Pesquisa mostra que Rio de Janeiro municipalizou atenção primária à saúde, mas apresenta ‘fragilidade’ na relação público-privado

Pesquisa mostra que Rio de Janeiro municipalizou atenção primária à saúde, mas apresenta ‘fragilidade’ na relação público-privado

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(Foto de Renata Missagia/SMS)
Clínica da Família da rede municipal de Saúde do Rio de Janeiro (Foto de Renata Missagia/SMS Rio de Janeiro)

 

 

A utilização e o financiamento dos serviços de atenção primária à saúde (APS), bem como a relação entre as esferas pública e privada na oferta desses serviços estiveram em foco no estudo realizado pelo pesquisador Gustavo Zoio Portela, em sua tese de doutorado Avaliação do desempenho da atenção primária à saúde no município do Rio de Janeiro. Defendida em 2013 na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e orientada pelo professor José Mendes Ribeiro, a tese deu origem a três artigos acadêmicos em fase de publicação, e buscou compreender como o município se comporta sob um modelo de organização regionalizada, hierarquizada e orientada pela APS.

A escolha do Rio de Janeiro deveu-se às “singularidades sociais, econômicas e demográficas do município”, que, ao mesmo tempo, reúne características de ex-capital do país e enfrenta as dificuldades dos grandes municípios de reorganizar a atenção à saúde, além de ter iniciado uma reforma do sistema de saúde em 2009, “com ênfase na atenção primária e na Estratégia Saúde da Família, da forma como preconiza o Ministério da Saúde”.

De responsabilidade dos municípios e tida como porta de entrada no Sistema Único de Saúde (SUS), a APS tem como atributos, além da atenção de primeiro contato, a longitudinalidade (acompanhamento do paciente ao longo do tempo), a integralidade e a coordenação do sistema. Gustavo, que associou vivência acadêmica e experiência como gestor e como profissional de saúde – formado em Odontologia, ele atuou como dentista na Estratégia Saúde da Família em Duque de Caxias, e, em 2009, foi assessor da Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde (Subpav) do Rio de Janeiro –, quis investigar os efeitos da política de APS no município, no ano de 2012, período equivalente ao final do primeiro ciclo da reforma municipal do setor Saúde.

“Queria compreender a capacidade de governo do município sobre procedimentos ambulatoriais comuns, bem como a sua retenção em estabelecimentos orientados pela APS”, diz. A hipótese de Gustavo foi de que, no sistema local de saúde do Rio de Janeiro, a prestação de ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde se dava por separação de funções pelas três instâncias federativas – municipal, estadual e federal.

Aspectos bem sucedidos e fragilidades precisam ser trazidos à tona para se garantir o aperfeiçoamento do sistema e a ampliação da Estratégia Saúde da Família

No caso do Rio de Janeiro, o pesquisador encontrou aspectos bem sucedidos e “fragilidades”, que, como ressalta, precisam ser trazidas à tona para que se garanta o aperfeiçaoamento do sistema e se amplie o potencial da Estratégia Saúde da Família – proposta governamental de mudança do modelo de atenção à saúde, em substituição à rede de atenção primária tradicional.

 

Condições de utilização

Por meio de um programa estatístico, Gustavo examinou as condições de utilização e financiamento de 380 serviços de saúde, dentro do município, que haviam registrado, segundo o Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/MS), alguma atividade ambulatorial, em 2012, e mais de 50 milhões de procedimentos (consultas, radiografias, ultrassonografias, entre outros) realizados naquele ano. As análises foram realizadas a partir de dois pontos de vista. Um deles foi o da esfera administrativa em que se deu o serviço (em unidade federal, como os hospitais federais; estadual, como as Unidades de Pronto Atendimento; municipal, como as unidades básicas de saúde; ou privada, serviços contratados ou conveniados que integram o SUS).

Foram examinadas as condições de utilização e financiamento de 380 serviços de saúde do Rio de Janeiro e mais de 50 milhões de procedimentos

O outro referiu-se à natureza organizacional do serviço (realizado por organizações da administração direta da saúde, como o Ministério da Saúde e as secretarias de estado e municipais de Saúde; da administração direta de outros órgãos, como os ministérios da Educação, do Exército, da Marinha etc.; da administração indireta, como fundações públicas e autarquias; por  empresa privada; e instituições sem fins lucrativos, como as fundações privadas e entidades beneficentes).

Estar sob a esfera administrativa municipal e sob administração direta da área saúde, explicou Gustavo, foram consideradas evidências de que os serviços ambulatoriais estavam sob maior comando do município, sendo, consequentemente, maior a sua capacidade de gestão sobre a APS.

Os serviços foram analisados também de acordo com o tipo de estabelecimento: estabelecimento ambulatorial; serviço de apoio diagnóstico, hospital com ambulatório, pronto atendimento e outros. “Essa categorização buscou identificar se os procedimentos ambulatoriais cotidianos concentram-se nas unidades particularmente responsáveis por essa modalidade de atenção, levando em consideração que a reforma do sistema de saúde local orientou-se pela expansão desses serviços, principalmente aqueles relacionados à ESF”.

                                      

Conceito ampliado de atenção primária à saúde

Em seu estudo, Gustavo adotou a definição de atenção primária à saúde como a que abrange “todo serviço de atenção ambulatorial de primeiro nível, tomada como uma proxy [conceito adaptado] da utilização da rede básica”. Com isso foram incluídos na análise serviços que usualmente não são considerados como de atenção primária, diz o pesquisador. “Se fizéssemos um estudo adotando exclusivamente as unidades da Estratégia Saúde da Família, perderíamos um conjunto de serviços que nos sistemas locais de saúde complexos como o do Rio respondem pela atenção ao primeiro contato, bem como a demais atributos característicos da APS". Desta forma, o estudo levou em conta não só os estabelecimentos “tipicamente ambulatoriais” – centros de saúde e as unidades da Estratégia Saúde da Família – onde tradicionalmente a atenção primária se dá –, como também serviços menos usuais neste tipo de análise, como os hospitais.

Se fizéssemos um estudo adotando exclusivamente as unidades da Estratégia Saúde da Família, perderíamos serviços que, nos sistemas locais de saúde complexos como o do Rio, respondem pela atenção ao primeiro contato

De acordo com Gustavo, a experiência cotidiana revela que, em municípios brasileiros que herdaram uma rede assistencial centrada nos grandes hospitais e centros de saúde, é comum se identificarem ambulatórios dentro dessas estruturas mais complexas. “Partimos da premissa de que o sistema de saúde do Rio de Janeiro compõe-se de outros serviços que não os do modelo de Saúde da Família, e que, ainda assim, podem estar em sintonia com os atributos da atenção primária à saúde”, observa.

Isso significou tratar a atenção primária dentro da abordagem internacional, mais presente em países europeus, com sistemas públicos universais, associada à disponibilidade de médicos generalistas em locais de cuidados de saúde para a maioria da população. “Adotando o conceito de que a atenção primária refere-se ao atendimento ambulatorial de primeiro contato, outros serviços tiveram que ser incluídos. Isso não é usual nas análises no Brasil”, observa Gustavo, ressaltando que a ampliação do espectro de análise é o diferencial de seu estudo.

 

Municipalização de fato

Nesse caminho, foi possível encontrar evidências de que ocorreu de fato um processo de municipalização da saúde no Rio de Janeiro, com especialização de funções. “As evidências do estudo indicam que esse conceito de APS tomado em sentido amplo não é anômalo em relação aos princípios de reforma da atenção, e que adotá-lo como sinônimo de atendimento ambulatorial não tirou a natureza do conceito", considera Gustavo.

A esfera municipal é amplamente responsável pela administração dos serviços e realização dos procedimentos, e sua maior financiadora

Essas conclusões foram tiradas a partir dos dados encontrados pelo pesquisador de que a esfera municipal é amplamente responsável pela administração dos serviços (72,4%) e pela realização de procedimentos (77,9%), e sua maior financiadora, considerando-se somente valores aprovados no setor público (79,2%), apontando para a alta governabilidade dessa esfera. Em relação à natureza organizacional, a maioria dos serviços (79,7%), procedimentos realizados (85,9%) e valores aprovados (42,7%) estão sob a administração direta da Saúde, outro indicativo, segundo Gustavo, de governabilidade sobre os serviços.

“Os resultados do estudo convergem para o modelo esperado de organização dos sistemas locais de Saúde, em que o comando político sobre os serviços de APS está sob responsabilidade local. Os achados refletem a proposta de reforma do sistema municipal de Saúde, iniciada em 2009, com ênfase na universalização da APS”, aponta.

Os dados vão contra o senso comum de que há um excesso de instalações federais em saúde no município

Gustavo verificou, ainda, que a esfera privada é a segunda em oferta de serviços ambulatoriais (13,3%) e realização de procedimentos (5,2%), e que há “pouco protagonismo” da instância federal sobre os estabelecimentos ambulatoriais. “Isso vai contra o senso comum de que há um excesso de instalações federais em saúde no município”, observa.

 

Setor privado fatura mais

Além de aspectos positivos, o estudo revelou também “fragilidades” do sistema municipal analisado. Quando se observa a natureza organizacional dos serviços de saúde prestados, verifica-se que o setor privado sob gestão do SUS é o que fatura mais, ainda que realize menos procedimentos. É o setor privado que concentra a maior parte dos procedimentos comuns de maior complexidade e mais caros. De acordo com os dados coletados, a esfera privada reúne 60 unidades de saúde, o equivalente a 16% do total, mas arrecada 46% do faturamento. “Está ocorrendo uma especialização de receitas do setor privado, isto é, o setor privado está escolhendo quais procedimentos quer ofertar: os mais caros e os mais complexos”, analisa Gustavo. “Esse fenômeno é anômalo ao processo da reforma do sistema municipal de Saúde, pois o setor privado contratado não pode orientar-se pelo aspecto econômico e escolher a fatia mais rentável do mercado. O setor privado contratado ou conveniado sob a forma de empresa privada produz menos e arrecada mais”.

O setor privado está escolhendo quais procedimentos quer ofertar: os mais caros e os mais complexos. Produz menos e arrecada mais

De acordo com os dados coletados, os hospitais com ambulatórios são essencialmente públicos (81,4%), assim como os procedimentos que realizam (89,1%).  Entre os serviços desse tipo, o faturamento do setor público (68,0%), todavia, ainda que seja maior que o faturamento do setor privado (32,0%), não acompanha proporcionalmente a quantidade de serviços e de procedimentos realizados.  “O custo médio por serviço e por procedimento é bem mais alto entre os serviços privados”, aponta o pesquisador.

Quando analisados todos os 380 serviços, os totais revelam o mesmo comportamento identificado para os diferentes tipos de estabelecimento: são essencialmente públicos sob o ponto de vista da quantidade de serviços (84,2%) e dos procedimentos realizados (93,2%), mas não são proporcionalmente acompanhados pelo faturamento (54%) – um pouco mais apenas que o índice do setor privado (46%). "O custo médio de cada procedimento realizado pelo setor privado é bem maior (R$ 48,38) do que o registrado no setor público (R$ 2,74)”, observa Gustavo. “Como a remuneração dos procedimentos ambulatoriais prestados pelas duas esferas no âmbito municipal do SUS baseia-se nos valores estabelecidos pela tabela SIA-SUS Municipal, infere-se que os estabelecimentos contratados ou conveniados estão selecionando a oferta de itens mais caros", diz.

 

Atendimento integral dependente

Outro problema encontrado na prestação de serviços de saúde no município estudado, foi que os serviços de apoio (unidade de apoio à diagnose e terapia, farmácia, laboratório central de saúde publica), “essenciais no manejo rotineiro da população”, mostraram-se totalmente fora da gestão municipal; situando-se essencialmente sob as administrações privada, responsável por 56% deles, e federal, que é onde mais se realizam procedimentos. "Para um modelo de administração em rede, como preconiza o SUS, isso tem uma implicação, torna o atendimento integral totalmente dependente de uma articulação do município com o Governo Federal e com as instituições privadas. Qualquer falha nessa articulação põe em risco a garantia de integralidade e universalidade por parte do poder local", analisa Gustavo.

Serviços de apoio essenciais mostraram-se totalmente fora da gestão municipal, tornando o atendimento integral dependente de uma articulação do município com outras instâncias.

 

Repercussões para a política

Segundo Gustavo, os dados apresentados no estudo sugerem que a ênfase na universalização da APS reforçou a atuação do município na atenção ambulatorial e consequentemente na especialização de funções federativas em direção dos preceitos da Reforma Sanitária e do SUS, embora não seja um objetivo nominado da reforma em curso no Rio de Janeiro.

Por outro lado, para o pesquisador há indicativos de que houve um processo de sobrecarga orçamentária local com concentração excessiva de procedimentos no município, utilizados como proxy daqueles mais complexos e de maior valor, os quais deveriam ser cofinanciados por outras esferas federativas, para seguir o modelo preconizado.

Gustavo também destaca que o predomínio municipal sobre o conjunto dos serviços ambulatoriais direciona o desafio do município para a articulação entre os diferentes tipos de estabelecimentos que compõem a rede de atenção à saúde do Rio de Janeiro. "Ainda que estejam sob comando da administração municipal, o que atenua as dificuldades de provisão que dependem de relações intergovernamentais e com a esfera privada, procedimentos considerados vitais na rotina de prestação de cuidados ambulatoriais podem estar em grande parte fora dos serviços considerados da linha de frente da APS, como as unidades básicas de saúde tradicionais e as clínicas da família".

Para Gustavo, no caso dos sistemas federais, como o Brasil, em que vigora “uma soberania compartilhada”, é necessário aprofundar os processos de compartilhamento de decisões e responsabilidades no setor saúde. O pesquisador ressalva que o Rio de Janeiro, embora possa ilustrar a forma como se organizam os sistemas de saúde, tem “estrutura orçamentária atípica”, em relação aos demais municípios. “Isso põe em dúvida se outros sistemas locais dariam conta de tamanha intensidade de investimento setorial na ausência de forte apoio intergovernamental". (Por: Eliane Bardanachvili e Vitória Régia Gonzaga/do CEE-Fiocruz)

O pesquisador Gustavo Portela: “O setor privado contratado não pode orientar-se pelo aspecto econômico e escolher a fatia mais rentável do mercado, mas os dados mostram que está fazendo isso” (Foto: CEE/Fiocruz)

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