Controle de câncer no mundo e no Brasil: estado da arte e o desafio do acesso
Recentemente, a Unidade de Inteligência (UI) da revista The Economist publicou o resultado de uma pesquisa acerca do estado da arte do controle do câncer no mundo. Combinando 45 dados objetivos do funcionamento e estrutura do sistema de saúde de 28 países e a opinião de uma centena de especialistas em todo o mundo, a revista buscava identificar de que maneira esses países estavam preparados para enfrentar a atual epidemia global que representa hoje o câncer. O Trabalho da UI visava gerar um índice (ICP), para analisar e comparar a situação dos países analisados. A Escolha dos países procurou considerar uma mostra que expressasse realidades de diferentes níveis de desenvolvimento econômico.
De fato, de acordo com o IARC/OMS, em 2017 ocorreram 24,5 milhões de novos casos de câncer no mundo. Ou, se excluídos, os caso de pele não melanoma, 16,8 milhões, resultando 9,6 milhões de mortes por câncer. Corroborando esse cenário, uma análise sistemática, publicada em setembro de 2019 no Jama Oncology, sobre 29 tipos de câncer em 195 países, mostra, na configuração da história natural desses tipos de cânceres, uma grande diversidade e heterogeneidade das populações atingidas em termos de exposição a fatores de risco, características socioeconômicas, estilos de vida e acesso a serviços de saúde e programas de prevenção e detecção precoce.
Tudo isso, justifica, dependendo do país, segundo os dados da IARC/OMS, o câncer como primeira ou segunda causa de morte antes dos setenta anos em mais da metade dos países analisados.
Do ponto de vista econômico, o estudo da The Economist estimou que, em nível global, os gastos diretos e indiretos com o tratamento do câncer estariam ao redor de 1 trilhão de dólares por ano. É difícil calcular todos os componentes diretos e indiretos que influenciam o custo total do tratamento, mas calcula-se que os medicamentos contra o câncer constituam entre 10% a 30% desse montante. Um estudo de 2007 realizado na França mostrou que a contribuição dos custos dos medicamentos era inferior a 20%, com aproximadamente 70% do gasto total com a doença, representado pelo uso de recursos de saúde, como hospitalização. No Brasil, esse custo é estimado em 10%. O gasto do SUS com o câncer cresceu à taxa de 9% ao ano, entre 2010 e 2014. Os gastos com quimioterapia e radioterapia superaram R$ 2 bilhões. Outro estudo em nosso meio identificou, entre 2010 e 2015, um crescimento dos gastos de oncologia de 66%, saltando de R$2,1 bilhões para R$3,5 bilhões. Isso representa um aumento da ordem de 11% ao ano.
No estudo da The Economist, o Brasil ficou situado da seguinte forma: 3ª posição (atrás apenas do Reino Unido e da Austrália), em relação ao indicador de políticas e planejamento; 10ª posição no quesito prestação de serviços; 14ª com relação a Sistema de Saúde e governança; e 11ª, no escore geral entre os 28 países.
Dessa forma, muito há ainda de ser feito, sobretudo em termos de acesso aos serviços e recursos tecnológicos de diagnóstico e tratamento. Temos, ainda, que considerar as grandes disparidades regionais em relação aos indicadores e a relação I:M. Essas variações estão ligadas a desigualdades socioeconômicas e à oferta e distribuição dos serviços de saúde.
Relatório de 2018 do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre auditoria operacional da Política Nacional de Prevenção e Controle de Câncer reforçam essas questões e confirmam o porquê da nossa posição no ranking apresentado pela The Economist.
O TCU mostra preocupação com a situação encontrada, sobretudo no acesso aos serviços de saúde por falhas na regulação, déficit de profissionais, estrutura deficiente na rede de media complexidade e despreparo da atenção primária para a detecção precoce. Embora registre uma ampliação de alocação de recursos para procedimentos de quimioterapia, cirurgia e radioterapia no período entre 2010 e 2017, o relatório aponta que, o principal indicador de acesso ao sistema; ou seja, o estadiamento da doença no momento de admissão na atenção especializada, se mostra ainda bastante tardio.
Apesar de termos no Brasil uma política bem estruturada (uma das três melhores entre os países analisados), o acesso e a dotação de recursos materiais e humanos permanecem insuficientes e inadequados, em função de uma fragmentação na estrutura e organização dos serviços, tanto públicos quanto privados.
No entanto, considero importante assinalar que no campo da prevenção primária, o Brasil vem obtendo êxitos, sobretudo com programa da OMS-CQCT, voltado ao controle do tabagismo, reduzindo significativamente a proporção de fumantes na população, o que certamente resultará na redução de incidência e mortalidade, sobretudo por câncer de pulmão e outros afetados pelo fumo. Há de se destacar também os programas voltados à imunização contra hepatite B e HPV, entre outras medidas que terão impactos positivos em médio e longo prazos .
Apesar de termos no Brasil uma política bem estruturada (uma das três melhores entre os países analisados), o acesso e a dotação de recursos materiais e humanos permanecem insuficientes e inadequados em função de uma fragmentação na estrutura e organização dos serviços, tanto públicos quanto privados
Desejo também pontuar a importância da comunicação e da mobilização da sociedade civil para alcançar melhores resultados na área da Oncologia. Assim, é fundamental mencionar o movimento Todos Juntos pelo Câncer que, por iniciativa da Abrale [Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia], e sob a liderança de sua presidente, Merula Staeghel, elaborou a Declaração para a melhoria da atenção ao câncer no Brasil. Esse documento representa um instrumento para se acompanhar a implementação da Política Nacional de Controle de Câncer, elaborado com a participação de mais de uma centena de entidades representativas; de pacientes, das sociedades cientificas, movimentos sociais e de órgãos do próprio governo.
Acesso a novas tecnologias
A Oncologia é sem duvida a área de maior interesse científico e atrai grande volume de investimentos em pesquisa e desenvolvimento.
Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), publicado em 2018, em parceria com o Instituto de Economia da UFRJ, utilizando a metodologia de avaliação prospectiva (Foresight Assesment), avaliou a opinião de mais de 2 mil pesquisadores em todo o mundo quanto às tecnologias com potencial de impacto no diagnóstico e tratamento do câncer nos próximos 30 anos. Os resultados do estudo indicaram nove tecnologias: terapias com anticorpos monoclonais, tumor delivery (nanotecnologia), terapias celulares, vacinas anti-câncer (imunoterapia), terapias com RNA, vírus oncolíticos, edição genética, biópsia líquida e imagem molecular. Para cada uma delas, os cientistas identificaram fatores de sucesso ou de fracasso neste período de tempo, bem como as barreiras mais importantes em termos de conhecimento científico acumulado e custos inerentes a P & D.
Esse estudo está sendo, no momento, replicado, em parceria do CEE com as sociedades de especialistas do Brasil, para conhecer a opinião não só de pesquisadores, mas também de profissionais que atuam diretamente na assistência ao paciente, seja na área publica ou privada.
Na busca da cura do câncer, uma longa jornada vem sendo percorrida, com grande acúmulo de conhecimento, sobretudo nas áreas de medicina e biologia. Nos últimos anos com o advento da genômica, da proteômica e a imuno-oncologia, podemos considerar que ocorreu uma quebra de paradigma, sobretudo no tratamento medicamentoso do Câncer, com uma forte mudança de foco: dos órgãos e tecidos em direção ao ambiente celular e molecular. A boa noticia é que estes conhecimentos veem gerando inúmeras possibilidades diagnósticas,terapêuticas e de prevenção.
Mas a questão que fica é: como podemos garantir a equidade de acesso e a sustentabilidade dessas novas realidades e promessas de tratamento presentes no ambiente atual?
Há certa tendência em se acreditar que a chegada dessas novas terapias aos pacientes seja apenas uma questão de tempo. Mas isso não parece ser suficiente. Para se alcançar a cura ou prolongamento da vida com qualidade serão ainda necessários, não só muitos recursos aplicados em P&D, como também decisão política por parte de governos, e melhor compreensão por parte da sociedade das reais possibilidades e alcance de todas essas novas tecnologias e inovações.
A Escola Europeia de Oncologia, em reunião do Fórum Mundial de Oncologia,realizado em Lugano, em 2015, considerou que será necessário o desenvolvimento de novos modelos de colaboração público-privada, com a participação do setor acadêmico e entidades da sociedade ,inclusive sem fins lucrativos para resolver, por exemplo, a questão da resistência as drogas, que por ser caro e arriscado do ponto de vista econômico , não é prioridade do setor comercial, que ,avesso aos riscos, dá prioridade a produção de novas drogas que, somente marginalmente atrasam o inicio da resistência.Com isso, vão tornando insustentáveis os custos dos medicamentos até mesmo nas economias mais ricas. Será, ainda, necessário aperfeiçoar os mecanismos de regulação de custos e de incorporação tecnológica no sistema de saúde público e também nos planos privados.
Mas a questão que fica é: como podemos garantir a equidade de acesso e a sustentabilidade dessas novas realidades e promessas de tratamento presentes no ambiente atual?
Desde a promessa do presidente dos EUA Richard Nixon, em 1971, de vencer a guerra contra o câncer, muito progresso foi realmente alcançado. Infelizmente esse modelo não alcançou o resultado esperado e desejado. Mas criou nas pessoas a expectativa de conseguir uma bala mágica, que numa guerra, alcançasse cura total para o câncer.
Nesse sentido, é necessário que todos nós – especialistas, gestores, a sociedade organizada e a indústria – pensemos em como podemos cooperar para introduzir um conceito de valor para o cuidado do paciente, não só em termos de custo, mas em termos éticos e bioéticos, na busca de soluções inovadoras e economicamente viáveis para fazer frente ao controle do câncer no século XXI. Um valor que, superando metáforas de guerra e quimeras tecnológicas, transforme-se na estrada de uma jornada sustentável e humanizada, centrada nas necessidades dos pacientes e da sociedade.