Seminário internacional aborda o papel da atenção primária na resiliência dos sistemas de saúde de Brasil e Inglaterra
O Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz recebeu, no dia 4 de setembro de 2025, no Rio de Janeiro, pesquisadores do Departamento de Saúde Pública do Imperial College de Londres, médicos e agentes de saúde do National Health System (NHS), o sistema de saúde inglês, para a oficina Brasil e Reino Unido: o papel dos agentes comunitários na resiliência dos sistemas de saúde. É o segundo evento realizado no Rio de Janeiro, fruto da parceria entre o CEE e a instituição britânica, no âmbito do projeto Tecnologia, Informação e Resiliência em Saúde Pública (ResiliSUS/CEE) – o primeiro foi em dezembro de 2024.
Reunidos em torno da mesa Aprendizado bidirecional Brasil/Inglaterra na atenção primária à saúde, o pesquisador do Imperial College Matthew Harris, as médicas do NHS Connie Junghans-Minton e Caroline Taylor, e o coordenador adjunto do CEE, Alessandro Jatobá, à frente do projeto do ResiliSUS, puderam compartilhar experiências baseadas no modelo dos agentes comunitários de saúde (ACS) do Brasil, adaptado e implementado pelo programa Community Health and Wellbeing Worker (CHWW) da Inglaterra. “O objetivo do ResiliSUS é compartilhar e disseminar metodologias e experiências que envolvem o conceito de resiliência em saúde de forma a fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS)”, explicou Jatobá.
O programa incluiu, além do seminário, visitas da comitiva inglesa a unidades básicas de saúde, em Duque de Caxias (RJ) e Camaragibe (PE) – território no qual Matthew trabalhou há vinte anos –, buscando fortalecer a troca de experiências e conversar com os agentes comunitários locais e gestores, para identificar novas oportunidades de colaboração. Esse intercâmbio soma-se a outras visitas já realizadas, no Rio de Janeiro, por ocasião da primeira oficina, e em Londres, em março de 2025, quando o agente de saúde brasileiro Bernardo Xavier Fernandes da Cunha Thobia foi conhecer o NHS.
A parceria entre o CEE-Fiocruz e o Imperial College teve início em 2021, na pandemia de Covid-19. “A gente vem construindo um projeto de aprendizado bidirecional no campo da atenção primária em geral e, em especial, sobre o papel dos agentes comunitários de saúde no fortalecimento da resiliência dos sistemas universais de saúde”, disse Jatobá em sua exposição. “O grande motivador dessa parceria é o interesse do NHS em desenvolver um programa de agentes comunitários de saúde inspirado no programa brasileiro como forma de enfrentamento aos desafios contemporâneos”, disse, referindo-se a um cenário de pós-pandemia, guerras, possibilidade de emergência de novas doenças e imigração em massa, entre outras questões. Trata-se de levar a experiência brasileira para aprimorar o NHS e, ao mesmo tempo, retroalimentar o sistema do país, conforme pontuou.
Jatobá lembrou que o governo da Inglaterra publicou seu plano decenal para a saúde, 10 Year Plan, com destaque a uma reorientação do cuidado e da assistência, “do hospital para a comunidade”, com foco na prevenção de doenças. “Nesse plano decenal, a figura dos agentes comunitários de saúde já aparece explicitamente, assim como a inspiração brasileira para o desenvolvimento de um programa de agentes comunitários no sistema inglês”, destacou Jatobá. “Isso representa não só uma oportunidade de a gente transferir conhecimento, como também de retroalimentar o SUS com conhecimentos gerados pela exportação das experiências”, considerou, apontando que é possível constatar muitos dos desafios do NHS semelhantes àqueles que o SUS enfrenta.
“A gente começou o programa de agentes comunitários de saúde em 1994, então, temos muito conhecimento gerado. Com base nisso, Matthew e Connie lideram a iniciativa de implementar um programa que vem avançando no NHS, começando na periferia de Londres, mas já se expandido para outros lugares”.
Jatobá apresentou dados do período de 2008 aos dias atuais apontando avanço nos índices de saúde brasileiros, com a cobertura dos agentes comunitários, dentro da Estratégia Saúde da Família do SUS. “Tirando os anos pandêmicos, tivemos alguns indicadores importantes, que justificam a efetividade desse tipo de ação: queda drástica, de 50%, nas internações, por exemplo, por hipertensão. Essa queda demonstra que a atuação territorial dos ACS na vigilância domiciliar e no monitoramento contínuo é capaz de reduzir as complicações”. No caso de internações por diabetes, houve queda de quase 70%, no período, acrescentou, mostrando a efetividade desse tipo de ação de base territorial no Brasil.
Ênfase na atenção primária: um aprendizado
Matthew Harris trouxe reflexões sobre a experiência que vem conduzindo e “do quão emocionante é isso”. Ele recordou sua jornada e envolvimento com profissionais de saúde e comunidade no Brasil, quando veio para o país, em 1999, pensando “como um médico inglês” e com uma “arrogância inaceitável”, conforme considerou. “Tive que aprender português em três meses e revalidar meu diploma de médico. Tive que fazer sete exames médicos”, relatou, avaliando que o esfoço valeu a pena.
“Estou olhando para trabalhadores de saúde da comunidade britânica nesta sala”, enfatizou, apresentando as agentes Maureen Katusabe, Donna Rowe, Comfort Idowu-Fearon e Jessica Ellis, do programa Community Health and Wellbeing Workers [AM1] (CHWWs), vinculados ao Integrated Care Board de Cornwall e Ilhas de Scilly, e outros colegas da National Association of Primary Care [Associação Nacional de Saúde Primária, que reúne profissionais da atenção primária do NHS], apoiadores do desenvolvimento do projeto em todo o território inglês.
“Temos mais de 200 trabalhadores de saúde, em 27 locais. Posso dizer que o esforço valeu a pena em cem por cento. É assim que deveria ser”, disse, em relação aos desafios de seu grupo voltados a enfatizar o papel da atenção primária no cuidado à saúde no sistema. “Mas demorou vinte anos para realmente podermos influenciar a National Association of Primary Care”, observou. “Estou imensamente orgulhoso de termos sido capazes de traduzir o aprendizado recebido, particularmente, em relação ao papel da saúde pública comunitária e da atenção primária, fundamental para um sistema de saúde resiliente”, avaliou.
O programa CHWW foi testado em áreas de Westminster, Sul de Londres e Cornualha. Os primeiros resultados foram promissores, conforme apresentado no seminário: a aceitação da vacinação aumentou 47%, o rastreamento do câncer e os exames de saúde aumentaram 82% e houve redução de 7,4% nas consultas médicas não agendadas. Os CHWWs realizam visitas domiciliares mensais e ajudam as pessoas a navegarem nos serviços sociais e de saúde. Na Inglaterra, serviços como saúde, moradia, emprego e assistência social são administrados separadamente, tornando difícil para muitos residentes em situações vulneráveis acessá-los. Ao atuar como elos confiáveis entre comunidades e serviços, os CHWWs estão ajudando a preencher essas lacunas, fornecendo suporte personalizado que gera confiança, continuidade e melhor acesso aos cuidados básicos.
Mathew mencionou a realização de projetos em curso no Imperial College, relacionados a prescrição e imunização, resultante da troca de experiências entre Brasil e Reino Unido. “O trabalho e a pesquisa que vocês fazem são importantes para a pesquisa que nós realizamos, por meio de nossa parceria. Estou ansioso por muitos projetos mais”.
Connie Junghans-Minton, médica clínica geral do Millbank Medical Centre, do NHS, localizado em Westminster, compartilhou a transformação de seu trabalho desde a implantação do projeto-piloto, firmado em cooperação técnica entre o Imperial College e a Fiocruz, por meio do ResiliSUS/CEE. O projeto foi concebido com o objetivo de compartilhar com os profissionais de saúde britânicos o modelo brasileiro de agentes comunitários para aprimorar o sistema de saúde público do país.
Na avaliação da médica, o NHS foi se tornando um modelo “cada vez mais transacional”, muito centrado no modelo biomédico e na doença. E isso gerava grande frustração: “Em cerca de metade das minhas consultas, percebia que pouco podia fazer pelo paciente, porque sua condição crônica estava diretamente ligada às condições de vida, à saúde mental fragilizada, ao isolamento social, à solidão, à desagregação das comunidades”, observou.
Connie relatou que quando Mattew lhe apresentou o modelo dos agentes comunitários de saúde, em 2019, ela não tinha ideia de como poderia ser transformador. Ela lembrou que Maureen e a Comfort foram duas das primeiras agentes que participaram desse processo, atuando em uma das comunidades mais vulneráveis da Inglaterra.
Depois de um ano e meio de testes, mesmo alcançando apenas parte da população local, apontou, os resultados foram tão significativos que os próprios médicos de Westminster decidiram financiar a continuidade e a expansão do modelo. “Hoje, temos duas equipes atuando, e já é possível perceber mudanças importantes”.
Um dos maiores aprendizados, dessa experiência, segundo a médica, foi verificar que a confiança é um determinante central da saúde. Conforme destacou, muitas dessas comunidades não confiam no governo ou nos médicos, mas criam laços com os agentes comunitários, que se tornam pontes para mudanças reais. “Mesmo atuando em apenas um quarto do território previsto, já observamos quedas expressivas, disse, trazendo mais dados indicadores de avanços: 10% a menos de internações hospitalares, 7% a menos de atendimentos de emergência e uma redução de 39% nas reinternações após alta. Esses são dados inéditos no NHS, informou a médica, e “representam, além de benefícios para as famílias, uma enorme economia para o sistema de saúde”.
Em seus anos de trabalho no NHS, ela diz que que apesar de o número de hospitais, médicos e serviços terem aumentado, as desigualdades em saúde continuam a crescer. Ela explicou que, em Londres, existe uma diferença de até 18 anos na expectativa de vida entre homens que moram em Churchill Gardens — onde atuam as agentes comunitárias — e aqueles que vivem a apenas 15 minutos dali, em um bairro mais rico.
Ela mencionou o plano Fit for The Future, voltado a transformar o NHS ao longo de uma década, levando o cuidado de volta às comunidades e investindo na prevenção, que, em sua avaliação, é muito bem-vindo. “Mas acredito que apenas o modelo dos agentes comunitários de saúde pode realmente alcançar esse objetivo. Diferente da lógica médica tradicional, que enxerga pacientes isoladamente em listas e diagnósticos, os agentes pensam no território, conhecem as pessoas e constroem relações de confiança”.