Francisco Inácio Bastos: Abuso de álcool, ainda um desafio em saúde pública

Francisco Inácio Bastos: Abuso de álcool, ainda um desafio em saúde pública

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Silhueta em preto de pessoa bebendo no gargalo, em fundo escuro

A partir de uma ideia criativa, de substituir por uma designação química pouquíssimo conhecida a denominação habitual do álcool, o professor David Nutt, do Imperial College, de Londres, apresenta em seu livro recente Drugs without the hot air (disponível para aquisição aqui) as consequências do uso prejudicial de uma substância misteriosa, que, como o leitor descobre bem mais adiante, trata-se de nada menos que o álcool, presente nas bebidas alcoólicas habitualmente ingeridas por todo nós (exceção feita a uma fração diminuta mas relevante de abstêmios laicos e uma fração imensa de pessoas que não fazem uso por motivo religioso, como os muçulmanos).

O título original em inglês dá lugar a uma tradução literal pouco feliz em português, e se tivesse de dar um título à sua eventual tradução para nossa língua, eu o denominaria: Drogas: uma visão a partir de uma perspectiva ponderada, pois é isso que o autor (que tem formação em psiquiatria e psicofarmacologia) procura fazer ao longo do livro: apresentar as principais evidências científicas, tentando desembaraçá-las (na medida do possível, embora reconheça a imensa dificuldade de fazê-lo) dos mitos, do pânico moral e de políticas contraproducentes, que fizeram com ele renunciasse ao seu posto de coordenador do Comitê Assessor sobre o Abuso de Drogas, do governo britânico, e, em paralelo à sua consagrada carreira acadêmica, e passasse a coordenar um comitê independente de estudos e avaliação da questão do consumo de substâncias (ver em: http://www.drugscience.org.uk/).

Destacado com o Prêmio de Disseminação de Ideias 2014 (Transmission Prize for the Communication of Ideas 2014) e com a designação de fortemente recomendado pela Associação Médica Britânica (Highly Commended, Popular Medicine, British Medical Association Awards), o livro de Nutt, em seu propósito de popularização da ciência, é bastante simples e objetivo: uma obra de referência, despida das habituais tecnicalidades e polêmicas políticas, que poderia ser lida pelos seus quatro filhos e servir de subsídio a debates entre pais e filhos sobre o tema (aliás, objeto do capítulo 17, denominado: O que eu deveria dizer aos meus filhos sobre drogasWhat should I tell my kids about drugs?).

Suas reflexões sobre o álcool evidenciam as inúmeras falhas dos mecanismos regulatórios em operação no Reino Unido (e no mundo em geral), o que suscita uma primeira questão: regular os padrões de venda, disseminação e uso de quaisquer substâncias psicoativas potencialmente associados a riscos e danos (e todas o são, desde o inocente cafezinho, desde que utilizado de forma imoderada) é desejável, necessário, quase sempre está implementado, ao menos em parte (com importantes variações pelas sociedades e culturas), mas pode simplesmente não ter sintonia alguma com o mundo real, e simplesmente, não funcionar.

Este parece o caso do álcool, que, ao contrário do tabaco, não tem tido seus padrões de consumo, especialmente prejudicial, como no caso do uso intenso em períodos curtos de tempo (conhecido em língua inglesa como binge) reduzidos ou sequer moderados em anos recentes, muito pelo contrário. Enquanto em relação ao tabaco, observa-se uma substancial redução do consumo na ampla maioria dos países com renda elevada e média (inclusive o Brasil), tal não se verifica em relação ao consumo do álcool, que não apenas tem aumentado, como se revestido de características cada vez mais prejudiciais, como o uso em binge, o consumo em idades cada vez mais precoces, por vezes no contexto de maratonas adolescentes de uso contínuo e intenso, que têm resultado em óbitos, inclusive no Brasil.

O álcool, ao contrário do tabaco, não tem tido seus padrões de consumo, especialmente prejudicial, reduzidos ou sequer moderados em anos recentes, muito pelo contrário

Mas, ao contrário do habitual apelo à proibição, que no caso do álcool se mostra inevitavelmente associado, tanto entre pesquisadores como no imaginário popular, ao período denominado Lei Seca, vigente nos Estados Unidos entre 1920-1933, a partir da 18ª emenda à Constituição norte-americana (posteriormente suprimida, em dezembro de 1933), o autor apela não a uma Nova Cruzada Proibicionista, mas sim a uma regulação mais inteligente e abrangente, e, que antes de tudo, funcione. Creio que ninguém deseja uma nova era de falsificação de bebidas e criminalidade altamente organizada, simbolizada, nos filmes hollywoodianos, na figura de Al Capone.

No Brasil, temos curiosas experiências com legislações que são definidas como leis que não pegam (expressão típica de um país onde o hiato entre lei e os atos & atitudes cotidianas parece intransponível). Uma das mais típicas entre essas famosas leis que não pegam está a proibição da venda bebidas de álcool a menores de 18 anos, segmento populacional em que o uso prejudicial de álcool mais cresce, proporcionalmente.

No outro extremo, da proibição ineficaz, está situada a proposta de autorregulação, igualmente ineficaz, da própria indústria, conforme avaliação de dezenas de pesquisadores independentes, assim como dos mais diversos organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Portanto, em se tratando de álcool, flutuamos, como os antigos gregos, entre Cila e Caribds, ou mais diretamente, entre riscos iminentes (no caso grego, à travessia marítima) de naufrágio em uma dimensão chave da saúde pública, dado o enorme peso do consumo prejudicial de álcool em todas as estimativas mundiais de Carga de Doença, em termos de mortalidade, morbidade e prejuízos à capacidade funcional dos que dele fazem uso prejudicial.

No outro extremo, da proibição ineficaz, está situada a proposta de autorregulação, igualmente ineficaz, da própria indústria

Algumas medidas soam como óbvias, como a proibição da propaganda e patrocínio de eventos esportivos ou a promoção da associação midiática, absolutamente frequente, entre o ato de beber e o sucesso profissional, sexual, o reforço à autoestima, que veiculados praticamente todos os dias, em todos os nossos meios de comunicação, acabaram por se naturalizar, e já nem mais são notados como iniciativas questionáveis.

Mas, enquanto toda carga de moralismo se concentra nas drogas denominadas ilícitas, como a maconha, o caráter lícito do álcool como que esvazia, a priori, quaisquer perspectivas de seu uso eventualmente prejudicial. Não que todo uso de álcool (ou café, açúcar ou sal) seja necessariamente prejudicial, muito pelo contrário. Mas dado que se trata da substância psicoativa de uso mais prevalente, de mais fácil acesso, e com diversas apresentações de preço (e, em geral, qualidade) muito baixo, mesmo para os segmentos populações mais pobres, além de uma imensa disponibilidade (que engloba os mais diferentes pontos de venda, desde supermercados até lojas de conveniência de postos de gasolina), qualquer fração minimamente expressiva de uso prejudicial, ao nível populacional, é sempre relevante em saúde pública.

Enquanto toda carga de moralismo se concentra nas drogas denominadas ilícitas, como a maconha, o caráter lícito do álcool como que esvazia, a priori, quaisquer perspectivas de seu uso eventualmente prejudicial

Em suma, como mostra David Nutt, ou retiramos o debate sobre drogas do clima de exaltação (por vezes, fronteiriço à histeria coletiva e ao pânico moral), e pensamos em medidas práticas, que funcionem, e que sejam adequadamente implementadas e monitoradas, inclusive, para que, em caso de não funcionarem, possam ser alteradas ou aperfeiçoadas, continuaremos navegando em águas turvas, a caminho do naufrágio, como bem lembrado pelos antigos gregos, aliás consumidores habituais do vinho, no contexto de diversos rituais e celebrações, como parte da assim denominada dieta mediterrânea, que tem-se mostrado tão saudável e balanceada.

Ou seja, desde os gregos, há usos e abusos!

* Pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (Icict/Fiocruz) e coordenador do Programa Institucional Álcool, Crack e Outras Drogas (PACD) da Fiocruz.

Francisco Inácio Bastos (Reprodução)