professores foi total. No caso da tuberculose, o aparecimento de cepas multirresistentes aos medicamentos derivada do abandono precoce do tratamento, seguido da eclosão da epidemia de HIV/AIDS nos anos 1980 levou a uma nova explosão da doença. A isso, somou-se a deterioração das condições de vida em vários lugares do planeta e o desastre ambiental. Quanto ao câncer, não foi levada em conta a sobredeterminação dos interesses econômicos da grande indústria do tabaco e das redes globais de comunicação (TV). Esses foram os grandes aliados da doença que fizeram com que seus indicadores somente tivessem alguma melhora neste século e, mesmo assim, deixando boa parte do mundo da pobreza de fora dela.
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O engano dos meus mestres residiu na subestimação da complexidade na dinâmica das duas doenças e isso deve ser expandido para todas as doenças de massa, especialmente as que se disseminam por todo o planeta. Trazendo o assunto para tempos mais recentes, essa complexidade nos reservou a ocorrência, neste início de século, de cinco epidemias (Sars/corona, Mers /corona, ebola, influenza H1N1 e Covid-19), sendo as duas últimas consideradas pandemias. Além dessas, ainda uma ameaça que não se concretizou inteiramente, da gripe aviária (influenza H5N1). Entre nós, devem ser citados ainda os surtos periódicos das arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti (que havia sido erradicado do país em 1955) e o mal explicado recente surto de febre amarela silvestre invadindo populações urbanas.
Entendo que se considerarmos que a dinâmica da pandemia de COVID 19 possa ser subsumida à interação entre um patógeno e um humano suscetível, não só não conseguiremos ter um resultado favorável em sua mitigação como também estaremos sujeitos a outras surpresas em futuro próximo. Em verdade, esses episódios se revestem de grande complexidade, e o exame das interfaces entre as inúmeras variáveis envolvidas na determinação desses episódios é essencial para um enfrentamento adequado da COVID- 19.
A esse respeito, metonimicamente, imaginei a pandemia como uma bola de futebol, esfera na qual os gomos que a constituem são unidos por costuras que, além de uni-los, também os tensionam. Bem mais do que uma justaposição, o desvelamento das interfaces e a intervenção sobre elas são partes constitutivas da organização da compreensão de um problema sanitário e da formulação das estratégias para a sua superação. Em outros termos, as interfaces são espaços de tensão e interação entre as diversas dimensões do problema, elementos essenciais em sua dinâmica e nos resultados do seu enfrentamento. Voltando à bola, suas costuras-interfaces são elementos estruturais, tão importantes quanto os gomos. Sem eles, a bola seria impossível. Sem a intervenção sobre as interfaces, o enfrentamento da COVID- 19 está condenado ao fracasso, pelo menos no sentido de sofrimento e mortes evitadas.
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Nesse texto, minha tarefa é discutir a interface tecnológico-política na dinâmica da Covid-19. São várias as suas manifestações e gostaria de iniciar com a primeira e, talvez, mais disseminada, que diz respeito às escolhas tecnológico-produtivas nas empresas globais de medicamentos, vacinas, equipamentos e testes necessários no campo sanitário. Quase nunca essas escolhas respondem a critérios científico-epidemiológicos de magnitude, gravidade e relevância social. Na verdade, na grande maioria das vezes, respondem exclusivamente a critérios de rentabilidade financeira.
Esse tipo de cálculo é o que governa a grande maioria das decisões da indústria global de produtos de saúde em relação ao que pesquisar, desenvolver e produzir. Em alguns casos, essa rentabilidade não se expressa diretamente em retornos comerciais diretos (vendas), mas a operações de marketing que projetam a empresa no cenário global. Exemplo marcante e atual dessa última modalidade está sendo operado por várias empresas que, durante a pandemia, anunciam produtos que ainda não existem e que, em muitos casos, por motivos variados não chegarão ao mercado. A escassez de novos lançamentos de antibióticos necessários a eliminar cepas bacterianas cada vez mais resistentes aos atualmente disponíveis é um exemplo.
Uma situação parecida com essa é a que faz com que linhas tradicionais de produção muito importantes em certos medicamentos de baixo custo sejam descontinuadas em virtude de sua baixa rentabilidade. Esse foi o caso da recente escassez global de penicilina benzatina, essencial para o tratamento da sífilis, que vem aumentando sua prevalência em todo o mundo. Mais recentemente (06/2019), vem outro exemplo: o Enbrel, nome comercial do Etanercepte, uma droga comercializada pela multinacional americana Pfizer bastante eficaz para controlar a artrite reumatoide. Não está mais protegido por patente, havendo genéricos na praça. Há alguns anos, a empresa teve algumas evidências de que o medicamento poderia ajudar a controlar a evolução da doença de Alzheimer, mas desistiu de seguir com os testes clínicos e escondeu as evidências. O argumento foi que eles custariam muito. Na verdade, não quiseram continuar porque como o Enbrel não está mais protegido por patentes, caso as evidências fossem confirmadas ela teria que dividir o mercado com os genéricos já existentes[1].
Esse tipo de tensão na interface tecnológico-política é resultado da própria forma de estruturação das empresas nessa longa conjuntura de financeirização global. Como regra, são empresas de capital aberto com ações negociadas em bolsas de valores e seus acionistas são investidores de tipo variado cujo comando das decisões da empresa não tem qualquer vínculo com o campo sanitário. São esses investidores que escolhem as direções executivas das empresas e no caso dessas direções não atingirem resultados financeiros esperados, serão substituídas.
Importante salientar que no espaço dessa interface costuma estar embutido um grave problema ético, que é o de abandonar o conceito fundamental de que todas as vidas valem igualmente. Isso porque sua produção é dirigida prioritariamente a mercados nacionais ou regionais cujas populações tenham renda suficiente para o consumo