Projetos arcaicos e modernidade neoliberal: a legislação do trabalho pós-2016
Neste artigo, o autor traça um histórico dos direitos do trabalho no país, desde a década de 1930, passando pela CLT, em 1946, até os dias atuais, em que observa um “deslocamento do eixo político do sistema de relações de trabalho no Brasil”. O autor destaca as “condutas antissindicais” que se estabelecem com a ‘Lei da Liberdade Econômica’ (Lei nº 13.874), sancionada em setembro de 2019, uma “declaração de direitos do livre mercado”, conforme assinala. Trata-se, escreve ele, de “decapitar a força política dos sindicatos para subordinar os direitos públicos do trabalho ao poder irrestrito da propriedade”. Leia a seguir.
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No dia 20 de setembro de 2019, foi sancionada a Lei 13.874, reconhecida no debate público como a Lei da Liberdade Econômica. As medidas adotadas por essa declaração de direitos do livre mercado, abrigam uma miríade de alterações na legislação trabalhista, que, associadas à contrarreforma definida no governo Michel Temer (Lei 13.476/17), devem ser compreendidas como um verdadeiro deslocamento do eixo político do sistema de relações de trabalho no Brasil. Sob o argumento de combater o desemprego, destravar a economia e equilibrar as contas públicas, medidas dos dois governos que sucederam o golpe jurídico-parlamentar de 2016, guardam um interesse comum: decapitar a força política dos sindicatos para subordinar os direitos públicos do trabalho ao poder irrestrito da propriedade. Se com Temer esse objetivo articulou-se em torno da imposição do negociado sobre o legislado, com Bolsonaro o anátema centra-se em uma série de medidas que constitucionalizam condutas declaradamente antissindicais.
É certo que a regressividade das mudanças implementadas por Temer e Bolsonaro constituem um desejo antigo do patronato brasileiro – ele mesmo organizado em estruturas sindicais como a Fiesp, a Fiemg, a Firjan e a Fecomércio. Chama a atenção, no entanto, a força histórica incomum que tal programa revelou ao derrubar, em questão de meses, uma das legislações mais antigas do país nas duas casas congressuais. Como isso foi, e está sendo, possível?
Considerando os desafios que todo acontecimento histórico em andamento impõe à reflexão, um caminho proveitoso consiste em observar as linhagens políticas que atuam na formação das conjunturas. Dialogando com essa abordagem, o estudo seminal de Eagleton-Pierce¹ recupera quatro décadas de neoliberalismo para compreender como o seu corpus conceitual tornou-se linguagem popularizada na vida cotidiana, rotinizada na economia e política contemporâneas. Interessa-lhe, antes de tudo, captar como expressões caras ao projeto liberal de modernização, como empreendedorismo, flexibilidade, inovação e governança, foram capazes de colonizar a gramática política.
Tal perspectiva, sem dúvida, contribui para o entendimento das forças que desconfiguram os direitos do trabalho no Brasil atual. No entanto, como estamos formulando, sua força e capacidade de difusão parece se apoiar em um vínculo tácito com antigas expectativas conservadoras do pensamento patronal brasileiro. Anseios arcaicos e a moderna gramática neoliberal. Essa fusão, fragmentada e divergente em muitos pontos, misto de força e consenso mais que hegemonização inconteste, seria o dado histórico novo que dissolve o tecido democrático no Brasil, atingindo, particularmente, os direitos do trabalho.
É possível assumir que os efeitos do golpe de 2016 sobre o mundo do trabalho expressam determinações políticas que possuem certo passivo histórico
Nos anos 1990, sob a marca da chamada Terceira Via, o primeiro casamento entre a moção neoliberal e o tradicional conservadorismo brasileiro não vingou ante o arco das forças políticas que, bem ou mal, influenciava os liberais desde redemocratização. Com o século XXI em progressão, o desvanecimento do laço já precário do liberalismo brasileiro com a democracia foi definitivamente rompido ao se inscrever no segundo movimento de ascensão do neoliberalismo sobre a América Latina.
Seguindo essa trilha, é possível assumir que os efeitos do golpe de 2016 sobre o mundo do trabalho expressam determinações políticas que possuem certo passivo histórico. Em seu momento cosmopolita, teses internacionalmente reiteradas como a crise fiscal provocada pelas políticas de Bem-Estar, o desmonte da sociedade salarial decorrente das revoluções tecnológicas, e os efeitos incontornáveis da transição geracional projetadas para as próximas décadas, pressionam e deslegitimam uma regulação democrática do trabalho. Há algum tempo, a capacidade de persuasão dessas teses vem alimentando a convicção de que a economia deve governar os objetivos da política. A devoção ao humor do mercado, diariamente avaliado pela cotação do dólar e oscilações nas bolsas de valores, sugere que o poder soberano da política não deve se fiar no julgamento popular. Responsabilidade e austeridade fiscais compõem este caminho sacro, reiterado insistentemente pelas redações de mídias, pelo setor patronal e os mercados financeiros, nacional e internacional. A chamada Emenda Constitucional 95, que definiu um teto de 20 anos para os gastos públicos, se coloca, sem dúvida, ao abrigo dessa sacristia.
Até os anos 1990, as expectativas tradicionais do patronato brasileiro não se valiam de argumentos de austeridade e equilíbrio fiscal para viabilizar sua acumulação de capitais. Teses como o Custo Brasil, de que o direito do trabalho deve ser desregulamentado por onerar a produção, não estavam associadas ao movimento de terra arrasada perseguido pela economia política neoliberal contemporânea. Nesse enlace do tradicionalismo político patronal com a modernidade inclemente do neoliberalismo, acomoda-se, por exemplo, a inédita indiferença de grandes empresários com o desmonte dos investimentos do BNDES, e outras ações da insólita secretaria de desinvestimento econômico.
Na divisa neoliberal das relações de trabalho, o salário justo, o devido respeito à jornada regulamentada, o zelo pelas condições de produção que conferem ao trabalhador a dignidade, aparecem como um insulto excêntrico a modernização
A atualização de desejos arcaicos à moderna cultura da vida radicada no mercado, cultiva um sentido particular de liberdade: antipluralista, intolerante e avessa a qualquer vestígio de igualdade social. Nos termos do pensador espanhol Antoni Domènch (2004)², referindo-se ao século XIX: uma liberdade liberal-mercantil-aristocrática.
A defensiva histórica dos direitos universais e igualitários garantidos por instituições estatais é face sensível da popularização do léxico neoliberal. Barrada a capacidade de convencimento dessa cultura de solidariedade, se impõe um tempo terrificante, que pode agora se expressar sem peias e de forma incivilizada, como sempre o faz Jair Bolsonaro. É essa modernidade inclemente com aqueles e aquelas que vivem do trabalho, que o autoriza a dizer em público: “ou se tem emprego ou se tem direitos”!
Na divisa neoliberal das relações de trabalho, o salário justo, o devido respeito à jornada regulamentada, o zelo pelas condições de produção que conferem ao trabalhador a dignidade, aparecem como um insulto excêntrico a modernização. A nova Liberdade de trabalhar e produzir reivindica, sem concessões, a interdição de todas aquelas ações em que “o poder público e os sindicatos [possam] restringir (..) o funcionamento do comércio, serviço e indústria” ³. Na recente medida de Bolsonaro e Paulo Guedes, a Lei 13.874, de 2019, coloca como novo paradigma a proteção da iniciativa empresarial contra o trabalho. Em seu artigo 1º, § 2º, encontra-se definido que “todas as normas de ordenação pública” passam a ser interpretadas em “favor da liberdade econômica”, e não mais em favor do trabalhador – o, outrora, in dubio pro operário. No artigo 4º, a declaração de que “é dever da administração pública (...) evitar o abuso do poder regulatório”, exigindo prévia análise dos impactos na produção, não apenas constrange a proposição de normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho, como o exercício daquelas que já existem. No artigo 19, inciso V, 17 artigos da CLT foram integralmente suprimidos. Esses regulavam desde aspectos relativos ao trabalho de menores (artigos 17; 20; 21) e o registro de acidentes na Carteira de Trabalho (artigo 30), a dispositivos de fiscalização de empresas, previstos no antigo artigo 633 da CLT – o que afeta diretamente o exercício das Superintendências Regionais do Trabalho.
Todas essas medidas realizam o antigo desejo de enfraquecer o autogoverno do trabalho e impor o direito irrestrito de funcionamento da propriedade. É importante notar que o espírito intolerante dessa liberdade que se quer afirmar, vem acompanhado de artifícios retóricos diretamente conectados ao clima de guerra fria – de confronto maniqueísta, polarizado, acusatório e avesso ao debate – que caracterizou o espírito provocador de O Caminho da Servidão, de Hayek4. Seguindo essa linha, o programa extremista e primitivo de Paulo Guedes pode mesmo ser identificado no liberalismo oligárquico dos Whigs ingleses do século XVI, que representava “as famílias aristocráticas e proprietários de terras e os interesses financeiros das ricas classes médias” 5.
Na publicidade de guerra montada pelo ministro para blindar a propriedade privada contra o controle público, foram divulgados rankings do suposto grau de liberdade econômica dos países. Ignorando pesquisas de centros acadêmicos nacionais, Guedes fiou-se na classificação construída por think tanks ultraconservadores, que, apesar de enrustidos de neutralidade e cientificidade, são famosos por difundirem agressivamente sua ideologia política. Este é o caso, por exemplo, da Heritage Foundation, que classifica o Brasil em 150º lugar na escala de países devotados à liberdade econômica. Com sede em Washington D.C., esse instituto tornou-se famoso pelo seu colérico ativismo político no mandato de Reagan na presidência dos EUA, nos anos 1980. Também constaram no seu merchandising contra a tradição estatista brasileira o canadense Fraser Institute, que se autodescreve como neoconservador e libertariano, e o estadunidense Cato Institute, proveniente da Charles Koch Foundations. No entendimento dos referidos think tanks, a liberdade econômica, bem entendida, refere-se à circulação desimpedida de mercadorias: trabalhadores e capital.
A filiação política de Paulo Guedes ao circuito financista global está fortemente documentada na sua atuação no Banco BTG Pactual. No Brasil, a influência pública do seu liberalismo primitivo se difundiu também pela sua atuação na rede Ibmec e no conservador Instituto Millenium, um think tank do qual foi sócio fundador. Esta carreira bafejada pela devoção à mercantilização ontológica da vida, ganhou rumo decisivo com sua formação na Universidade de Chicago, ainda nos anos 1970.
A influência alcançada pela doutrina divulgada por essas organizações nos mais diversos países certamente evidenciam sua plasticidade em se ajustar a diferentes realidades nacionais. No caso do Brasil, como estamos discutindo, a inscrição e a capacidade de sedução desses fundamentos mercantis conservadores precisam ser compreendidas recuperando a longeva cultura antiestatista estimulada na vida política nacional.
Liberdade como sofisma: o segredo da chave liberal-conservadora
O período compreendido entre as proposições constitucionais de 1934 e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, é tipicamente reconhecido como o momento de transformações mais intensas para os direitos do trabalho no Brasil. Nas décadas que se seguiram, as interpretações acerca desse período convergiram, à direita e à esquerda, em muitas das críticas endereçadas ao imposto e à unicidade sindical, à Justiça do Trabalho e aos efeitos políticos da forma corporativa em que fora organizada a estrutura sindicalista. No contexto em que vivemos, fica claro, no entanto, que o desmonte desse sistema tem vínculo direto com a fragilização de normas que garantem proteção ao trabalho – muitas das quais criadas naquele período, como a proibição do trabalho infantil, a regulação da jornada de trabalho de oito horas, a assistência remunerada a trabalhadoras grávidas e a indenização para trabalhadores demitidos sem justa causa.
Como observa a historiadora Ângela Castro Gomes6, já na década de 1940, empresários paulistas lideravam campanhas contra os direitos do trabalho previstos na CLT sob o argumento de que a vigência dos mesmos quebraria a economia brasileira, deprimindo a concorrência internacional e afastando investimentos. Com a institucionalização do 13º salário, em 13 de julho de 1962, fruto de uma greve geral massiva de diversas categorias trabalhistas “as associações patronais anunciaram o fim do mundo: a lei seria demagógica, populista e irresponsável, típica de agitadores que mergulhariam o país no comunismo”7. À época, o jornal O Globo intervinha politicamente na conjuntura alardeando a “insolvência generalizada [que] resultaria da aprovação do 13º salário”, sendo esse “considerado desastroso para o país”.
Entre 1946 e o pré-64, a influência política do trabalhismo esteve fortemente associada às teses nacionalistas. O eclipse desse programa de desenvolvimento, é, como descreve Guerreiro Ramos8, um fenômeno de difícil análise, uma vez que obedece múltiplas causalidades. Menos desafiador, no entanto, é localizar que, no vácuo da soberania nacional, ascenderam interpretações que valorizavam a abertura à circulação mundial de capitais como alavanca ao desenvolvimento, ainda que com dependência.
A Reforma do Estado, em 1995, e a mal nominada Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada em maio de 2000, além da referida Emenda Constitucional 95, expressam bem o triunfo historicamente contingente dessa razão liberal-mercantil
Da transição dos governos militarizados à redemocratização, o conceito de patrimonialismo talvez seja aquele que melhor sintetize a crise da tradição nacionalista do qual se alimentaria a tese liberal psdbista de repactuação da democracia pelo mercado. Sob essa proposição, todas as mazelas da vida nacional passaram a ser associadas ao tamanho do Estado. Considerações em torno de empresas estatais, do número de ministérios e servidores públicos, tornaram-se, via de regra, submetidos à crítica rebaixada da corrupção e do nepotismo, não importando sua contribuição para o país. Direitos do funcionalismo público tornaram-se privilégios corporativos, como a estabilidade funcional e o regime próprio de previdência social. A desburocratização, a privatização e as parcerias com o setor mercantil converteram-se em mantra. E, por fim, a oposição entre populismo e realismo político, tornou-se síntese sabuja para categorizar os defensores de projetos insensatos estatistas, daqueles, pró-mercado, guiados pelo senso de moderação e equilíbrio.
A Reforma do Estado, em 1995, e a mal nominada Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada em maio de 2000, além da referida Emenda Constitucional 95, expressam bem o triunfo historicamente contingente dessa razão liberal-mercantil.
Na década de 1990, a contradição dos direitos públicos do trabalho com a forma democrática, expressava-se pelo argumento da competitividade e da eficiência cobrada pelo mundo dos negócios na modernidade. Materializava-se, então, a terceirização das atividades-meio no serviço público e no setor privado, e a flexibilização da jornada trabalhista – Lei 9.601/98. Em 2001, nos estertores da Era FHC, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP)9 noticiava que, em seus dois mandatos, foram suprimidos mais de 50 direitos do funcionalismo público.
A associação entre os direitos trabalhistas e o desempenho negativo da economia brasileira deve ser compreendida como uma ideia-força da tradição conservadora. Em julho de 2017, em solenidade no Palácio do Planalto, Michel Temer asseverava que a “modernização das leis trabalhistas eram parte da revolução em curso no país”. No centro das transformações, colocava-se a sobreposição da negociação coletiva, e individual, acima da legislação trabalhista. Segundo ele, a hipossuficiência do trabalho frente aos interesses do capital, fundamento estrutural da CLT, já havia sido superada: “Atualmente há uma igualdade entre as partes na negociação”, declarava.
Ao tempo em que fragilizava o princípio legal como baliza limite para os contratos de trabalho, o governo adotava ainda várias medidas que passaram a permitir ao campo patronal negociar individualmente com os trabalhadores a redução do tempo de almoço, a contratação sem jornada e salários fixos. A terceirização irrestrita, incidindo sobre as atividades-fim das empresas, se associava ao esforço de liberar contratos em que as mulheres em período de amamentação poderiam ser alocadas para locais insalubres – posteriormente, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Com a Lei 13.476/17, instituída por Michel Temer, ficaram definidos ainda severos limites e punições àqueles que, a partir de então, ingressassem na Justiça do Trabalho requerendo respeito aos direitos previstos no acordado para o seu expediente. A punição à chamada litigância de má-fé, materializava, a bem da verdade, os preconceitos abertos que sustentam o ódio de classe e raça, nunca superados no Brasil.
Nessa modernidade inclemente, recupera-se o método de Margareth Thatcher, no qual se neutraliza o sindicalismo para impor a condição de servil mercadoria a quem vive do trabalho. Enquanto Temer impediu os sindicatos de acessar a arrecadação anual do imposto sindical, Bolsonaro dispensou as empresas da obrigação de recolher as contribuições dos trabalhadores sindicalizados.
Ao tempo em que fragilizava o princípio legal como baliza limite para os contratos de trabalho, o governo adotava ainda várias medidas que passaram a permitir ao campo patronal negociar individualmente com os trabalhadores a redução do tempo de almoço, a contratação sem jornada e salários fixos
Em sentido gramsciano, o claro risco à democracia da atualidade provém da capacidade de legitimação política que irradia da associação entre o liberal conservadorismo brasileiro e o, ora disseminado, neoliberalismo. Ambos com suporte judicial, representação parlamentar e base social de apoio costurada em distintos extratos sociais. Sendo esse o terreno por onde se move a conjuntura dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, compreende-se a torrente que atingiu os direitos do trabalho em nome da propalada liberdade econômica.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que na economia política do pós-golpe de 2016, vinga o entendimento de que menos direitos significam mais recursos disponíveis ao investimento econômico empresarial, e, por tal via, mais oportunidades de empregos. No momento em que escrevo, a PNAD contínua do IBGE nos informa que o desemprego atinge 12,5 milhões de brasileiros e a taxa da população desocupada bate um recorde histórico, alcançando 93,8 milhões de pessoas10. Estudos apontam que quando as novas condições de contratação – como o microempreendedor individual, a terceirização e o vínculo intermitente – expandem postos de trabalho, essas o fazem comprimindo a participação dos salários na composição geral da riqueza produzida. Esse parece ser o caso da dinâmica econômica estadunidense, que combina crescimento do PIB, baixas taxas de desemprego e aumento da desigualdade11. A contratese, de que a precarização geral dos direitos comprime a massa salarial agregada, desestimula o consumo popular, contrai a arrecadação do governo e seus possíveis investimentos públicos, se encontra vetada à narrativa pública na atual conjuntura.
Essa recuperação histórica fornece elementos para pensarmos as forças do golpe jurídico-parlamentar de 2016 como fenômeno que enreda antigas razões autoritárias e aquelas de fundação historicamente mais recentes. Elitistas, ambas não reconhecem dignidade em quem trabalha. Lembremos que essa unidade entre o conservadorismo patronal clássico e cultores modernos do liberalismo mercantil, também se fez presente de forma trágica na ditadura chilena que vitimou Salvador Allende, em 1973.
Na convalescente democracia brasileira, a guerra semântica que acompanha as investidas de Paulo Guedes e Bolsonaro constitui um capítulo à parte, e confere particularidade histórica ao que estamos vivenciando. A inversão de sentidos da realidade – como a afirmação de que o Brasil beirou o socialismo nos governos petistas – assume sem constrangimentos um anti-intelectualismo inédito. Nessa toada, a supressão de direitos é declarada como expansão de liberdades, e onde se coloca a servidão anunciam modernização e democracia.
Como procuramos localizar, a desconstrução do regime de contratação do trabalho no Brasil, passa pelo alinhamento político forjado entre a voracidade irascível do ultraliberalismo de Guedes e Bolsonaro e correntes liberal-conservadoras reunidas em torno de Temer e Meirelles. Esta convergência histórica colocou em suspenso a democracia, e no campo do trabalho promoveu muito mais que uma flexibilização das relações produtivas. Do pacto social centrado em relações tripartites neocorporativas reguladas pelo Estado, resta o entendimento de que entre empregados e empregadores se coloca agora um encontro igual de empreendedores. Não mais conflito, mas exigência de colaboração entre verdugos e desterrados do trabalho. Ilegítima, essa base necessitará de uma escalada autoritária e coercitiva, ou não se manterá.
Nessa toada, a supressão de direitos é declarada como expansão de liberdades, e onde se coloca a servidão anunciam modernização e democracia
Como aponta Stuart Hall12, seria um erro supor que o ultraliberalismo rasgado que vem se impondo como moralidade normalizada das relações de trabalho no Brasil se funda em um Estado fraco, laissefaireano. A imposição do novo ethos exige que o Estado persiga sem restrições o crescimento econômico para gerar acumulação privada. Nessa área degradada em que a comercialização da força de trabalho é convidada a se ajoelhar, qualquer legislação de sentido democrático-republicano se torna ideia subversiva.
A orientação geral dessa liberdade intolerante que busca expandir a área de não intervenção do Estado e sindicatos na vida empresarial não é nova. A particularidade parece estar no alinhamento que foi capaz de produzir uma poderosa síntese histórica. Como bem notou William Sewell Junior13, o direito irrestrito da propriedade foi a tônica do convulsionado século XIX. À época, o entendimento liberal da liberdade já se entendia em contraponto radical às corporações trabalhistas que reivindicavam a interferência do Estado com vistas ao equilíbrio das relações de trabalho. Na França do século XVIII, esse sentido aristocrático da liberdade organizou a reação Termidoriana da alta burguesia financeira contra a participação popular na Revolução, saqueando as riquezas do trabalho.
No século XIX estadunidense, os trabalhadores negros republicanos, confrontados com esse mesmo espírito de opressão, se levantaram reafirmando que “o trabalho dependente era inconsistente com independência econômica que todo cidadão republicano merecia”14. Nos dias atuais, ocorrem na América Latina insurgências políticas que podem ser decisivas a refundação da democracia no século XXI. Neste momento, milhares de homens e mulheres chilenos estão nas ruas vivenciando aquela que pode ser o maior levante daquele país contra a modernidade neoliberal. No Brasil, por ora, a reação a essa radical moção desinstituinte de direitos, que atenta contra a própria democracia, ainda não encontrou a sua síntese e alinhamento históricos de força.
* Doutor em Ciência Política. Professor adjunto do Instituto de Medicina Social/Uerj; Pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiro (Cerbras/UFMG).
Bibliografia:
- EAGLETON-PIERCE, M. (2016) Neoliberalism: The Key Concepts. Abingdon: Routledge.
- DOMÈNCH, A. (2004) El eclipse de la fraternidad. Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona: Crítica.
- Ver http://www.economia.gov.br/noticias/2019/04/mp-da-liberdade-economica-reduz-intervencao-do-estado-nas-atividades-economicas
- HAYEK, F.A. von. (1987). O caminho da servidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; Instituto Liberal.
- Ver https://www.britannica.com/topic/Whig-Party-England
- GOMES, A. C. (1988). A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro:FGV.
- CAMPANTE, R. G. O 13º veio de uma greve geral. Brasil de Fato [online], Belo Horizonte, 3 de Maio de 2017 às 15:00. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/05/03/o-13o-veio-de-uma-greve-geral/
- O colapso do nacionalismo no Brasil. Revista Inteligência, 4 out. 2019. Disponível em: <https://insightinteligencia.com.br/arquivos/229>. Acesso em: 10 nov. 2019
- Ver: http://www.diap.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6061:fhc-suprimiu-mais-de-50-direitos-dos-servidores-publicos&Itemid=207
- Ver: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25814-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-11-8-e-taxa-de-subutilizacao-e-24-0-no-trimestre-encerrado-em-setembro-de-2019
- WADE, R.H. (2017) Is Trump wrong on trade? A partial defense based on production and employment. Real world economic review. pp. 43-63.
- HALL, S. (2011) The Neoliberal Revolution. Soundings: The Neoliberal Crisis. Jonathan Rutherford and Sally Davison, (eds). Pp8 -26, London: Lawrence Wishart.
- JR SEWELL, W. (1980) Work and Revolution in France: The Language of Labor from the Old Regime to 1848. New York: Cambridge University Press.
- GOUREVITCH, D. A. (2014) From Slavery to the Cooperative Commonwealth: Labor and Republican Liberty in the Nineteenth Century. New York: Cambridge University Press.
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