Romantização e culpabilização predominam na cobertura da mídia em casos de feminicídio e violência sexual, aponta estudo
Do site do Cebes *
As falhas mais comuns da imprensa escrita na cobertura sobre feminicídio são a “abordagem romantizada” e “desresponsabilização do autor pelo crime” aponta o Instituto Patrícia Galvão no relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: papel social e desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual divulgado no site da instituição. Nas matérias analisadas sobre a cobertura da violência sexual, constataram-se abordagens atribuindo às vítimas a culpa pela violência. O monitoramento ocorreu durante seis meses após a promulgação da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), do início de outubro de 2015 ao final de março de 2016.
O instituto reconhece que houve avanços na cobertura jornalística sobre os dois assuntos desde o fim do monitoramento, há três anos, mas o relatório “ainda tem fundamental importância no debate sobre como a mídia pode contribuir para garantir às mulheres brasileiras o direito a uma vida sem violência". Um dos objetivos do documento, que contou com apoio da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), é dialogar com profissionais de imprensa e comunicadores em geral sobre “cuidados importantes para que não incorram na revitimização de mulheres ou familiares das vítimas de violência de gênero“.
A amostra foi composta por 1.583 matérias sobre homicídios de mulheres e 478 sobre crimes de estupro. Foram monitorados mais de uma centena de portais e sites noticiosos, selecionando-se ao final 71 veículos representativos das cinco regiões do país.
Veículos noticiosos pesquisados (por âmbito/região)
Uma das conclusões do relatório é que, em relação à cobertura dos assassinatos de mulheres, prevaleceram matérias sobre a morte em si, sem informações sobre quem era aquela mulher, se já havia buscado ajuda, recorrido ao Estado para se defender de violências anteriores ou se tinha medida protetiva, entre outras questões que podem apontar falhas nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Amostras
Das 1.583 matérias originais sobre mortes violentas de mulheres, foi possível verificar que 413 textos (26%) eram assinados por jornalistas mulheres; outros 51 (3,3%) eram assinados por jornalistas mulheres junto com homens; 292 (18,5%) assinados por homens; e 827 (52,3%) não eram assinados.
Dentre as 478 matérias sobre estupros consumados, foi possível identificar assinatura de jornalista mulher em 138 textos (28,8%), sendo 8 deles assinados em conjunto com profissionais masculinos. Dos crimes de violência sexual tentados, 22 (26,9%) das matérias eram assinadas por mulheres, 10 por homens e 50 delas não tinham assinatura.
A diferença entre o número total de matérias coletadas e as analisadas deve-se ao descarte de material referente a crimes contra crianças e menores de 14 anos, links alimentados em duplicidade e material de veículos que não foram escolhidos para análise em razão de produzirem quase nenhum conteúdo (comumente apenas reproduzindo material de outro veículo). Também foi considerada a credibilidade dos veículos selecionados para análise, com base no respeito aos critérios jornalísticos de produção e edição do material da fonte originária.
Mapa da Violência 2015
Quando o monitoramento foi realizado, o Mapa da Violência 2015 (Flacso, OPAS/OMS, ONU Mulheres e SPM/PR) apontava que o Brasil saltara da sétima para a quinta posição entre 83 países com as maiores taxas de mortes violentas de mulheres , atingindo uma taxa de 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres. O número de vítimas do sexo feminino crescera de 3.937, em 2003, para 4.762 assassinatos registrados em 2013 – aumento de 21% em uma década. E essas quase 5 mil mortes representavam 13 assassinatos de mulheres por dia. O Mapa ainda relatava que, no ano de referência do estudo, 50,3% das mortes violentas de mulheres foram cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros.
A série histórica divulgada no Mapa mostrava também que, entre 2003 e 2013, as mortes violentas de mulheres negras tiveram um crescimento de 54%, enquanto as de mulheres brancas caíram em 9,98%.
Feminicídio: uma cobertura ainda individualizada e policial
A cobertura revela-se majoritariamente factual, individualizada e com abordagem policial. Em apenas 99 matérias (6,25%) constavam críticas a políticas públicas ou aos sistemas de atenção/segurança/justiça – quando o jornalismo deveria sempre perguntar onde ocorreu a falha no sistema de proteção e promoção de direitos que possibilitou a ocorrência de uma morte evitável.
O racismo, a discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero e o preconceito de classe foram destaques no material analisado. Em 15% das matérias ilustradas por imagens de vítimas houve exibição de corpos – em sua maioria de mulheres negras – sem qualquer tratamento.
No caso das mulheres lésbicas, mesmo quando a orientação é mencionada na matéria, nem sempre há o questionamento se o crime estaria associado à lesbofobia.
Em relação às mulheres trans e travestis, a cobertura tende a ser ainda mais desrespeitosa. São comuns a exposição do nome de registro (e não do nome social), imagens de corpos dilacerados ou jogados no chão e a associação frequente à suspeita de prática criminosa (roubo, furto ou ameaça) contra o cliente ou ao exercício profissional do sexo como causa da morte, não abordando a discriminação social de gênero, transfobia ou possibilidade de crime de ódio .
Em 2015 e até março de 2016, à época do estudo, o termo feminicídio esteve ausente na maioria das matérias analisadas, gerando um problema de desinformação. A difusão do que é o feminicídio, em que contextos ocorre, os canais de denúncia e os serviços disponíveis pode contribuir, por exemplo, para evitar novas mortes e é um importante papel que a mídia pode cumprir. No entanto, das 1.752 matérias analisadas nas quais o crime poderia ser enquadrado na lei (contexto de violência doméstica ou menosprezo à condição de mulher), apenas 233 traziam explicitamente o termo.
Em 2010 o Instituto já havia realizado, em parceria com a ANDI – Comunicação e Direitos, um trabalho de monitoramento e análise da cobertura da imprensa sobre violência contra as mulheres. A promulgação da Lei do Feminicídio em 2015 permitiu analisar a relação da imprensa com o novo tipo penal e as implicações no debate público acerca da promoção e garantia dos direitos das mulheres.
Violência Sexual e Mídia
Segundo as reportagens, a maioria dos casos refere-se a ataques de surpresa, ainda que o autor seja conhecido. Apesar dessa característica, seria interessante a imprensa informar se a vítima já havia buscado ajuda anterior contra investidas do agressor, tendo em vista que alguns são ex-parceiros, vizinhos ou integrantes da família da vítima. No entanto, em apenas 28 textos originais há referência ao fato de a mulher ter buscado ajuda anterior ao crime (4,95%). Dentre estes, a delegacia de polícia foi a
ajuda mais procurada pelas vítimas (6 casos), seguida de vizinhos (3 casos) e família (3 casos). Em 11 matérias a ajuda foi diversa (consolidada na rubrica “outros”) e em 5 casos não foi possível saber onde ou com quem a mulher buscou auxílio prévio à consumação do crime.
Em 117 (20,67%) matérias foi possível inferir que a mulher não buscou ajuda prévia por tratarse de crime de ocasião praticado por estranho. A maioria absoluta das reportagens (421 ou 74,38%) não trazia nenhuma informação nesse sentido.
Ainda remetendo ao fato de que em 10,26% dos textos o autor da violência sexual era parceiro, ex-parceiro ou familiar da mulher agredida, em somente 2,47% (14 matérias) havia referência a denúncia anterior da vítima contra o agressor. Em 552 (97,53%) textos não havia esta informação.
Embora pouco frequente na base de dados de notícias coletadas, a presença de informação sobre a existência ou não de serviços de atenção às vítimas de violência sexual foi muito superior a que se verificou nas matérias sobre assassinatos.
As críticas mais comuns nos textos sobre crimes sexuais consumados foram relativas à morosidade na apuração/julgamento dos casos ou falhas das investigações (12,5%), seguidas de ausência de políticas públicas específicas (7,81%) e insuficiência de serviços (7,81%); desrespeito/constrangimento às vítimas (6,25%) e morosidade nas investigações. Por outro lado, não foram abordadas as razões dessas deficiências, como, por exemplo, falta de profissionais capacitados, má gestão de recursos, escassez de investimentos etc.
O que não deveria faltar na cobertura sobre violências contra as mulheres
- Informações sobre serviços de denúncia e acolhimento existentes na região
- Informações sobre serviços de orientação e denúncia que podem ser acionados à distância (190, Ligue 180, Disque 100, portais e aplicativos)
- Breve explicação de que a violência em contexto afetivo manifesta-se em um ciclo – o chamado ciclo da violência, em que se repetem fases de tensão, explosão e reconciliação, que vão se agravando e podem culminar na violência fatal
- Dicas de como as mulheres podem se prevenir a violência e sair desse ciclo
Acesse aqui a íntegra do relatório Imprensa e Direitos das Mulheres: papel social e desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual
* Publicado em 5/12/2019