A Cúpula do Brics e as iniciativas em saúde lideradas pela Fiocruz

A Cúpula do Brics e as iniciativas em saúde lideradas pela Fiocruz

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O artigo a seguir, assinado por pesquisadores da Fiocruz e encaminhado para publicação no Brics Health Journal, aborda os resultados da XVII Cúpula do Brics, realizada nos dias 6 e 7 de julho de 2025, no Rio de Janeiro, em especial, as iniciativas em saúde desenvolvidas pela Fiocruz durante a presidência do Brasil no bloco.

Os líderes dos Brics se reuniram para a XVII Cúpula do Brics, nos dias 6 e 7 de julho, no Rio de Janeiro. Participaram da reunião delegações de onze países-membros (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã) e dos dez países parceiros (Bielorrússia, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã). Como países convidados, compareceram Angola, Chile, Quênia, México, Turquia e Uruguai.

Estiveram presentes organizações internacionais plurilaterais como Celac, União Africana e as multilaterais que fazem parte do Sistema das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Foram convidados bancos de desenvolvimento, a exemplo do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Aiib) e Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). Registre-se a participação do Sul Global, que reforça a expectativa do Brasil de reunir expressiva frente de países e organizações com objetivos convergentes. 

Logo no primeiro dia, a chancelaria brasileira divulgou a Declaração do Rio de Janeiro, que teve por tema Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável1”. Além do documento principal, divulgaram outros três documentos centrais: a Parceria do Brics para a eliminação de doenças socialmente determinadas, a Declaração-Marco dos líderes do Brics sobre finanças climáticas e a Declaração dos líderes do Brics sobre governança global da inteligência artificial. 

A declaração principal contém uma introdução e está dividida nas seguintes seções: fortalecendo o multilateralismo e reformando a governança global; promovendo a paz, a segurança e a estabilidade internacionais; aprofundando a cooperação internacional em economia, comércio e finanças; combatendo a mudança do clima e promovendo o desenvolvimento sustentável, justo e inclusivo e parcerias para a promoção do desenvolvimento humano, social e cultural. 

Na seção promoção do desenvolvimento humano e social, os quatro parágrafos relacionados à saúde distinguem duas iniciativas que estão sendo lideradas pela Fiocruz, instituição estratégica do Estado brasileiro: a Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics, apontada na declaração como “um fórum vital para a colaboração entre organizações de saúde pública de alto nível dos países Brics”, coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) e pela Vice-Presidência de Saúde Global e Relações Internacionais (VPSGRI), e o Centro de P&D de Vacinas dos BRICS (CPDV), conduzido por Bio-Manguinhos. 

Existe uma terceira iniciativa, a Conferência dos Institutos Nacionais de Saúde (Insps) do Brics, coordenada pela Fiocruz. Apesar de não ter sido mencionada na Cúpula de Líderes, por sua relevância, figura na declaração dos ministros da Saúde do grupo. Suas recomendações ajudarão a avançar o conhecimento sobre questões de saúde pública e a apoiar os processos de tomada de decisão.

Os Insps, considerando sua heterogeneidade de funções e sua unidade na atuação em prol da saúde pública e do bem-estar das populações em seus países, reportam e apoiam seus governos por meio de aconselhamento científico e técnico que orientam políticas e ações para proteger e melhorar a saúde das populações. Os Institutos Nacionais também podem se envolver em colaborações intersetoriais, regionais e internacionais para fortalecer a segurança em saúde em nível global. 

A articulação, coordenação e alinhamento que podem ser deflagradas com a Conferência dos Insps de Brics, mostram-se fatores chave para gerar maior efetividade das ações e compromissos assumidos pelos governos dos países membros de Brics. 

 

Desenvolvimento das atividades das iniciativas coordenadas pela Fiocruz 

Os representantes da Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics – anteriormente denominada Rede de Institutos de Saúde – estão trabalhando com o objetivo de fortalecer os sistemas de saúde dos países que compõem o Brics e a cooperação Sul-Sul em saúde pública. Para isso, a Rede tem desenvolvido um programa de trabalho com foco em três frentes: a pesquisa; a formação de quadros; e a cooperação técnica em áreas prioritárias para os sistemas de saúde. A iniciativa busca ampliar as fronteiras do conhecimento sobre organização e funcionamento dos sistemas de saúde no Brics, bem como fomentar parcerias para formulação e implementação de propostas conjuntas que sirvam para resolver problemas de saúde comuns.

Partindo da identificação de experiências exitosas, a Rede pretende oferecer uma cesta de boas práticas em sistemas de saúde que sirva de base para cooperação técnica entre dois ou mais países2, tendo como princípios o respeito aos contextos nacionais e a promoção da autonomia local. Além disso, considerando aspectos como governança, financiamento e as doenças mais prevalentes na população, cada membro da Rede está elaborando um capítulo sobre o sistema de saúde do seu país, tendo em vista a publicização, em breve, de um livro que reúna suas principais características e desafios. 

A Rede também está atuando no sentido de estimular o diálogo e a construção de uma agenda de atividades em torno de seis temas fundamentais: atenção primária em saúde; sistemas de informação em saúde e saúde digital; desenvolvimento e fornecimento de vacinas, medicamentos, testes de diagnóstico e suprimentos de saúde estratégicos; estudos epidemiológicos, vigilância e preparação a emergências sanitárias; envelhecimento e doenças não transmissíveis; e mudanças climáticas. Tais temas são de interesse comum entre os países Brics e foram mapeados na primeira reunião da Rede, em 15 de abril de 2025. Com base neles, espera-se que os países possam se engajar em projetos de pesquisa e/ou formação em saúde pública. A finalização dos produtos e seus desdobramentos serão pauta da próxima reunião da Rede, prevista para agosto deste ano.

O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas do Brics (CPDV/Brics) é um instrumento estratégico que tem o objetivo de garantir que os países do grupo gerem soluções autônomas para prevenir e controlar doenças infecciosas e responder a emergências de saúde pública de seus países e de outros que necessitem. Pari passu a esses objetivos, almeja-se também contribuir com o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, em especial da meta 3 – Saúde e Bem-estar. Alinhados a uma agenda que integra ciência e produção, em contribuição com as políticas públicas, buscam ampliar a capacidade regional e do Sul Global em inovação e assim como em produção, visando o acesso equitativo a vacinas e tecnologias em saúde.

Essa iniciativa foi lançada em 2022, durante a presidência pro-tempore da China, com forte direcionamento para o combate à Covid-19. Ademais, o bloco identificou a necessidade de construir soluções efetivas para enfrentar os novos desafios, incluindo a resposta rápida e coordenada a uma possível ameaça da doença X.

A iniciativa busca romper com a desigualdade vivenciada durante a pandemia de Covid-19. Em janeiro de 2021, o diretorgGeral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, alertou que “… o mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico – e o preço desse fracasso será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo”3. Naquela fase, mais de 39 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 haviam sido administradas em pelo menos 49 países de alta renda, em comparação com apenas 25 doses em um único país de baixa renda. Essas desigualdades persistiram durante toda a pandemia. Até novembro de 2022, quase 13 bilhões de doses de vacinas contra a Covid-19 haviam sido administradas em todo o mundo, mas menos de 25% das pessoas em países de baixa renda haviam recebido uma dose4.  

O acesso a testes diagnósticos e tratamentos para a Covid-19 também foi altamente desigual. Apenas 0,4% dos 3 bilhões de testes diagnósticos utilizados globalmente até março de 2022 foram administrados em países de baixa renda5. As desigualdades no acesso a tratamentos para a Covid-19 foram ainda mais acentuadas, com mais de 70% dos tratamentos reservados por países de alta renda6 e apenas oito países de baixa renda tendo recebido entregas de tratamentos antivirais orais até novembro de 20227. Essas experiências negativas levaram os países do Brics a se organizarem. 

Até o momento, o Centro já organizou duas reuniões. A primeira, em 31 de março de 2025, buscou congregar os seguintes aspectos: um entendimento sobre o funcionamento dos sistemas de saúde dos países membros, com foco nos calendários e no acesso à vacinação, uma visão da Organização Mundial da Saúde sobre possibilidades de contribuição do Brics com a saúde global; e uma apresentação sobre o funcionamento e possibilidades de apoio do Banco do Brics ao Centro, enfatizando um balanceamento a respeito das necessidades para se alavancar a criação do Repositório Digital (e-R&D-Stock).

A segunda reunião, realizada em 6 de maio, teve como temas principais a promoção da cooperação entre membros do Centro, com base nas possibilidades identificadas; a promoção da integração com outras iniciativas em saúde do  Brics (Rede de Pesquisa em Tuberculose, Parceria para Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas e cooperação entre as agência regulatórias); além do avanço na proposição do estabelecimento do e-R&D-Stock e na discussão de oportunidades de apoio às atividades do Centro – incluindo a proposição de parágrafos para a declaração de ministros que lançassem luzes para as demandas e aspirações do Centro.

Como resultado dessas reuniões, os países-membros do Brics decidiram estabelecer um Grupo de Trabalho (GT) visando proporcionar um espaço de discussão e colaboração a fim de operacionalizar a implementação do e-R&D-Stock.  

As reuniões do GT do e-R&D-Stock estão previstas para ocorrer mensalmente. Desde junho, representantes dos países do bloco vêm se reunindo em torno de uma pauta estratégica para a inovação em saúde global. Entre as definições cruciais para o grupo estão os aspectos estruturantes, a sua governança e uma descrição técnica detalhada da proposta da plataforma, formalizadas por meio de um documento (Termo de Referência) a ser discutido entre os membros.

A Conferência do Insp do Brics tem como objetivo produzir mensagens e propostas coordenadas de Institutos Nacionais de Saúde Pública de cerca de vinte países (membros e parceiros do Brics) para promover aconselhamento técnico e político aos ministros da Saúde do bloco, bem como promover a cooperação entre os países.  

A Conferência está prevista para os dias 15 e 17 de setembro de 2025, e foi idealizada para ser um fórum que gere conhecimento mútuo entre os Insps de Brics, bem como promover articulação política e técnica em torno de temas críticos para os Inps, como vigilância em saúde e enfrentamento de doenças socialmente determinadas. Além disso, é esperado como resultado a publicação de uma Declaração Conjunta dos Inps de Brics e um Relatório final detalhado, com todas as discussões promovidas durante a Conferência. 

 

Outras iniciativas em saúde mencionadas na Declaração dos Líderes

Os países optaram por desenvolver uma Parceria para eliminação de doenças socialmente determinadas (DSD). A ideia é que os países se unam para eliminar doenças ligadas à pobreza, como tuberculose, hanseníase, febre amarela e dengue.   

A Parceria definirá, em cada etapa, as doenças prioritárias, conforme as legislações e capacidades de cada país. Estão previstas conferências globais e regionais sobre o tema, com participação de institutos nacionais de saúde (INS), universidades e ministérios da saúde. 

Uma vez identificada a doença prioritária, a Parceria deverá buscar o reforço de iniciativas já existentes no âmbito do Brics, em particular a Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics e o Centro de P&D de Vacinas do Brics (e caso a prioridade seja a tuberculose (TB), a Rede de Pesquisa sobre TB do Brics), que oferecem plataformas robustas para pesquisa colaborativa, vigilância, capacitação e inovação. 

Ainda no âmbito das DSDs, cabe lembrar que mais de 50% da carga global de tuberculose está nos países do Brics. A Rede de Pesquisa sobre Tuberculose almeja participar de ensaios clínicos de novas vacinas em desenvolvimento. O financiamento para esse tipo de pesquisa é uma preocupação e espera-se que sob a liderança do Brasil, busquemos novas fontes de financiamento para manter as iniciativas de pesquisa em andamento. 

A consolidação da Rede de Pesquisa sobre Tuberculose, com o apoio do Novo Banco de Desenvolvimento e da Organização Mundial da Saúde, bem como a cooperação regulatória em produtos médicos, são exemplos concretos de o quanto o Brics já avançou como grupo.

 

Considerações Finais 

À medida que o Brics expande seu número de membros e influência, sua emergência como um poderoso bloco global atrai cada vez mais o escrutínio dos Estados Unidos. Com a inclusão de novos países-membros, o Brics agora representa 45% da população mundial e contribui com aproximadamente 35% para o PIB mundial, marcando uma mudança significativa na dinâmica de poder global. 

A Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics apoia a cooperação em saúde para o enfrentamento das desigualdades estruturais e de saúde no Sul Global. Baseia-se na premissa de que sistemas de saúde pública robustos podem gerar melhorias sociais e econômicas, com repercussões diretas e indiretas sobre as condições de vida da população. A pesquisa, a formação e a cooperação técnica entre os países do Brics podem colaborar para o fortalecimento de sistemas universais de saúde, considerando a atenção primária, a saúde digital, a ciência e a tecnologia como componentes estratégicos. No contexto de crise do multilateralismo no mundo contemporâneo, a ação conjunta e propositiva dos países Brics é um caminho para a consolidação do seu papel na governança internacional.

A iniciativa do Repositório Eletrônico de P&D do Brics apresenta-se como proposta estruturante, em que os países-membros, em meio à sua diversidade e distâncias geográficas, poderão apresentar seus projetos e potenciais de colaboração para desenvolvimento e estabelecimento de novos produtos estratégicos. O e-R&D-Stock busca fomentar parcerias não somente para vacinas, mas para medicamentos e kits para diagnóstico, que contribuam com as políticas públicas de saúde, visando a seu acesso equitativo, em alinhamento com os objetivos do Centro de P&D de vacinas.

A formação do grupo de trabalho se apresenta como um passo importante para o avanço do projeto. Entretanto, há necessidade de maior adesão e contribuição ativa dos países para que a proposta se concretize e alcance os propósitos almejados.

A Cúpula do Brics alcançou resultados muito positivos em todas as frentes, embora ainda seja necessário acompanhar a implementação das propostas aprovadas. Seria vantajoso ter avançado em sua institucionalização, com a criação de um Conselho de Ministros da Saúde permanente, apoiado numa secretaria técnica, o que poderia facilitar a implementação das medidas acordadas e facilitar enormemente uma resposta coordenada a uma nova pandemia e outras emergências sanitárias, assim como articular posições comuns em fóruns internacionais. 

* Claudia Hoirisch, pesquisadora da Vice-Presidência de Saúde Global e Relações Internacionais e co-coordenadora da Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics; Adelyne Maria Mendes Pereira, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Daps/Ensp) e co-coordenadora da Rede de Pesquisa em Saúde Pública e Sistemas de Saúde do Brics; Paulo Marchiori Buss, médico e professor emérito da Fiocruz, membro titular da Academia Nacional de Medicina, coordenador do Centro Colaborador em Diplomacia da Saúde Global e Cooperação Sul-Sul da OMS na Fiocruz e presidente da Aliança Latino-Americana de Saúde Global (Alasag); João Miguel Estephanio, assessor de relações internacionais da presidência da Fiocruz e pesquisador; Ricardo de Godoi Ferreira, vice-diretor de Inovação de Bio-Manguinhos/Fiocruz; Denise Lobo Crivelli, coordenadora de Relações Institucionais de Bio-Manguinhos/Fiocruz; Hiago Duarte de Albuquerque, assessor de Relações Internacionais de Bio-Manguinhos/Fiocruz.