Avaliação do contexto político no Brasil e desafios para a agenda social do governo federal – por Emir Sader
O Brasil – o país mais desigual do continente e mais desigual do mundo – alcançou, na eleição dos governos do PT, um marco importante na sua história. Porque, depois de ter tido um governo frontalmente neoliberal, na última década do século passado, como reação, elegeu governos com orientação radicalmente oposta – antineoliberal –, com as presidências de Lula e Dilma Rousseff.
Dessa maneira, as últimas décadas foram muito expressivas no que diz respeito a problemas e alternativas políticas, assim como às contradições e dificuldades persistentes, como observado a seguir.
- O Brasil passou por extraordinárias transformações, regressivas ou progressivas, em um período relativamente curto de tempo. Em pouco mais de meio século, teve 21 anos de ditadura militar, dois governos neoliberais e outros tantos antineoliberais. Foi governado por militares, por Fernando Henrique Cardoso, por Lula, por Dilma Rousseff, por Bolsonaro, entre outros.
- O Brasil teve uma temporalidade relativamente diferenciada em relação aos outros países da região. Depois de duas tentativas (1954 e 1961), os militares conseguiram finalmente dar o golpe de Estado em 1964 e impor uma ditadura de 21 anos. Esse regime pôde desfrutar ainda do final do mais longo ciclo expansivo do capitalismo. Circunstância que permitiu à economia voltar a crescer, baseada na superexploração dos trabalhadores e nos incentivos aos investimentos privados, prioritariamente os externos.
- Dessa forma, o período de ditadura militar no Brasil, ao contrário do que se viu nos outros países da região, não foi de recessão, mas de expansão econômica acelerada, acompanhada de intensa concentração de renda. Uma expansão que a ditadura militar chamou de “milagre econômico”, mas cujo milagre foi o da superexploração dos trabalhadores.
- Ao mesmo tempo, surgiu um novo setor da classe operária, no ABC paulista, à qual pertencia Lula e que deu origem à Central Única dos Trabalhadores (CUT), ao Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e ao Partido dos Trabalhadores (PT).
- Mas a democratização política não trouxe a democratização econômica e social. Instalou-se o paradoxo de que a democracia formal passou a conviver com as enormes desigualdades na realidade na realidade concreta, econômica e social.
- Os governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso, convenceram a maioria dos brasileiros de que o problema fundamental do país era a inflação, ocasionada pelos gastos do Estado. Colocavam o ajuste fiscal e o Estado mínimo como objetivos principais.
- Foi assim que Fernando Henrique Cardoso se elegeu e se reelegeu, em 1994 e em 1998. Seu governo fracassou porque desembocou no retorno da inflação e numa recessão de grandes proporções.
- A primeira vitória de Lula, em 2002 se deu porque, diante do fracasso do governo de Fernando Henrique Cardoso, que, copiando os governos de François Mitterrand, na França, e de Felipe Gonzalez, na Espanha, manteve o modelo neoliberal, logrou convencer à maioria dos brasileiros de que os problemas fundamentais do país eram de caráter social – fome, miséria, exclusão social.
- Lula havia sido derrotado três vezes e tirou lições dessas derrotas. Em primeiro lugar, se deu conta de que o combate à inflação havia sido incorporado pelos brasileiros como uma conquista, que deveria ser mantida.
- Em segundo, que essa conquista não bastava para melhorar as condições de vida da grande maioria da população. O equilíbrio das contas públicas tinha que ser feito em função de arrecadar recursos para as políticas sociais e para fazer a economia voltar a crescer.
- Em terceiro lugar, que, sem maioria no Congresso, não conseguiria governar e, para obter essa maioria, teria que fazer alianças que resguardassem os objetivos fundamentais do governo: a prioridade das políticas sociais, o resgate do papel ativo do Estado, a integração regional.
- Lula triunfou pelo fracasso das políticas neoliberais, mas recebeu uma dura herança. Seu primeiro mandato foi de rupturas. Ao lado de um ajuste fiscal que controlasse a inflação, promoveu a prioridade das políticas sociais, que responde pelo sucesso dos governos do PT.
- E ainda interrompeu as articulações para a Alca, Área de Livre Comercio das Américas, promovidas pelo governo norte-americano. A prioridade passou a ser a integração regional e os intercâmbios Sul-Sul, com lugar essencial para as relações com a China.
- Por fim, rompeu com a redução do papel do Estado, que fora reduzido às suas proporções mínimas nos governos neoliberais. O governo Lula resgatou seu papel ativo, seja na indução do crescimento econômico, seja na garantia dos direitos de todos. Promoveu o fortalecimento dos bancos públicos, seja para financiar o crescimento econômico, seja para respaldar as políticas sociais, como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, entre tantos outros programas sociais.
- Os primeiros governos Lula foram governos frontalmente antineoliberais, contradizendo os princípios centrais do neoliberalismo: prioridade do ajuste fiscal e o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos.
- O segundo mandato Lula foi o auge dos governos do PT, a ponto de ele terminar seu governo com 80% de referências negativas na mídia, mas com 87% de apoio da população.
- A passagem do governo Lula para o governo Dilma Rousseff foi, simultaneamente, a passagem de um cenário nacional e internacional para outro e de um estilo de governar para outro. Dilma dava continuidade e ampliava as políticas sociais do governo Lula. Entretanto, não tinha o hábito de falar, de transmitir para as pessoas o significado das ações de seu governo. O governo era de continuidade, mas o estilo era diferente.
- Foi durante o governo Dilma que surgiram as manifestações de junho de 2013, que deram início a um processo de reversão de imagens públicas que eram predominantes até ali. Mais além das reivindicações iniciais e das suas intenções (contra o aumento das passagens de ônibus), o movimento dos estudantes foi apropriado pela direita, que se deu conta de como poderiam ser úteis na luta contra o governo. E deu a elas o caráter de luta contra a política, contra o Estado e contra o governo do PT.
- Essas manifestações fizeram parte do processo de reversão das imagens de que o Brasil ia bem, de que a vida das pessoas melhorava, de que o caminho do governo era o correto. O primeiro governo da Dilma acabou sendo o período em que a esquerda foi perdendo a hegemonia que tinha conquistado nos anos anteriores.
- A direita se valeu desse enfraquecimento do governo, até encontrar a justificativa jurídica para realizar o lawfare e o golpe contra Dilma. Ela conseguiu criar um consenso nacional contra um suposto descontrole da economia, contra a corrupção atribuída ao PT, para buscar recuperar o governo.
- A implementação da guerra híbrida no Brasil teve seu momento inicial naquelas mobilizações de 2013. A etapa seguinte foi o plano de desestabilização do governo, que se iniciou com a tentativa de desconhecer os resultados das eleições, para desembocar no impeachment de Dilma.
- As eleições de 2014 marcaram a virada para a hegemonia da agenda da direita com a centralidade da questão da corrupção, ao lado do suposto descontrole da situação econômica, a partir da inflação. A combinação desses dois fatores, com as denúncias de corrupção mediante a judicialização da política, se deu também com o apoio em três eixos: um Congresso eleito pelo maciço financiamento do grande empresariado – somente a Odebrecht confessou que tinha elegido 150 deputados, a maior bancada na Câmara –, a perseguição política promovida pela Lava Jato, e o papel da destruição de reputações de líderes da esquerda, protagonizada pelos meios de comunicação. Tudo isso produziu a desestabilização e a derrubada do governo de Dilma.
- O golpe institucional chegava ao Brasil, para realizar o sonho da direita, desde sua primeira derrota, em 2002. Derrotada pela quarta vez seguida, se dava conta de que essa sequência teria continuidade em eleições democráticas. Apelou para a judicialização, que impôs o impeachment de Dilma e a prisão de Lula.
- Lula havia decidido retomar as caravanas por todo o Brasil, começando pelo Nordeste, seguindo por Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e, finalmente, pelo Sul do Brasil. As caravanas foram um sucesso, a ponto de, nem bem terminavam, o juiz Sergio Moro decretar a prisão de Lula – apenas com convicções, sem nenhuma prova concreta contra ele.
- Alegando que ele não era alguém que passasse para a clandestinidade, Lula decidiu entregar-se à Polícia Federal e demonstrar sua verdade. Ele foi levado para Curitiba, onde esteve preso por 580 dias.
- Sua previsão se cumpriu: o Supremo Tribunal Federal finalmente reconheceu, tanto a inconstitucionalidade da sua condenação, quanto a sua inocência. Lula saiu da prisão, voltou a se candidatar e vencer às eleições para Presidência – contra Jair Bolsonaro, que tinha sido eleito presidente em 2018, quando Lula estava preso. Lula assumiu pela terceira vez a presidência do Brasil.
- O terceiro mandato de Lula foi distinto dos anteriores, porque ele não dispunha mais de maioria no Congresso. Quando Lula terminou seu primeiro governo, eu lhe perguntei qual a principal lição que havia aprendido. Ele me respondeu: “Que não se pode governar sem maioria”.
- No seu terceiro governo, Lula precisou governar sem maioria. Passou a ter que negociar cada iniciativa governamental, a fazer alianças, que o levaram a incorporar ao governo forças do centro.
- Apesar dessas dificuldades, seu governo conseguiu implementar, novamente, a prioridade das políticas sociais, retomando a luta contra o neoliberalismo, característica dos governos do PT.
- A economia voltou a crescer, a miséria, a pobreza e as desigualdades diminuíram, com o país passando a ter pleno emprego. Mas as pesquisas de opinião – com todas as cautelas com que se deve tomá-las – indicam que, apesar de fazer um bom governo, o apoio a Lula estaria em um nível muito baixo, apontando grandes dificuldades para derrotar os eventuais adversários, caso mantenha a disposição de se candidatar à reeleição.
- Na segunda metade do seu terceiro mandato, Lula é candidato à reeleição. Não está claro ainda quem será seu principal adversário. Talvez o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, já que Jair Bolsonaro está impedido legalmente de ser candidato.
- A continuidade e o aprofundamento das políticas sociais dependem, em primeiro lugar, da reeleição de Lula. Mas ela não basta, porque Lula necessita ter uma maioria no Congresso, para garantir a continuidade e o aprofundamento das políticas sociais, que caracterizam seu governo. Pode-se prever que será menos difícil a reeleição do Lula do que eleger um Congresso muito diferente do atual, prevendo que as dificuldades atuais tenderiam a se prolongar em um eventual quarto mandato Lula.
- Mas esse não é o único problema. A força de difusão do neoliberalismo no mundo chegou também no Brasil. O eixo da economia brasileira não é mais um setor produtivo, passou a ser o capital financeiro.
- Mas não o capital financeiro que financia a produção, o consumo, a cultura. É o capital financeiro de caráter especulativo, que vive das taxas de juros elevadas.
- Um capital especulativo que não promove o crescimento da economia, nem gera empregos. Se não se conseguir romper a hegemonia desse capital financeiro, não será possível retomar um ciclo longo de caráter produtivo.
- O combate à inflação – com todo o peso psicológico que ela tem sobre a população – requer, por sua vez, taxas de juros relativamente altas. O que, ao mesmo tempo, promove o capital financeiro e seu caráter especulativo.
- Esses são os dilemas que se colocam para a continuidade das políticas sociais no Brasil contemporâneo.
* Sociólogo e cientista político.