A Renda Cidadã e a reinvenção do dinheiro
Por Antonio Martins, do Outras Palavras *
Ressuscita-me, para que ninguém mais tenha
de sacrificar-se por uma casa, um buraco
Vladimir Maiakovski
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
Caetano Veloso
Nas crises agudas, o oculto – as verdades longamente sepultadas pela repetição acrítica da vida ou pela ideologia – frequentemente aflora como óbvio. Bastaram as primeiras semanas da pandemia do coronavírus para derrubar dois mitos do pensamento econômico vulgar. Não, os Estados não podem gastar apenas o que arrecadam – pois têm o poder de emitir moeda (e agora o empregam, em especial, para salvar os bancos). Sim, é possível oferecer aos seres humanos dinheiro não vinculado a trabalho. Agora, até os governos mais retrógrados o reconhecem. Nos EUA, Trump fala em um “cheque de 1.500 dólares” aos mais atingidos pela crise. No Brasil, a Câmara dos Deputados rejeitou em 26/3 uma esmola proposta por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes (“voucher” de R$ 6,66 por dia) e deu o pequeno, mas importantíssimo, passo em direção à Renda Cidadã.
Mas há dois problemas principais com esses arranjos. Primeiro, são, além de limitados no tempo, raquíticos e por isso incapazes de assegurar vida digna – em especial, em tempos de pandemia e colapso da atividade econômica. Segundo, vêm como parte menor de imensos pacotes de resgate dos cassinos financeiros. Nesse sentido, assemelham-se mais a medidas indiretas em favor das grandes empresas. A população receberá os recursos e os consumirá de imediato para saldar parcialmente dívidas e compras, permanecendo dependente e desempoderada. Enquanto isso, os Estados estão despejando volumes infinitamente maiores de dinheiro para socorrer os especuladores que fazem apostas mastodônticas nos mercados financeiros – exatamente estes que nos projetaram na crise atual. Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política.
Este texto defenderá duas ideias opostas a essa lógica – uma proposta de aplicação imediata, e uma provocação para reflexões de longo prazo. Primeiro: é preciso estabelecer uma Renda Cidadã de Emergência universal, igualitária e digna. Ela será paga em complemento – e não em substituição – aos rendimentos regulares. Seu valor deve ser suficiente para proteger os cidadãos da crise sanitária (permitindo-lhes permanecer em casa) e da provável depressão econômica (evitando que pereçam por falta de dinheiro, numa sociedade mercantilizada, ou se vejam falidos, em alguns meses).
Ou seja: mantidas as políticas atuais, o Ocidente sairá da crise com muito mais desigualdade e (ainda pior!) muito mais poder para a aristocracia financeira que há trinta anos sequestrou a economia e a própria política
Uma boa hipótese inicial sobre essa renda: R$ 100 diários, ou 3 mil mensais, para todos os brasileiros – numa primeira etapa, enquanto durar a pandemia. O valor pode parecer exagerado, à primeira vista; mas ao longo do texto ficará claro que não é. Está entre o salário-mínimo do Dieese (R$ 4.342,57) e o PIB per capita do Brasil (R$ 31.833 anuais em 2017). Para a grande maioria das famílias, essa renda representará bem mais do que recebem hoje de seus empregadores ou em seus negócios próprios (segundo o IBGE, o rendimento mensal familiar é R$ 5.426,70, mas devido à desigualdade 73% recebem menos que isso e 23,9%, menos de dois salários mínimos). Para uma pequena minoria, pouco ou nada representará (o 1% mais rico, recebe em média R$ 27,7 mil mensais; e o 0,1%, R$ 213,6 mil!). Além de salvadora, uma Renda Básica de Emergência será, portanto, um primeiro movimento de grande relevância para reduzir a desigualdade abissal que marca o Brasil há 500 anos.
De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro. Elas serão movimentadas por meio de aplicativo (os menos habilitados digitalmente receberão cédulas impressas pela Casa da Moeda e entregues por estafetas dos Correios). Os Reais Sociais terão, assim como o dinheiro tradicional, curso forçado – ou seja, o mesmo poder de compra e a aceitação obrigatória que caracteriza o dinheiro comum.
Mas é possível criar moeda a partir do nada? Esta questão nos remete à parte mais instigante – e mais potencialmente transformadora – do argumento. Quase toda a moeda contemporânea é criada a partir do nada. A crise tornou evidente essa verdade, pouco visível em tempos normais. Em 12 de março, quando os tremores dos mercados financeiros se acentuaram, o Banco Central dos EUA (Federal Reserve, ou Fed) anunciou, sem um segundo de debate no Congresso ou com a opinião pública, a primeira grande intervenção de resgate. Criou-se, a partir do nada e sem alterar uma virgula no orçamento do país, 1,5 trilhão de dólares, para socorrer as corporações e bancos em crise. Desde então, os bancos centrais de todo o mundo têm anunciado que produzirão quantidades ilimitadas de dinheiro, para salvar os especuladores e manter os cassinos funcionando. No Brasil, a equipe de Paulo Guedes já anunciou um pacote de medidas que têm natureza diversa mas que, eu seu conjunto, permitem aos mercados financeiros utilizar R$ 1,2 trilhão – o que significaria R$ 6 mil para cada brasileiro. A saída dos Estados, para preservar o cassino global que sequestra as economias, é proteger (e enriquecer ainda mais) os especuladores cuja cobiça alimentou a crise.
De onde virá este dinheiro? – é a questão que imediatamente se coloca. E a resposta deve ser igualmente imediata e clara: será criado a partir do nada! Nenhum centavo sairá da Saúde e Educação, das obras de infraestrutura, da Previdência ou dos salários dos servidores civis ou militares. O Banco Central depositará 700 Reais Sociais (S$ 700), a cada domingo, em contas individuais criadas diretamente – sem intermediação dos bancos privados – para cada brasileiro
A alternativa exige romper um tabu. É preciso reinventar a moeda. Nosso artigo mostrará que ela perdeu mais aceleradamente que nunca, nos últimos trinta anos, o caráter de unidade de conta. Esse termo técnico designa o aspecto de comum presente no dinheiro. Ele é o lubrificante necessário para fazer girar a produção e circulação de riquezas. Viabiliza uma miríade de relações econômicas e sociais que, sem ele, seriam árduas e desnecessariamente complicadas: comprar uma camisa, vender um trabalho de edição de vídeo ou alugar uma casa, por exemplo.
Mas o dinheiro é, ao mesmo tempo, reserva de valor e, nessa condição, ferramenta de desigualdade e alienação. Ele consolida, amplia a multiplica as diferenças de riqueza. Subordina os que não o possuem às ordem dos que o concentram. Naturaliza essa submissão: se trabalho numa fábrica de minas terrestres, que serão utilizadas para matar crianças numa guerra, faço-o por dinheiro – para sustentar minha família e a mim mesmo.
Hoje, esse segundo caráter da moeda soterra e sufoca quase completamente o primeiro – de Bem Comum. A necessidade de dinheiro nos condena ao trabalho cada vez mais insano. As dívidas condicionam todos os nossos planos. Como se verá, isso não ocorre apenas devido a ações como as do Fed. São os bancos privados, hoje, que corriqueiramente criam – do nada – quase toda a moeda. É aristocracia financeira que a concentra e controla. Desfazer esta imensa distorção exigirá transformar todo o sistema monetário e financeiro. A Moeda-Comum e os Bancos Públicos serão chave. Mas a Renda Cidadã de Emergência pode ser o deflagrador. A crise sanitária e econômica ligada ao coronavírus ceifará milhares de vidas (a maior parte, desnecessariamente) e causará enorme sofrimento. Mas pode parir uma ordem social nova.
II.
Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas. O distanciamento social é agora a única arma disponível para reduzir o número de infecções, “achatar a curva” da propagação da covid-19 e evitar o colapso hospitalar que devasta a Itália – e poderá ser ainda mais catastrófico em países como Estados Unidos e Brasil. Mas em economias de mercado, marcadas pelo individualismo e pela competição, com populações empobrecidas, endividadas e precarizadas pelo neoliberalismo, ficar em casa pode significar outra forma de morte: o despencar no abismo da exclusão. Uma parcela expressiva das populações, que não tem reservas, enfrentará dificuldades até mesmo para se alimentar, manter o teto ou seguir as medidas de precaução indispensáveis contra a doença. Muitos outros, embora não tão ameaçados, verão seu padrão de vida desabar, deixarão de cumprir compromissos financeiros e terminarão, quando a vida social regressar, mais empobrecidos e submissos a dívidas e bancos. Governantes criminosos – como já faz Jair Bolsonaro no Brasil – explorarão a fragilidade para incitar os desesperados contra a quarentena e outras ações protetivas.
Do ponto de vista imediato, uma Renda Cidadã de Emergência é, junto com a quarentena, a providência mais essencial para evitar o que a ONU já chama de uma “pandemia apocalíptica”. As duas medidas são complementares e quase gêmeas
A Renda Cidadã de Emergência pode enfrentar esses desafios – desde que cumpra certas condições. Primeiro, seu valor precisa ser realmente relevante, ou seja, suficiente para assegurar uma vida frugal, porém digna. Uma boa referência é o PIB per capita – base da proposta formulada neste texto, de R$ 100 diários, por pessoa. Os R$ 600 mensais aprovados no Brasil estão muito longe disso. Um motorista de aplicativo, uma faxineira, um bartender ou um pedreiro auferem, líquidos, cerca de R$ 100 ao dia, nas regiões metropolitanas. Seus custos são compatíveis com essa renda. Será injusto que seu padrão de vida, que nada tem de luxuoso, despenque, enquanto a elite financeira refestela-se e lucra com recursos do Estado. Como nota à margem, vale lembrar que os banqueiros brasileiros estão se aproveitando das dificuldades da maioria para impor após, o coronavírus, taxas de juros ainda mais altas e condições mais leoninas para rolagem das dívidas.
A segunda condição é a universalidade: a Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis. Num mundo em que as máquinas realizam cada vez mais tarefas antes obrigatórias aos humanos, a Renda Cidadã é uma das formas de garantir que todos se beneficiem de uma parte da riqueza social produzida no planeta.
Do ponto de vista prático, a Renda Cidadã não pode excluir todos aqueles que, participando igualmente do combate à pandemia, têm um emprego ou rendimento formal, em que recebem acima de 3 salários mínimos. Isso é ainda mais verdadeiro para os milhões cujas ocupações exigem permanecer trabalhando. Os profissionais de Saúde. Os operários que produzem, entre tantos itens, os respiradores artificiais, o sabão e o álcool gel, o óleo e a manteiga para as refeições preparadas em casa, a cerveja. Os agricultores que nos alimentam. Os comerciários que mantêm em funcionamento os supermercados e farmácias. Os operadores que zelam para que todos tenhamos energia elétrica e internet. Os que movimentem o transporte público. Os jornalistas responsáveis pelos textos que você lê durante a quarentena.
A Renda Cidadã deve ser paga a todos os cidadãos. Do ponto de vista conceitual, ela não pode ser vista como um “auxílio aos pobres”, um paliativo ou consolo para aqueles que não estão inseridos no mercado – assim como o ensino e a saúde públicas não podem ser as opções “para quem não pode pagar” uma escola ou hospital privado. Ao contrário: não se trata de retorno à ideia obsoleta de caridade, mas de superação das relações mercantis
É preciso deixar claro: sim, nessas condições, a Renda Cidadã subverte as formas de distribuição usuais de renda e riqueza que nossa sociedade acostumou-se a aceitar acriticamente, como se fossem as únicas possíveis. Se o estado de calamidade pública durar cem dias, serão distribuídos igualitariamente, no Brasil, 2,1 trilhões de Reais Sociais (S$ 2,1 tri), que terão o mesmo poder monetário dos Reais hoje existentes. Isso dará, à população poder econômico inédito – individual e coletivo. Muitos usarão o dinheiro para pagar suas dívidas, o que os tornará menos dependentes da ditadura financeira, e fará os bancos menos poderosos e predatórios. Imagine que, devendo R$ 10 mil no cheque especial, e pagando prestações mensais de R$ 1 mil apenas para não se enforcar ainda mais, você possa saldar seus débitos (e livrar-se da despesa que corrói seu salário) com os Reais Sociais que receberá. Outros planejarão a compra de um bem ou um serviço há muito tempo desejados: uma pequena reforma na casa, uma geladeira e um sofá novos, uma viagem. Alguns, reunidos, terão a soma necessária para iniciar um empreendimento. Quando a vida voltar ao normal, não encontrará uma multidão de pessoas falidas e submetidas aos bancos e às corporações – mas sujeitos sociais com certa potência econômica.
Juntos, os 210 milhões de brasileiros terão reunido, em cem dias, S$ (ou R$) 2,1 tri. Será um ótimo começo. Para efeito de comparação, o 0,1% mais rico do Brasil possui, em títulos da dívida pública, imediatamente conversíveis em dinheiro, R$ 4,4 tri – mais que o dobro. Mas as 200 mil pessoas, que compõem o 0,1% (e cujo salário médio é R$ 213,6 mil mensais), fazem parte (e compram) em outro mundo. Os S$ 2,1 tri, distribuídos entre 210 milhões de brasileiras e brasileiros, mudarão a face do país. Os aeroportos vão se transformar, definitivamente, em rodoviárias. Os restaurantes populares irão se multiplicar como cogumelos – desafiando a monotonia gastronômica das regiões centrais, onde só prosperam, hoje, as cadeias de internacionais. Ninguém será obrigado a trabalhar por um prato de comida: haverá, seguramente, uma elevação do salário médio do brasileiro, hoje cerca de 30% inferior ao do chinês. A lógica da segregação Casa Grande X Senzala será abalada.
É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família. Outras são subestimadas por não gerarem valor, diretamente. Tocar um instrumento nas estações cinzentas do metrô. Contar histórias, nas praças. Zelar por um jardim público. Oferecer refeições, na rua, aos que de outro modo passariam fome. Escrever um romance ou um livro de poesias. Dar aulas de um idioma estrangeiro, ou de culinária – sem cobrar. Relatar, a partir de uma tribo indígena, a experiência de utilização de uma planta para curar uma doença desconhecida. Divertir crianças internadas num hospital. Tudo isso, e tantas outras ações, é motivo para fazer jus a parte da riqueza socialmente produzida. Tudo isso, e muito mais, é motivo para fazer jus à Renda da Cidadania.
É preciso deixar muito claro, também, que sim – a Renda Cidadã subverterá outra ideia, ainda mais arraigada na ideologia do senso comum. O dinheiro (ou seja, a participação na riqueza socialmente produzida) pode estar associado a muitas ações e méritos, além das que a lógica mercantil reconhece. Algumas delas são exercidas, quase sempre, por mulheres. Cuidar das crianças. Arrumar a casa. Preparar a comida para a família
Mas como a sociedade poderá remunerar, com R$ 100 mensais (algo próximo do PIB per capita), atividades que não geram valor mercantil? Aqui, é hora de introduzir talvez o fator mais relevante deste debate, do ponto de vista do imaginário social. Por seu caráter relativamente expressivo, essa Renda Cidadã obriga a pensar sobre os mecanismos que produzem dinheiro em nossas sociedades; e sobre os artifícios adotados pela aristocracia financeira (com a cumplicidade dos Estados) para aproveitar-se das crises para concentrar ainda mais riqueza, e produzir ainda mais desigualdade e pobreza.
III.
Tão assustadores quanto o número de mortes, ou circunstâncias como a escolha de Sofia, a que estão obrigados os médicos no norte da Itália, são os primeiros dados da crise econômica. Nos Estados Unidos, talvez o primeiro país a divulgar dados de desemprego pós-crise, ele disparou. Há três semanas, 200 mil pessoas haviam solicitado seguro-desemprego. Subitamente, esse número saltou, nos sete dias encerrados nesta quinta-feira (26/3), para 3 milhões – quase quinze vezes mais. Análises econômicas confiáveis preveem, para os países ocidentais, taxas de desemprego entre 20% e 50%, até o final do ano. Do ponto de vista financeiro, a realidade é igualmente assustadora. Os bancos, avalia um texto recente, estão afundados em trilhões de dólares de dívidas. Boa parte desses débitos deixarão de ser pagos.
Mas há um truque ideológico, aqui. A mídia comercial atribui, acriticamente, este colapso econômico ao… coronavírus! Será verdade? A lógica elementar e os fatos sugerem que não.
Quando as autoridades agem corretamente, a quarentena é curta: dura, ao máximo, dois meses. Veja o caso de Wuhan, na China – o ponto do globo onde a epidemia eclodiu de surpresa. O isolamento radical foi decretado em 23 de janeiro. O número de casos e de óbitos começou a cair já em 5 de fevereiro (treze dias depois) e recuou, a partir de então, abruptamente. Por isso, em 1º de março foi fechado o primeiro dos dois hospitais construídos em emergência para enfrentar a doença. Desde 18/3 (exatos 55 dias depois de iniciado o isolamento), não se registra mais um único caso de transmissão local.
Dois meses, embora tardem a passar, são um período curto, na existência das pessoas – e, ainda mais, das economias. No Brasil, a vida adulta média dura 700 meses (chega a 840 no Japão…). Em sociedades não tisnadas pelo individualismo extremo, a quarentena — excluída a dor da pandemia – seria uma oportunidade para desacelerar, refletir, encontrar-se consigo e com os problemas e belezas do mundo. A produção de bens e serviços certamente cairia de modo abrupto. Mas seria retomada em seguida – na maioria dos casos, com compensações. Uma geladeira que era necessária, e cuja compra foi adiada pela quarentena, será, de qualquer maneira, comprada em seguida. Uma viagem adiada será reprogramada. Os funcionários contratados continuarão sendo necessários. Por que demiti-los? Qual o motivo para drama?
A resposta está em algo que as análises convencionais agora procuram ocultar. A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões.
Dois textos de Outras Palavras, [1 2] que se apoiam em artigos da revista The Economist e do Financial Times explicam o movimento em detalhes. Não é possível reproduzir toda a história aqui. Eis um resumo sintético da cadeia de contágio: a) Os mercados financeiros retomaram, assim que amainou a crise de 2008, a “exuberância irracional” que os caracterizou durante todo o período neoliberal. Os bancos foram irrigados por montanhas de dinheiro, liberadas pelos Estados a partir da lógica interesseira do trickle-down, segundo a qual o dinheiro despejado no topo da pirâmide social escorrerá pelas bordas, até chegar à base; b) Para continuar lucrando irresponsavelmente, os grandes bancos globais emprestaram estes dinheiro sem critérios. Ao eclodir a pandemia, o volume de créditos concedidos por eles havia superado os picos de 2008. E as grandes beneficiárias eram, desta vez, as maiores corporações não-financeiras com atuação global. Parte delas recebeu dinheiro mesmo estando tecnicamente falidas; c) A crise expôs os desatinos. As grandes empresas com queda de receita (nos setores de aviação civil, automobilístico ou de hotelaria, por exemplo) serão, provavelmente, incapazes de pagar os créditos irresponsáveis que lhes foram oferecidos pelos bancos. A constatação fez desabar, também, o preço de suas ações nas bolsas de valores; d) Os próximos a ser atingidos serão os próprios megabancos globais. Eles próprios vão se tornar inadimplentes, se um número expressivo de empresas que lhes devem deixar de pagar suas dívidas.
A crise econômica não é consequência da pandemia. O minúsculo coronavírus funcionou apenas como gatilho, que detonou distorções muito mais profundas. Um castelo de cartas desabou. Com ele, despencaram trilhões
A formação das montanhas de crédito que permitem girar o capitalismo financeirizado não pode ser explicada em detalhes nos limites deste texto. Para compreendê-la, recomenda-se, por exemplo, o livro Just Money, da economista britânica Ann Pettifor. Na obra, o foco da autora é desvendar a criação de dinheiro, no capitalismo neoliberal. Ao contrário do que sugerem os mitos fundadores da ideia de moeda, esta não surge a partir de um trabalho realizado, ou de algo produzido. Não está ancorada num bem raro e supostamente precioso, como o ouro. Desde os anos 1930, a moeda é criada a partir do nada por Estados e bancos. Na era do keynesianismo, foi manejada, no Ocidente, por governos que a utilizaram para viabilizar uma grande invenção civilizatória: o Estado do Bem-Estar Social. A partir dos anos 1980, o neoliberalismo apropriou-se das máquinas simbólcias de imprimir dinheiro. São os bancos comerciais, hoje, que criam quase toda a moeda disponível. Em busca de aumentar incessantemente os lucros, eles emprestam um volume de dinheiro muitas vezes maior do que aquele que possuem, em depósitos. A prática chama-se “alavancagem”. Exemplo eloquente: ao permitir a ampliação da alavancagem, numa canetada em 23/3, que não passou por debate algum entre a sociedade ou no Congresso, o BC brasileiro autorizou os bancos comerciais a criar do nada – e emprestar – 1,2 trilhão de reais!
IV.
É este cassino que está desabando, diante de nossos olhos, a partir do grão de areia representado pelo coronavírus. Em condições normais, uma paralisação das atividades produtivas, por tempo limitado, teria efeitos muito reduzidos. Um sistema bancário saudável financiaria os prejuízos dos cidadãos e das empresas — e permitiria pagá-los ao longo do tempo, com juros remunerativos, porém módicos. Mas a economia mundial está submetida a uma máquina especulativa global – a mercados de apostas em que os volumes negociados a cada dia são vinte vezes maiores do que o comércio mundial movimenta num ano. Por isso, um leve sopro na mesa pode fazer ruir o castelo de cartas. Foi o que ocorreu com o coronavírus.
Os dramas – tanto os sanitários quanto os humanos – são incalculáveis. Mas um sistema erigido sobre uma pilha gigantesca de interesses egoístas é incapaz de se autorreformar. Por isso, todas as ações de combate à crise deflagradas pelos governos ocidentais têm um componente essencial: salvar os bancos e a oligarquia financeira. A palavra de ordem é: custe o que custar. O grosso dos 5 trilhões de dólares “contra o coronavírus”, alardeados na quinta-feira, numa reunião do G-20 destina-se a irrigar os cassinos. As grandes corporações, endividadas e insolventes, não serão autorizadas a falir. Os bancos globais, ainda menos. A experiência da crise de 2008 ensina a tramar algo muito maior. A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas.
A saída do capitalismo neoliberal é criar do nada o volume de dinheiro que for necessário. O objetivo é manter girando a roda de especulação que criou a cris anterior, alimenta a atual e gestará as próximas
Ao final de cada crise, restam escombros e desigualdade. Em 2008, as corporações utilizaram o dinheiro ofertado pelos Estados para “modernizar-se” e demitir em massa. Passada a crise, a conta foi jogada no colo das sociedades – obrigadas a políticas drásticas de redução de serviços públicos e direitos sociais. Que virá agora, se em uma semana já há 2 milhões de novos desempregados, apenas nos Estados Unidos?
V.
Há em curso, em todo o mundo – ainda que em silêncio – uma revolução no pensamento pós-capitalista. Os que se mantêm aferrados às formas de luta dos séculos passados perdem espaço. Aos poucos, surgem novas perspectivas, que dialogam com os sujeitos sociais paridos pelas novas configurações do sistema. O antigo proletariado, que vendia sua força de trabalho diretamente a um patrão; e que se concentrava em grandes unidades fabris, perdeu a condição de sujeito universal – aquele que, segundo Marx, só poderia ser livre quando libertasse, ao mesmo tempo, o conjunto da sociedade. Surge, aos poucos, um precariado. Seu centro não são mais as fábricas, mas as metrópoles. Ele está disperso. Suas reivindicações são muito menos homogêneas. Mas há um projeto comum, ainda que oculto e inconsciente, entre elas. O precariado deseja, assim como seu irmão mais velho, que as riquezas produzidas socialmente sejam repartidas entre todos. Nesse sentido, há uma linha que une uma garota que se expõe ao coronavírus, ao entregar refeições na rua, a Marx, Bakunin, Kropotsky ou Rosa Luxemburgo.
Há um amplo leque de projetos, em gestação, para realizar esta ideia, nas condições do século XXI. A construção e garantia do Comum. O Green New Deal, que articula a agenda ambiental à social, ao propor uma grande redução das emissões de CO², alcançada com intensos investimentos em infra-estrutura limpa (usinas eólicas e solares, ferrovias, despoluição de rios, saneamento, etc etc etc) e garantia de emprego digno para todos que o desejarem. No contexto em que vivemos, a Renda Básica da Cidadania destaca-se entre elas.
Ela pode representar, para as maiorias e para a luta por superar o capitalismo, o que a jornada de oito horas significou, há cem anos. Ela estabelece um objetivo comum, e muito concreto, para um vastíssimo leque de lutas dos precarizados. Embora tenham um mesmo sentido, estas lutas são hoje díspares e dificilmente dialogam entre si. (Pense, por exemplo, na reivindicação de direitos trabalhistas, por um motorista uberizado, e na exigência, por um povo indígena, do direito a ser remunerado pelo uso de um fármaco desenvolvido graças a seus conhecimentos ancestrais).
A Renda da Cidadania emerge agora, além disso, por pegar o sistema num contrapé. Duas grandes crises econômicas – a de 2008 e a que está se abrindo agora – deixaram claro que é possível criar dinheiro (e, portanto, redistribuir riqueza) a partir do nada. Diante de uma pandemia, será possível permitir que isso se faça a favor apenas do 0,1%? Se resta algo de democracia, na política contemporânea, a resposta é não. A crise pode voltar a ser, como tantas vezes, o elemento de que dispomos para sair do sono e da letargia
* Publicado no site Outras Palavras, em 27/03/2020.
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