Lições do coronavírus para a sociedade do futuro

Lições do coronavírus para a sociedade do futuro

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A crise provocada pela epidemia de coronavírus é um golpe violento no paradigma neoliberal e mostra que se o Estado pode, por meio de solidariedade social e esforço coletivo, mobilizar recursos para vencer o vírus, pode também vencer mazelas sociais como a miséria, a falta de moradia, o desemprego, os desafios ambientais, etc. A reflexão é do professor Pedro Rossi, do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da universidade, em artigo publicado no Nexo Jornal, em 10/4/2020, produzido para a Fundação Friedrich Ebert.

Vista panorâmica de uma favela, com o céu ao fundo

Para Pedro Rossi, a guerra sanitária deve acelerar a derrocada do paradigma neoliberal: “A defesa do neoliberalismo como uma racionalidade fundada na concorrência, na luta econômica de uns contra os outros, é contraditória com o momento atual e perde cada vez mais sentido histórico”, destaca.

A partir de observações como a da primeira ministra alemã, Angela Merkel, que qualificou o enfrentamento ao coronavírus como o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial, geradora de profunda transformação no modo de organização capitalista, Pedro Rossi busca resgatar em seu texto a experiência histórica do pós-guerra e diferenciar a organização social e o papel do Estado – em uma guerra convencional e na atual guerra sanitária.

De acordo com o professor, vivemos “um momento histórico específico, único e raro” em que a crise do coronavírus “pode marcar uma inflexão, daquelas que move paradigmas e estabelece novos padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade”.

Como observa Pedro Rossi, se hoje o termo austeridade é usado para indicar o corte de gastos públicos, na Segunda Guerra, o apelo por austeridade dizia respeito às famílias. “As políticas de restrição ao consumo eram severas, e a parcimônia das famílias era necessária para fazer funcionar a máquina de guerra”, escreve. “O racionamento de bens de consumo e serviços, a restrição de acesso a matérias primas, a priorização de setores produtivos e a estatização de setores estratégicos foram observados em quase todos os países que participaram da Segunda Guerra Mundial”.

O fim dessa que foi “a experiência mais terrível que a humanidade viveu” marca também o fim de uma civilização ocidental e um recomeço, uma oportunidade de lutar por algo melhor, analisa o professor. “A lição da guerra foi justamente que a sociedade, por meio do Estado, poderia mobilizar recursos para vencer os desafios a que se propõe. No caso inglês, esses desafios estavam descritos no Beveridge Report, o plano do Partido Trabalhista, elaborado durante a guerra, que se tornou a referência dos Estados de bem-estar sociais do pós-guerra”.

Pedro Rossi observa, por outro lado, que a guerra sanitária que vivemos com a pandemia de covid-19 está longe de ser uma guerra convencional: “Enquanto a guerra convencional pressupõe a utilização intensiva dos recursos da sociedade, a guerra sanitária desmobiliza uma parte importante dos recursos para proteger as pessoas. É um resfriamento controlado da economia para permitir o isolamento social do maior número de pessoas possível”, compara.

Trata-se de um “processo envolve um tipo de organização social sem precedentes”, que prevê, ao mesmo tempo, pessoas em casa e paralisação da maior parte das atividades econômicas, de um lado, e reforço de outras atividades, as relacionadas ao combate à epidemia, e também serviços de segurança, administração pública, comércio de alimentos e medicamentos, além de toda cadeia produtiva ligada à saúde e à alimentação.

Em muitos países, assinala Pedro, as décadas de reformas neoliberais reduziram a capacidade de enfrentamento da epidemia. Ele dá exemplos: “o desfinanciamento dos sistemas de saúde pública reduz a capacidade de atendimento de infectados; os mercados de trabalho flexíveis favorecem demissões em massa; a desconstrução de redes de proteção social dificulta o envio de recursos para a população desempregada e desamparada; a ausência de instrumentos de políticas industriais e tecnológicas desfavorece o fornecimento de equipamentos e insumos para o combate à doença; o desmonte dos bancos públicos dificulta o direcionamento de crédito para empresas e famílias”.

Ainda assim, tem-se um cenário no qual, conforme descreve o autor, governos mobilizam-se para garantir salário e emprego a trabalhadores formais e renda aos informais e desempregados, bem como recursos para as empresas e estabilidade para o sistema financeiro; e redescobrem seu seu papel de indutores da produção e distribuição de recursos, forçando a mudança produtiva de setores industriais: “indústrias de tecido passam a produzir máscaras e outras vestimentas médicas, a indústria automobilística se dedica à produção de peças e equipamentos para o respirador mecânico, a indústria de bebidas se volta para a produção de álcool em gel, além de outros exemplos”.

E, ainda, na contramão da afirmação de que o dinheiro do governo havia acabado, o FMI recomenda aumentar o deficit fiscal sem preocupações com a dívida pública. “Parece que o mundo virou do avesso”, resume Pedro.

Pedro Rossi aponta três lições que deverão resultar da crise: os Estados nacionais devem investir maciçamente em saúde pública para se preparar para outros eventos desta proporção; as estruturas produtivas e tecnológicas nacionais devem ter apoio público para o desenvolvimento de setores estratégicos, uma vez que o livre comércio internacional não garante o abastecimento de produtos estratégicos para situações como a atual; e é necessário aprimorar os mecanismos de assistência social e, para isso, a renda básica universal temporária pode ganhar status de permanente em muitos países.

Este texto foi elaborado para a FES Brasil (Fundação Friedrich Ebert), e faz parte do especial “Crise da covid-19: de que políticas públicas o Brasil precisa?” Acesse a íntegra aqui