Abertura comercial e a ameaça à produção pública de medicamentos estratégicos

Abertura comercial e a ameaça à produção pública de medicamentos estratégicos

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No Fórum Econômico de Davos (Suíça) de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou que o Brasil pretende aderir ao Acordo de Compras Governamentais (GPA, em inglês) da Organização Mundial do Comércio. O GPA, que movimenta US$ 1,7 trilhão por ano, prevê a abertura do mercado de licitações e concorrências públicas do país às empresas estrangeiras, em igualdade de condições com as empresas nacionais. Em troca, garante reciprocidade às empresas brasileiras.

Apesar da aparente isonomia no que diz respeito à concorrência, a decisão deverá alterar profundamente a condição de milhares de empresas nacionais no mercado brasileiro das concorrências públicas. Primeiramente, porque o Brasil ainda não possui competitividade industrial em muitas áreas críticas nas quais as multinacionais são hegemônicas. Segundo, porque o acordo elimina na prática um dos principais instrumentos de desenvolvimento da política industrial e tecnológica: o uso do poder de compra do Estado, estratégico para o desenvolvimento industrial por permitir o estímulo à produção local em articulação com a política social. 

No Brasil, a maior parte da tecnologia necessária à inovação em saúde é de origem estrangeira. A capacidade de inovação das empresas farmacêuticas nacionais e laboratórios públicos não se equipara à da indústria farmacêutica mundial1. O crescimento exponencial das despesas de importação e a incorporação de novos medicamentos e produtos ao SUS impõem limites financeiros à ampliação da cobertura de programas estratégicos, como a distribuição gratuita de antirretrovirais.

O acordo elimina na prática um dos principais instrumentos de desenvolvimento da política industrial e tecnológica: o uso do poder de compra do Estado

Para reduzir a vulnerabilidade nacional no segmento de importação de medicamentos e insumos de saúde, o governo criou as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), em 2008. O arranjo pressupõe a parceria entre duas ou mais instituições públicas com empresas privadas e contempla o desenvolvimento, a transferência e absorção de tecnologia, a produção de insumos e medicamentos estratégicos para o atendimento das demandas do SUS. Por meio da compra centralizada, o Ministério da Saúde, na condição de comprador único (monopsônio), definiu as condições de produção e o portfólio dos produtores estatais e das empresas privadas2. No arranjo das PDP, o escopo e a escala de produção dos laboratórios estatais dependem da preferência decisória do Executivo federal. 

Em dez anos de funcionamento, o ministério implantou 87 contratos de PDP, dos quais participaram laboratórios públicos de grande porte federais (Farmanguinhos e Bio-Manguinhos) e estaduais (FURP, Butantan, Lafepe e Bahiafarma). Entre as empresas farmacêuticas nacionais, estavam líderes do mercado de genéricos, como a Cristália e a EMS e, no caso das multinacionais, Pfizer,  Merck e Bristol-Myers Squibb. 

O grande diferencial da PDP em relação ao processo normal de compras do Ministério da Saúde é que ela induz a transferência de tecnologia de empresas privadas para os laboratórios farmacêuticos oficiais. Assim, a PDP permite o adensamento tecnológico do setor saúde, induz o desenvolvimento inclusivo e favorece a inserção do Brasil no cenário global da produção de alta tecnologia. 

O MS apurou que a economia já obtida pelas aquisições da PDP foi de R$ 125 milhões, entre 2011 e 2017. A economia anual para cada produto objeto de PDP referia-se à diferença entre o valor praticado no período e a despesa do Ministério da Saúde na aquisição anterior ao estabelecimento da PDP – considerando o valor unitário e a quantidade do produto adquirido no ano em cálculo (ver aqui).

Apesar disso, no ano passado, o Ministério da Saúde cancelou de modo unilateral os contratos para a produção de 18 medicamentos e uma vacina de sete laboratórios farmacêuticos oficiais.  [ver aqui]. Agora, com a intenção de aderir ao GPA e a respectiva proibição do uso das compras públicas, é pouco provável que os 19 contratos cancelados sejam reativados e que uma nova rodada de seleção de projeto seja aberta.

É importante destacar que nenhum país emergente de médio e grande porte internacionalizou as compras de governo. China, Rússia, África do Sul, China e Argentina, por exemplo, não aderiram ao GPA. Os países que buscam maior protagonismo no cenário da globalização não facultam o acesso às compras do governo sem algo em troca, especialmente no contexto atual de recrudescimento das práticas protecionistas nas economias centrais, a exemplo dos EUA e Inglaterra. 

A PDP fez uma aposta não isenta de incerteza na transferência tecnológica como instrumento de redução da dependência produtiva em um setor de inovação acelerada. Ainda assim, a produção local de medicamentos de alta tecnologia oferece bons retornos sociais e econômicos porque amplia o espaço de decisão, tornando o país menos dependente de importação, e reduz despesas do SUS na provisão de medicamentos estratégicos. Isso acontece apesar dos riscos pontuais da obsolescência de medicamentos e insumos por força da velocidade da inovação no setor. A PDP criou também um cenário institucional de fortalecimento da vocação tecnológica sem precedentes para os laboratórios farmacêuticos oficiais ao instituir a cooperação horizontal com empresas líderes da inovação setorial, inclusive as multinacionais. A utilização estratégica do poder de compras do Estado tem sido essencial na promoção dessa cooperação.

Nenhum país emergente de médio e grande porte internacionalizou as compras de governo. China, Rússia, África do Sul, China e Argentina, por exemplo, não aderiram ao GPA. Os países que buscam maior protagonismo no cenário da globalização não facultam o acesso às compras do governo sem algoem troca

O impacto da PDP sobre o escopo da atividade dos laboratórios farmacêuticos oficiais é extraordinário ao favorecer a incorporação de medicamentos de alto custo e mesmo biológicos no portfólios, possibilitando a oferta de multiprodutos e a definição de novas rotas tecnológicas. Por exemplo, ao longo do desenvolvimento da PDP, o laboratório federal Bio-Manguinhos, integrado à Fundação Oswaldo Cruz, na cidade do Rio de Janeiro, transitou de laboratório especializado em um único produto (vacinas) para a rota de produção de medicamentos biológicos com tecnologias já maduras. A experiência de Bio-Manguinhos revela a importância da demanda governamental colocada pela PDP sobre as aptidões tecnológicas dos laboratórios públicos2. 

A política da PDP é uma combinação bem-sucedida da política industrial com a política social para assegurar a produção local e a provisão de medicamentos estratégicos para o setor público, reduzindo as despesas. A abertura do mercado de compras brasileiro significará, em ultima análise, a renúncia do país a uma política industrial e também a destruição das iniciativas de inovação e desenvolvimento de capacidade tecnológica em áreas estratégicas do país, nas quais se destaca a experiência do SUS.

* Nilson do Rosário Costa e Ana Cristina Augusto de Sousa são pesquisadores do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (DCS/Ensp/Fiocruz); Alessandro Jatobá é pesquidor do DCS/Ensp/Fiocruz e do Centro de Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz).

 

Referências: 

1 - Shinzato, KY, Polli, M, Porto, GS. Tendências Recentes do Setor Farmacêutico no Brasil: Desempenho financeiro e operacional, fluxos de comércio exterior e atividades desempenhadas em inovação tecnológica. RACEF – Revista de Administração, Contabilidade e Economia da Fundace6 (1): 20-38, 2015.

2 - Costa, NR, Sousa, ACA, Jatobá, A et al. Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a Produção Local de Medicamentos: Estudo de Caso sobre Sustentabilidade Organizacional. Saúde em Debate 43 (N. Especial 7): 8-21, 2019.