‘Austeridade não é caminho para o crescimento’, diz autor da Teoria Moderna da Moeda

‘Austeridade não é caminho para o crescimento’, diz autor da Teoria Moderna da Moeda

Já leu
Foto: Eduardo de Oliveira.

A defesa de um necessário diálogo – hoje ainda incipiente – entre a área econômica e a área social orientou as discussões do seminário Políticas sociais e pleno emprego: a Teoria Moderna da Moeda como alternativa, realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, em 26/11/2019. O evento teve como convidado o economista norte-americano Randall Wray, um dos autores da Teoria Moderna da Moeda (TMM), segundo a qual é possível ao Estado que gasta na própria moeda investir em mais saúde, mais educação, mais habitação, sem preocupação com o tamanho de sua dívida.

“A MMT não é exatamente nova, mas a integração de uma variedade de tradições em Economia. O que fazemos é recuperar ideias do fim da Segunda Guerra, que, de alguma forma se perderam nos anos 1960, 1970, e, agora, tornaram-se assustadoras aos economistas e formuladores de políticas”, explicou Wray, que teve ao seu lado na mesa dois economistas com visões distintas acerca do papel do Estado na garantia de políticas sociais à população: os professores Pedro Rossi, da Unicamp, e José Marcio Camargo, da PUC-Rio. A mediação foi do pesquisador Carlos Gadelha, coordenador de Ações de Prospecção da Fiocruz.

Acesse a íntegra do seminário (em inglês). Aguarde a íntegra legendada

A motivação do CEE-Fiocruz em trazer o tema para debate, em um cenário marcado por políticas de austeridade [ver aqui, aqui ], foi discutir o potencial de políticas monetárias e fiscais baseadas na TMM para aumentar os recursos financeiros federais disponíveis para as áreas sociais e, assim, garantir à população os direitos definidos na Constituição de 1988. “Estamos em uma armadilha do desenvolvimento. Temos capital demais e ociosidade demais”, observou Gadelha, ao abrir o evento. “Temos o que nosso professor [o economista e professor da Unicamp] Luiz Gonzaga Belluzzo chama de escassez na abundância”.

Ele destacou a importância do seminário em dar voz à diversidade de ideias, na mesa e na plateia, para se pensar em um projeto alternativo com convergências, para sairmos da crise. “Vamos ver como as ideias de Randall Wray dialogam com a situação de um país periférico que não perde a esperança no desenvolvimento”, disse Gadelha, enfatizando a importância de se conceber o desenvolvimento de forma sustentável, promovido em suas três dimensões: econômica, social e ambiental. Mais à frente, acrescentou ainda o braço da inovação nesse processo.

O que fazemos é recuperar ideias do fim da Segunda Guerra, que, de alguma forma se perderam nos anos 1960, 1970, e, agora, tornaram-se assustadoras aos economistas e formuladores de políticas (Randall Wray)

A partir de um resgate histórico das origens e da natureza do dinheiro, Randall Wray apresentou alguns fundamentos da Teoria Moderna da Moeda. “Observar como os sistemas monetários de fato operam no mundo real, pode levar a olharmos para a formulação de políticas de uma forma diferente. As opções são muito maiores do que a maioria das pessoas é levada a acreditar”, afirmou.

Wray iniciou observando que, na prática, os bancos centrais já abandonaram a noção de que é preciso controlar as reservas bancárias para controlar a oferta de moeda, de modo a manter a inflação baixa. “Essa noção ainda aparece nos livros didáticos, porque leva algum tempo para eles se atualizarem. O que os bancos centrais fazem é direcionar a taxa de juros, em vez da quantidade de reservas bancárias. No entanto, ainda existe a crença de que a política monetária tem tudo a ver com o controle da inflação, mesmo que não possamos mais controlar a oferta de moeda”.

Na busca por responder a indagação quanto a de onde veio o dinheiro, o economista mencionou o fluxo circular apresentado nos livros didáticos, que mostra que as famílias vendem serviços para firmas e estas pagam seus salários; ao mesmo tempo, as famílias compram o produto das firmas, que, assim, têm o dinheiro de volta. “Onde as empresas conseguem o dinheiro que usam para empregar mão-de-obra? Das vendas de bens de consumo. Onde as famílias conseguem dinheiro? Dos salários pagos pelas empresas. Na verdade, nunca se diz de onde veio o dinheiro pela primeira vez”, analisou.

Em um “fluxo circular mais complicado”, é possível observar a entrada de instituições financeiras, mostrou Wray. “O que as instituições financeiras fazem? Recebem as economias das famílias e as utilizam para financiar empresas de investimento. Onde os bancos conseguiram o dinheiro que emprestam? Da economia das famílias. Onde as famílias conseguiram o dinheiro que pouparam nos bancos? Dos salários. Ainda fica-se sem saber de onde veio o dinheiro pela primeira vez. Depois de muitos anos estudando o registro histórico, cheguei à conclusão de que nunca conseguiremos responder definitivamente essa pergunta”.

A TMM orienta-se pelo princípio de que o uso da moeda e do valor do dinheiro é baseado no poder de autoridade de quem a emite, não no seu valor intrínseco. A moeda é um registro de débito, uma promessa de resgate (Randall Wray)

Wray observou que os sistemas monetários modernos são, sem exceção, sistemas monetários fiduciários, isto é, não lastreados em algum metal. “A razão pela qual você aceitará o dinheiro fiduciário, já que não é conversível em ouro, é porque você confia. Aceitarei dinheiro porque acredito que outra pessoa aceitará”, destacou, definindo o dinheiro como um monopólio do Estado. “Toda nova nação cria sua unidade de preços para denominar as dívidas e créditos nessa economia. Portanto, é uma unidade de medida social, uma unidade de referência do Estado para trocas”.

Nesse sentido, prosseguiu o economista, a TMM orienta-se pelo princípio de que o uso da moeda e do valor do dinheiro é baseado no poder de autoridade de quem a emite, não no seu valor intrínseco. “A moeda é um registro de débito, uma promessa de resgate. Você define um gasto, emite uma moeda que pode ser usada para fazer frente a ele, gasta primeiro e depois tributa. Você não precisa de receita para gastar; pode gastar antes”, afirmou Wray, após apresentar exemplos tomados de sociedades tribais e governos do período colonial, entre outros.

De acordo com o economista, o processo sempre se deu dessa forma, apenas tornou-se “obscuro”, porque foram inseridos um banco privado e um banco central entre a população e o governo. “Você não recebe mais notas em papel quando o governo gasta, porque ele sempre gasta [debitando a sua conta] no Banco Central. Você recebe um crédito em sua conta bancária privada”, explica.

O governo não pode falir gastando em sua própria moeda; sempre pode financiar seus gastos (...) Governos soberanos não ficam sem dinheiro (Randall Wray)

“Quando você paga seus impostos, emite um cheque ou tem um débito eletrônico em sua conta bancária, e o Banco Central debita as reservas de seu banco. Então, não os vemos queimando papel-moeda, mas o débito em conta é a inovação tecnológica moderna equivalente a queimar as notas em papel, como se fazia antes”.

Wray cita os economistas Charles Goodhart, Abba Lerner (1903-1982) e Hyman Minsky (1919-1996) para afirmar que a moeda sem lastro (fiat money) não é inútil, ao contrário, tem valor, devido à promessa do Estado de resgatá-la. “Todo dinheiro é um crédito”, disse.

De acordo com a MMT, destacou o economista, o governo não pode falir gastando em sua própria moeda; sempre pode financiar seus gastos. “Os governos normalmente impuseram a si restrições, como a de não fazer saque a descoberto no Banco Central”, assinalou. “Não estou dizendo que o governo pode comprar tudo em sua própria moeda, e sim que pode comprar qualquer coisa em sua própria moeda. Há uma diferença aí”.

Wray destacou que não descarta as restrições de caráter político ao processo que apresenta. No entanto, frisou, “problemas políticos podem ser muito significativos, mas não são impostos pelo mercado”. Ele apontou, ainda, que, se um governo diz coisas como “gostaríamos de gastar mais”, “sabemos que há pessoas desempregadas por aí, mas estamos sem dinheiro”, isso não é verdade. “Talvez não saibam que não é verdade e não estejam sendo bem orientados. Governos soberanos não ficam sem dinheiro”.

Viver sem restrição orçamentária é o maior sonho que podemos ter. No entanto, a experiência mostra que isso só é possível quando existe alguém para pagar nossas despesas. Isso é verdade para as pessoas e para os países (José Marcio Camargo)

Para José Márcio Camargo, aumentar o volume de recursos financeiros destinados às áreas sociais requer algumas condições. “Viver sem restrição orçamentária é o maior sonho que podemos ter. No entanto, a experiência mostra que isso só é possível quando existe alguém para pagar nossas despesas. Isso é verdade para as pessoas e para os países”, argumentou.

Segundo o economista, uma maior disponibilidade de recursos pelo Estado poderia ser alcançada se o Brasil emitisse moeda globalmente aceita. “Países emissores de moeda que não é aceita em outros terão que obedecer às restrições orçamentárias. Aqueles que não aceitaram adotar essas restrições experimentaram a inflação, recessão e o desemprego”, considerou, lançando uma provocação ao debate: “Até que ponto conseguimos financiar nossos gastos com a nossa própria moeda e até que ponto vivemos em um país autárquico que não compra nada que não é produzido no próprio país?”.

Países emissores de moeda que não é aceita em outros terão que obedecer às restrições orçamentárias. Aqueles que não aceitaram adotar essas restrições experimentaram a inflação, recessão e o desemprego (José Marcio Camargo)

De acordo com essa linha de raciocínio, observou Camargo, se o governo aumentasse seus gastos, estaria aumentando a renda doméstica e isso poderia pressionar uma alta do dólar. Parte dessa renda poderia se transformar em gastos de bens importados, aumentando a demanda por moeda estrangeira e consequentemente aumentando o nosso endividamento em dólar. 

O professor da PUC-Rio disse não concordar com os preceitos da TMM, no que tange ao aumento de recursos por parte do Estado para financiar políticas públicas numa situação de crise, lembrando, no entanto, das necessidades sociais, ao assinalar que “44% das crianças vivem em famílias pobres”.

Para oferecer a elas um futuro mais promissor, ele defendeu melhor distribuição da receita tributária interna. “O que deveríamos perguntar é se o país está gastando certo. Se esses gastos correspondem aos nossos desejos”, explicou. A definição de como gastar é, segundo ele, uma decisão extremamente difícil. “Por isso que é preciso discussão. Democracia é isso”.

Todo economista tem que dialogar com o social, com os direitos humanos. Esse diálogo, hoje, é zero (Pedro Rossi)

Já o economista Pedro Rossi trouxe uma visão diferente da de Camargo, em relação à restrição orçamentária. “Estamos aceitando que as demandas sociais devem se adequar ao orçamento, mas o que precisamos é exatamente do contrário”, afirmou. “Todo economista tem que dialogar com o social, com os direitos humanos”, disse. “Esse diálogo, hoje, é zero”.

Para o pesquisador, nossas restrições orçamentárias são “auto impostas”, sobrepondo-se aos direitos sociais.  “É uma inversão de hierarquia que nosso debate fiscal está vivendo”, afirmou, observando que falta vontade política para distribuir os recursos na sociedade brasileira.

O professor lembra que a história do país foi marcada pela dívida externa, valorada em dólar, e talvez isso explique a preocupação com o endividamento em moeda estrangeira. Rossi cita a trajetória de países como Argentina e Equador, que, devido à dolarização, enfrentaram o enfraquecimento da economia. Mas, em relação ao Brasil, pergunta, certamente, referindo-se à quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Nacional, em 2005: “Cadê o FMI agora?”

O governo não é uma família. Ele tem uma máquina de fazer dinheiro, em papel que todo mundo aceita. É o governo quem define quanto arrecada (Pedro Rossi)

Em relação ao cenário atual da economia brasileira, Pedro Rossi explicou ser imprescindível “repensar o papel do Estado na reafirmação dos direitos sociais em momento de crise”. Para isso, em sua visão, os economistas têm que discutir mais com as áreas sociais a respeito do gasto público e a garantia dos direitos humanos.

O professor diz que a Teoria Moderna da Moeda tem estado em evidência no debate acadêmico nas universidades brasileiras. “Mesmo em momentos de crise, ela mostra que o gasto do governo é favorável para a Economia”, assinalou, criticando, a política de austeridade fiscal adotada pelo governo, que tem buscado o equilíbrio fiscal por meio de restrições orçamentárias para as políticas sociais. “É um caminho autodestrutivo, com impactos sociais muito fortes, negligenciados por economistas”.

A gestão governamental, afirmou Pedro Rossi, não pode ser comparada à gestão financeira de uma família. “O governo não é uma família. Ele tem uma máquina de fazer dinheiro, em papel que todo mundo aceita. É o governo quem define quanto arrecada”, observou.

Um erro muito comum, segundo Rossi, é atribuir ao aumento do gasto público o aumento da desigualdade. Citando estudo da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), Austeridade e retrocesso, ele destacou que o gasto público com saúde e educação produz exatamente efeito contrário, contribuindo para reduzir a desigualdade. “Apesar das evidências, é justamente o gasto público na área social que vem sendo alvo da política de ajuste fiscal”, apontou. Para Rossi “há um projeto de redução do Estado em andamento e seria preciso estudar o impacto desses ajustes na saúde das pessoas”. Ele fez uma provocação ao debate: “Por que não discutimos o fim do SUS? Mas colocar por trás do pano (essa escolha política) é mentira”. Conforme lembrou Gadelha, "o setor da saúde é responsável pela geração de 20 milhões de emprego direto e indireto no Brasil".

Randall Wray destacou alguns pontos de confluência expressos pelos economistas brasileiros. “É preciso elencar prioridades para as políticas públicas, escolhendo onde queremos gastar. É nisso que toda discussão sobre orçamento deve estar focada: onde se deve gastar, que percentual será destinado à esfera pública. Definir que políticas são prioritárias e persegui-las com prioridade não esgota seus recursos”, considerou. Além disso, é preciso garantir os recursos. “O que o governo gasta é extremamente importante, dando emprego com salário justo para as pessoas. Se o déficit orçamentário está aumentando, isso não quer dizer que as políticas são muito caras. É possível ter déficit orçamentário de forma positiva ou de forma negativa. A forma ruim se dá quando o crescimento é lento demais para gerar receita fiscal e outras formas de transferência de recursos, uma vez que a economia está se desenvolvendo de forma pobre”.

Do ponto de vista monetário, Wray assinalou o equívoco da ideia de que os vigilantes do mercado determinem os caminhos da indústria doméstica do país, quando se trata de gastar na própria moeda. “As restrições orçamentárias são importantes quando sua dívida é denominada em moeda estrangeira. Aí, você vai manter os vigilantes de títulos felizes. Se você não possui dívida em dólar, não precisa respeitar restrições orçamentárias, precisa garantir que seus gastos se deem onde os recursos estão disponíveis”, explicou. Para o economista, o pagamento pelos governos do serviço da dívida pública é uma forma ineficiente de gastar.

“O que faz a indústria cair é o banco central determinando as taxas”, disse Wray, afirmando, ainda, que as medidas de cortes não funcionam. “Austeridade não é caminho para o crescimento”.

Ele citou o exemplo do Brasil e sua economia altamente indexada. “Se você continua gastando em áreas onde os recursos são limitados, alimentará uma espiral inflacionária. Mesmo se houver muitos recursos”, observou.

Wray voltou a afirmar a política de garantia de pleno emprego como a forma ideal, mais eficiente, de gasto governamental, e, assim, o objetivo mais importante a ser alcançado por um governo. “Você estará oferecendo emprego a quem não tem, empregando trabalhadores da forma como são, nos locais onde estão, criando postos de trabalho que tenham condição de ocupar. Assim, eles se aperfeiçoam, tornam-se mais empregáveis, e, quando o setor privado volta a empregar, em uma fase de expansão da economia, pode contratar esses trabalhadores”.

Leia também: Randall Wray no Huffpost, em O Globo, no Valor Econômico e na Rádio Band News.

 

 

Da esquerda para direita: Pedro Rossi, Randall Wray e Carlos Gadelha. Foto: Bruna Sant'Ana