O referendo constitucional boliviano de 2016: derrota de Evo ou vitória da democracia?

O referendo constitucional boliviano de 2016: derrota de Evo ou vitória da democracia?

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Talvez nenhum processo de transformação dentro do chamado giro à esquerda na América Latina tenha sido tão profundamente vinculado à participação popular quanto aquele que teve como palco a Bolívia na segunda metade dos anos 2000. Evo Morales e seu partido Movimento ao Socialismo (MAS) foram inicialmente o resultado e em seguida estiveram à frente de uma mobilização popular que fez jus às mais fortes tradições de luta do povo boliviano. Desde as guerras da água e do gás até a Constituinte refundadora, o processo se acelerou, com a derrota das forças de direita que tinham na província de Santa Cruz seu bastião. Um Estado plurinacional emergiu do processo, em que as mobilizações indígenas, assumidas como tais, e em particular as lutas dos cocaleros do Chapare consistiram na ponta de lança (eventos épicos que analisamos em A Bolívia no espelho do futuro, publicado pela UFMG em 2009).

Com todos os problemas que as épocas de transformação social evidenciam, sobretudo ao experimentarem com formas políticas novas, a democracia avançou e se consolidou na Bolívia como nunca antes. A popularidade de Evo Morales seguiu muito alta durante todo esse processo e suas reeleições se fizeram com facilidade. Ela se calca em mudanças palpáveis, se bem que nem de fundo nem radicais, da sociedade boliviana: a estabilidade e o crescimento econômico, a inclusão pelos avanços do “capitalismo andino” preconizado pelo vice-presidente Álvaro García Linera e concretizado por uma entusiasta burguesia aimara ou por via dos programas sociais, a afirmação dos indígenas, após séculos de dominação atravessada pelo racismo, ao lado do florescimento da democracia e da participação popular.

Mas logo os problemas se evidenciaram. Os companheiros que discordavam ou eram alijados dos processos internos do MAS aos poucos foram passando para a oposição, em geral à esquerda, enquanto que os setores de direita, sem propostas concretas para dirigir o país, simplesmente tentavam se aproveitar de erros e fraquezas das forças oficialistas, quer dizer, da situação. Em muito contribuíram para aquelas dissidências a secundarização da ideia de comunidade (crucial prática e intelectualmente nas lutas que levaram às mudanças dos anos 2000) e o modelo de desenvolvimento adotado, em que as populações majoritariamente aimaras impulsionaram um desenvolvimentismo tradicional e altamente voltado para a acumulação capitalista, na prática, desmentindo o compromisso com tradições andinas supostamente ecologistas – o chamado vivir bien, buen vivir ou Suma camaña. O corporativismo, o neoextrativismo, um crescente autoritarismo, um jacobinismo unitarista e centralizador – encarnado no leninismo domado porém não morto de García Linera, na prática assumido também por Morales – que se esconde, mas cada vez com menos sucesso, sob as vestes da plurinacionalidade, bem como um personalismo acentuado, criaram zonas de desgaste para essas forças, ao que se juntaram episódios pouco edificantes de corrupção.

Os conflitos portanto tampouco tardaram a surgir, com setores da esquerda, indígenas de diversas etnias – mas especialmente da Amazônia, essas ameaçadas pela estrada que cortaria o Tipnis, onde se localizam seus territórios e um importante parque nacional – e Organizações Não Governamentais em larga medida se alinhando contra Morales e o MAS. Muitos intelectuais, outrora companheiros inclusive de García Linera no grupo Comuna, se enfrentaram também a essas forças que continuam de todo modo dominantes na esquerda e na sociedade bolivianas (e reagem por vezes com virulência excessiva e desnecessária a qualquer tipo de crítica).

Nesse compasso, chegou-se ao referendo constitucional de 23 de fevereiro de 2016, por meio do qual Morales e o MAS buscavam aprovar aquilo que já passara no Congresso: a mudança da Constituição Política do Estado (CPE) que lhe permitiria e a seu vice disputar mais um mandato. Após uma campanha pouco argumentada, levada adiante com palavras de ordem pouco convincentes – denúncias e ataques se multiplicando contra Morales, ao passo que este apenas garantia ser imprescindível para que o processo de mudança seguisse adiante, bem como denunciando o neoliberalismo e o imperialismo –, a vitória do Não às mudanças propostas na CPE triunfou por pequena margem. Foram cerca de 51,3% para o Não e 48,7% para o Sim. As grandes cidades garantiram o Não, enquanto as áreas rurais majoritariamente apoiaram o Sim.

Duas coisas se depreendem desse episódio. A primeira é a maturidade da democracia boliviana. Morales segue muito popular, provavelmente fará seu sucessor e as mudanças que preconiza seguirão adiante – a despeito da mais difícil situação econômica do país e de certo isolamento inevitável na América do Sul, com as sucessivas derrotas de seus mais próximos parceiros, já ocorridas total ou parcialmente, ou por ocorrer. Essa aprovação a suas gestões e a seu papel político não se traduziu em apoio a um exercício do poder de maneira continuada e que implicava potencialmente em mais centralização e menos transparência.

Isso leva a uma segunda questão: por que as esquerdas latino-americanas tendem a personalizar tanto as lideranças dos processos de mudança, a ponto de, ao lado dos líderes que iniciam esses processos, nenhum outro conseguir efetivamente florescer, enquanto aqueles que uma vez chegaram ao poder dele não querem abrir mão de modo algum? Isso ocorreu na Bolívia agora, mas também na Argentina e no Brasil, mais indiretamente, mas nem por isso menos significativamente, sem falar do peso do grande homem, no caso bastante extremado do cesarismo chavista na Venezuela. Na Bolívia isso se somou àquela forte ainda àquela disfarçada corrente jacobina. Isso terminou levando-os a um forte desgaste e a uma derrota desnecessária.

Nesse sentido a Bolívia, assim como no curso dos processos de ascensão popular dos anos 2000, ensina hoje importantes lições à esquerda latino-americana. Se a questão do desenvolvimento já estava dramaticamente em pauta, para além daquele desenvolvimentismo e da mera retórica da Pacha Mama – a mãe terra à qual se presta homenagem –, agora se põem nela também o significado e as formas da democracia. A recusa à concentração do poder e o apoio ao pluralismo saíram vitoriosos do referendo, sem prejuízo do apoio majoritário a Morales e ao MAS. Seria muito importante que eles próprios aprendessem com a lição que nos dá seu país neste momento.

* Professor do Iesp/Uerj, pesquisador-associado do CEE Fiocruz, autor de A América Latina e a modernidade contemporânea: uma interpretação sociológica (2009) e coorganizador de A Bolívia no espelho do futuro (2009).