Ética, integração de dados e justiça social estiveram em debate em novo webinário da série ‘Transformação digital’
O webinário Tecnologias Digitais e Emergências em Saúde Pública: avanços e desafios em diferentes perspectivas, oitavo da série Transformação Digital na Saúde Pública, promovida pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, debateu, em 30 de setembro de 2025, temas centrais como avanço tecnológico, ética, justiça social, segurança digital e equidade no acesso à saúde.
O evento teve a abertura do coordenador do CEE-Fiocruz, Rômulo Paes de Sousa e contou com a participação dos especialistas: Sérgio Rego, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética (PPGBIOS/ENSP-Fiocruz) e do Núcleo Interdisciplinar sobre Emergências em Saúde Pública (NIESP/CEE-Fiocruz); Paula Xavier, diretora do Data-SUS (Ministério da Saúde), pesquisadora da Fiocruz e integrante da Rede Zika Ciências Sociais; Elaine Rabello, consultora em Saúde Global do KIT Royal Tropical Institute (Holanda). A mediação foi de Gustavo Matta, coordenador do NIESP/CEE-Fiocruz e pesquisador da Fiocruz Brasília.
Rômulo Paes destacou a importância de discutir criticamente as oportunidades e os desafios da inteligência artificial e de outras tecnologias emergentes aplicadas ao campo da saúde pública e ressaltou como o uso dessas ferramentas pode ampliar significativamente a capacidade de resposta frente a emergências sanitárias, como pandemias e desastres naturais, que se tornam cada vez mais frequentes e intensas. “A ideia é discutir como a inteligência artificial e essas novas tecnologias podem ser úteis para ampliarmos nossa capacidade, tanto de predição dos fenômenos vinculados a essas emergências sanitárias como de respostas mais adequadas para esses ciclos que são cada vez mais curtos e mais intensos de realização desses eventos”, afirmou.
Rômulo reforçou ainda, a importância do webinário como um lugar que busca reunir experiências diversas para promover um debate crítico, não apenas sobre os benefícios das novas tecnologias, mas também sobre os desafios organizacionais e comunicacionais envolvidos em sua adoção na saúde pública.
Atuação em prol da interoperabilidade
A diretora do DataSUS, Paula Xavier, apresentou a evolução das ações empreendidas em nível federal voltadas à transformação digital, enfatizando, de início, a relevância da criação, em 2023, da Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi), no Ministério da Saúde. “O debate sobre tecnologias de informação se realiza desde sempre, eu diria que desde a criação do próprio SUS”, considerou, lembrando que o DataSUS, criado em 1991, é um dos departamentos mais antigos do Ministério. “Desde a criação do Sistema Único de Saúde se almeja a criação de um Sistema Nacional de Informação em Saúde”, observou. Em parceria com a Casa de Oswaldo Cruz, lembrou Paula, está em curso um projeto voltado à história dos sistemas de informação e sua imbricação com a história do SUS.
Em sua exposição, Paula Xavier abordou o lançamento, em 2024, do programa SUS Digital, que visa fomentar a transformação digital no SUS integrando serviços e informações para cidadãos, profissionais de saúde e gestores, reunindo toda a trajetória da saúde do paciente, com dados confiáveis e soluções inovadoras para qualificar o cuidado. “É o primeiro programa relacionado ao tema da saúde digital que prevê o repasse de recursos para fomentar ações de transformação digital nos estados e municípios. Teve adesão de todo o país, dos 5.570 municípios, em todas as unidades da federação”, relatou Paula.
Conforme avaliou, a transformação digital envolve desafios diversos, que começam com a necessidade de se lidar com um novo conceito – “do que estamos falando ao nos referimos a saúde digital?”. Ela destacou, no entanto, que o Brasil conta, hoje, com “sistemas de informação riquíssimos”, como os de vigilância epidemiológica, nascidos vivos, mortalidade, notificação de agravos, além do prontuário da atenção primária e o aplicativo e-SUS APS, que está em 85% das cidades do país. Uma agenda mais atual, no que toca o DataSUS, é superar a fragmentação desses sistemas de informação, para que possamos ter uma visão nacional dos dados em saúde, para a formulação de políticas e enfrentamento de emergências sanitárias”. Nesse sentido, apontou, o foco tem sido a interoperabilidade, adotando-se um padrão, um modelo informacional que possibilite a comunicação com os diferentes sistemas, em um cenário no qual, pelo próprio modelo tripartite de gestão do SUS, estados e municípios têm total autonomia para trabalhar com seus sistemas de informação.
“Alguns sistemas são, sim, desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, mas, muitas vezes, esse desenvolvimento se dá no âmbito das secretarias estaduais e municipais, ou mesmo por soluções privadas. Então, a gente acaba tendo uma fragmentação dos diferentes níveis de atenção, primária, média e alta complexidade. Tenho um sistema para registro de vacina, tenho um que autoriza a internação hospitalar, outro que registra o atendimento clínico, e por aí vai. Tenho, ainda, uma fragmentação entre o público e o privado. A plataforma de interoperabilidade vem atuar justamente para a integração desses dados em nível nacional.”.
Paula citou a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma de integração de dados, como “uma grande vitória do nosso governo”, que já reúne 3 bilhões de registros, envolvendo exames de laboratório e 1,5 bilhão de registros de vacinas, entre outros dados. O modelo informacional da RNDS passa a receber informações disponíveis, explicou, Paula. Dessa forma, o O grande número de registros em vacinas que integram a rede, por exemplo, foi possível por conta dos registros do Programa Nacional de Imunizações (PNI), um dos mais bem sucedidos do país. “São 50 anos do PMI aqui na RNDS”.
A Rede Nacional também recebe dados da saúde suplementar e da rede privada, resultante de acordo de cooperação com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “Hoje, todo cidadão brasileiro tem o aplicativo Meu SUS Digital, gratuito, no seu celular, onde estão reunidos todos os dados da RNDS”. Como contabiliza Paula Xavier, hoje, já foram realizados tem mais de 60 milhões de downloads, com uma média de 40 milhões de usuários por mês, no aplicativo Meu SUS Digital.
No enfrentamento à pandemia de Covid-19, o aplicativo chamava-se Connect SUS e foi muito utilizado para emissão de certificado de vacina da Covid. No atual governo, desde 2023, foi possível ampliar as funcionalidades que agora são mais de trinta, como prescrição de medicamentos, resultados de exames e dados da regulação, pela primeira vez, transparentes nesse aplicativo, desassociando um pouco dessa ideia de apenas emissão de certificado de vacina”. “Um país poder ter esses dados interoperáveis, organizados numa plataforma de dados, como essa é superimportante”.
A transformação digital em saúde como um bem global
A transformação digital em saúde pública não é apenas uma questão de avanços tecnológicos, mas um desafio humano, ético e político, que só ganha sentido quando é acompanhada de solidariedade, justiça social e cooperação entre países. A avaliação é da pesquisadora e educadora em saúde Elaine Teixeira Rabello, consultora em Saúde Global do Royal Tropical Institute (KIT), com sede na Holanda. Ela foi uma das convidadas do webinário “Transformação Digital e Emergências em Saúde Pública: avanços e desafios em diferentes perspectivas”, promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), no dia 30 de setembro.
No encontro, Elaine falou sobre políticas e estratégias de digitalização em curso na União Europeia e em países do Sul Global. A pesquisadora ressaltou que, após a pandemia de Covid-19, cresceu o esforço europeu para integrar sistemas de vigilância digital e fortalecer a preparação para emergências sanitárias. A Covid-19, como explicou, expôs a fragmentação entre países e mostrou que integração digital e governança de dados devem caminhar juntas, sempre guiadas por princípios de solidariedade e respeito à soberania nacional”, explicou.
“As emergências não conhecem fronteiras”, disse a pesquisadora, pois “o que acontece em um país impacta diretamente seus vizinhos”, explicou, ressaltando que a cooperação entre os países é a única forma de resposta efetiva.
Elaine relatou sua experiência em um trabalho de consultoria para a Comissão Europeia, iniciado em 2022, responsável por apoiar os 27 países-membros na criação de planos conjuntos de preparação e resposta a emergências de saúde, que incluem o componente digital. Essas emergências se referem tanto a pandemias, epidemias como guerras e desastres naturais. O trabalho, iniciado em 2022, busca alinhar legislações, protocolos e infraestruturas tecnológica e envolve a cooperação entre diferentes países, com suas diferentes línguas e culturas.
Ao lado da experiência europeia, a pesquisadora também destacou os desafios de promover a transformação digital em contextos de vulnerabilidade. Por meio de parcerias do KIT com o sul global, Elaine tem atuado em iniciativas para treinamento e educação em saúde digital voltados a profissionais da área de saúde pública de países da África, Ásia e Oriente Médio — incluindo projetos na Palestina, voltados à saúde mental de populações em situação de conflito.
Diante de contextos tão diferentes, ela alertou para os riscos da intervenção digital acabar aprofundando a vulnerabilidade. “O povo já está enfrentando a crise sanitária e aí vai passar a enfrentar uma exclusão digital, porque a solução é digital”, por isso, ela sublinha que “a transformação digital, qualquer que seja ela, precisa ser inclusiva e equitativa”.
Segundo ela, o aprendizado do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma referência internacional em termos de integração territorial. “Sempre me dá orgulho falar do SUS fora do Brasil. Todo mundo fica impressionado, quando falamos de tecnologia, saúde digital, poder dizer que, hoje, em 2025, com a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), está integrado em território nacional”.
Para Elaine, a transformação digital deve ser pensada como um bem global, que envolve não só tecnologia, mas também ética, solidariedade e inovação relacional — entre pessoas, instituições e países. “Tanto para os projetos na Europa quanto em qualquer projeto em outras áreas do mundo, os princípios do KIT são equidade, justiça social e direitos humanos”, finalizou.
Ética, poder e vigilância: caminhos para a justiça social
O pesquisador Sérgio Rego, da Ensp e do CEE-Fiocruz, abriu sua apresentação com uma reflexão sobre os dilemas éticos da transformação digital na saúde, especialmente em contextos de profundas desigualdades sociais. Sergio propôs uma abordagem crítica no campo da bioética, questionando o papel da ética em uma sociedade marcada pela indiferença. “A bioética possui duas dimensões inseparáveis: a descritiva e a protetiva. A dimensão protetiva diz respeito à responsabilidade ética de proteger os mais vulneráveis. Já a dimensão descritiva nos lembra de um cuidado fundamental de que não podemos cair na chamada ‘falácia naturalista’, conceito formulado por David Hume, em que não se deve deduzir o que é bom ou justo a partir do que simplesmente é. Afinal, a transformação digital é boa ou ruim? Depende de como é utilizada”, explicou Sergio, citando os pesquisadores Volnei Garrafa e José Ruben Schramm como referências centrais nesse debate.
Para Sérgio, é fundamental que o debate ético considere o contexto social em que se insere. “Nosso país é o nono maior PIB do mundo, mas está em 89º no IDH. Segundo o Pnud, em 2023-2024, o Brasil é o sexto país mais desigual do mundo”, lembrou, ressaltando que, não dá para fazer uma análise crítica sem que você contextualize essa realidade”.
Ao abordar as vantagens e os limites da transformação digital na saúde pública, ele destacou benefícios como agilidade no diagnóstico, uso da telemedicina e monitoramento de surtos. No entanto, fez um alerta: “a vigilância epidemiológica que fazemos pode ser cega às desigualdades”, advertiu.
Segundo o pesquisador, durante a pandemia de Covid-19 a ausência de dados sobre raça, cor e territórios vulneráveis como as favelas dificultou a resposta adequada do sistema. “Os dados representam poder, e privar grupos que já foram marginalizados, desse poder, é uma injustiça”, afirmou. “Como é possível proteger alguém de forma eficaz se você nem mesmo consegue identificar sua vulnerabilidade?”, indagou.
Para o pesquisador, a coleta de dados deve estar acompanhada de políticas públicas de proteção, sob o risco de reforçar a estigmatização. “O território é um indicador aproximado para raça e classe. Um sistema de monitoramento que registra com precisão a territorialidade está, de forma indireta, capturando um aspecto essencial da vulnerabilidade social”, disse Sergio ao advertir que “a coleta sólida de dados territoriais e raciais, pode resultar na estigmatização desses territórios e grupos, caso não sejam implementadas medidas de proteção específicas”.
Sobre o papel do Estado, Sérgio foi enfático ao defender que ele não pode ser neutro diante das desigualdades. “Cabe a ele, ativamente, proteger os vulneráveis da exclusão digital, instituindo medidas de acesso universal, justificando de maneira clara e rigorosa qualquer ação de monitoramento”, afirmou.
Sérgio também abordou o impacto da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e do novo Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, aprovado em 2025. Para ele, a nova versão do plano representa um avanço ao incorporar princípios éticos como respeito aos direitos humanos, equidade e transparência. “Isso pode significar, pelo menos em tese, uma resposta à suposta ausência de controle social”, avaliou. O plano inclui, ainda, diretrizes para prevenir que algoritmos ampliem desigualdades raciais, de gênero ou socioeconômicas.
Mesmo com esses avanços, o pesquisador alertou para os riscos do chamado Cyber Leviathan, conceito que articula poder e tecnologia. “A digitalização na saúde pública também levanta questões críticas sobre poder, privacidade e autonomia”, disse. “Quem define os algoritmos que preveem os riscos de saúde? Essas decisões passam a ser substituídas por recomendações algorítmicas que não são transparentes ou passíveis de contestação”.
Para que a transformação digital seja eticamente válida, Sérgio defendeu que ela deve ter como finalidade a promoção da justiça social. “Na ausência de um projeto ético e político bem definido, a transformação digital nas emergências em saúde não servirá como um meio de emancipação, mas sim como um novo e mais sutil instrumento de exclusão e controle”, concluiu.
Transformação digital com justiça social
O pesquisador Gustavo Matta finalizou a mesa destacando os desafios contemporâneos no enfrentamento das emergências em saúde pública e a importância da abordagem interdisciplinar e crítica para compreender e responder a emergências em saúde, destacando a contribuição das ciências sociais, da ética e da participação social no desenvolvimento de políticas públicas eficazes e justas.
De acordo com Gustavo, o webinário trouxe a partir da fala da Paula um panorama amplo das políticas de saúde e dos desafios de interoperabilidade e proteção num sistema de saúde complexo, e apresentou uma importante experiência internacional, tratando de inclusão, equidade e desafios interculturais, trazida por Elaine. Já Sérgio destacou aspectos éticos e bioéticos fundamentais, mostrando que nem o Estado nem a tecnologia são neutros, “ambos devem ser orientados por valores de justiça social, segurança e equidade”, afirmou.
Segundo o pesquisador, a saúde coletiva deve ser o referencial para pensar as emergências sanitárias, já que integra saberes das ciências sociais, epidemiologia, e planejamento em saúde. “O campo da saúde coletiva é constituído pelo atravessamento, pela integração entre as ciências sociais, as ciências humanas, a epidemiologia e a política e planejamento em saúde. Então, é com essa perspectiva interdisciplinar e não hierarquizante que a gente tem se debruçado sobre as questões das emergências em saúde pública e, logicamente, tentando trazer um olhar um pouco mais crítico, o qual as ciências sociais, as humanidades e os estudos sociais da ciência nos possibilitam”, destacou.
O pesquisador enfatizou a importância de utilizar as tecnologias digitais não apenas para aprofundar a compreensão clínica e gerar evidências que orientem políticas públicas em favor de um SUS universal, mas também para identificar e proteger populações em situação de vulnerabilidade. “Podemos incorporar a participação social nessas análises e na construção dessas ferramentas, reconhecendo, como o Sérgio bem colocou, que a tecnologia não é boa nem má por natureza, isso é uma falácia, mas depende de como nós a informamos e nos apropriamos dela”, concluiu.